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As ElEgiAs dE TirTEu Poesia e performance na Esparta Arcaica Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretor Sérgio França Adorno de Abreu Vice-Diretor João Roberto Gomes de Faria Editora Humanitas Presidente Sedi Hirano Vice-Presidente Valeria De Marco Apoio inanceiro: CAPES/PROAP – Brasil (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) HUMANITAS Proibida a reprodução parcial ou integral desta obra por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive por processo xerográico, sem permissão expressa do editor (Lei nº. 9.610, de 19.02.98). Av. Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária 05508-080 – São Paulo – SP – Brasil Telefax: 3091-2920 e-mail: editorahumanitas@usp.br http://www.editorahumanitas.com.br Foi feito o depósito legal Impresso no Brasil / Printed in Brazil Junho 2014 Rafael Brunhara As ElEgiAs dE TirTEu Poesia e performance na Esparta Arcaica Coleção Letras Clássicas HUMANITAS São Paulo, 2014 Copyright © 2014 Rafael Brunhara Catalogação na Publicação (CIP) Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. B895 Brunhara, Rafael. As elegias de Tirteu : poesia e performance na Grécia arcaica / Rafael Brunhara. -- São Paulo : Humanitas, 2014. 357p. -- (Coleção Letras Clássicas) ISBN 978-85-7732-237-4 1. Literatura grega clássica (Crítica e interpretação). 2. Poesia elegíaca. I. Tirteu séc. VII a.C. II. Título. III. Série. CDD 884.1 Serviço de Editoração e Distribuição Tel: 3091-2920/4593 editoralch@usp.br Coordenação Editorial Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840 Revisão Rafael Brunhara Diagramação Selma Consoli – MTb n. 28.839 Emendas Priscila Tioma Imagem da capa Krater ático em iguras negras de aproximadamente 530 a.C. Museu Arqueológico Nacional, Atenas. Foto de G.Mitchell. Dedico este trabalho à memória de meu pai, Oswaldo Matiello Brunhara ..ἐμνήσθην δ’, ὁσσάκις ἀμφότεροι ἥλιον ἐν λέσχῃ κατεδύσαμεν... AgrAdEcimEnTos À FAPESP, pela bolsa de auxílio à pesquisa que tornou possível este trabalho. À minha orientadora, Profa. Dra. Paula da Cunha Corrêa, por ser uma mestra atenciosa e paciente. Devo a minha formação como pesquisador de Letras Clássicas a ela, que desde a minha iniciação cientíica acompanha os meus passos e até hoje tanto me ensina. Agradeço também à Profa. Dra. Giuliana Ragusa, ao Prof. Dr. Teodoro Assunção e ao Prof. Dr. Alexandre Hasegawa pelas valiosas sugestões e comentários nas bancas de defesa e qualiicação da dissertação de mestrado que originou este livro. Por ter contado com tais leitores, ressalto que qualquer falha ou inconsistência que ainda permanecer nesse trabalho deve-se apenas a mim. Sou grato aos meus professores de graduação e pós-graduação, responsáveis por ampliar os meus horizontes intelectuais e fomentar a minha paixão pelas Letras Clássicas: Adriane da Silva Duarte, Adriano Machado Ribeiro, Adriano Scatolin, Alexandre Hasegawa, André Malta Campos, Breno Sebastiani, Christian Werner, Daniel Rossi Nunes Lopes, Elaine Sartorelli, Giuliana Ragusa, Jaa Torrano, João Angelo Oliva Neto, Paula da Cunha Corrêa e Paulo Martins. Ao Pedro Baroni Schmidt, pela revisão do meu latim. Ao Buri, à Fy, ao Daniel, ao Neves, ao Victor Miguel : há poucas palavras capazes de resumir tantos anos de amizade tão legítima. as elegias de tirteu Aos amigos da pós em Letras Clássicas, pelos diálogos constantes e pelo coleguismo. Aos companheiros délicos de 2011, pelas gratas e saudosas amizades. E à Aline, por tantas coisas, mas sobretudo por me fazer crer na mais importante. 8 sumário Agradecimentos ...................................................................................... 7 Nota liminar ......................................................................................... 11 Introdução – Tirteu e a elegia grega arcaica ....................................... 17 A elegia grega arcaica ........................................................................ 17 A elegia e sua ocasião de performance .............................................. 31 Os poemas de Tirteu ......................................................................... 45 A fortuna crítica de Tirteu ................................................................. 53 Homero e Tirteu ............................................................................... 55 Poéticas de guerra .............................................................................. 62 I. As Elegias Exortativas e o Simpósio Capítulo 1 – O fragmento 10 W e a exortação marcial...................... 67 O fr. 10 W e um exemplo de enárgeia .............................................. 78 A bela morte e o penoso exílio (vv. 1–14) ......................................... 80 O papel do poeta e a exortação marcial (vv. 15-18)........................... 94 Aiskhròs thánatos e valores éticos e estéticos no fragmento 10 W ....... 97 Capítulo 2 – O fragmento 11 W e o modo de guerra ..................... 105 Os ilhos de Héracles vão à guerra (vv. 1-2)..................................... 109 A fuga e as virtudes do bom combate (vv. 3-20) .............................. 112 Eu diabás (vv. 21-22) ..................................................................... 129 Uma lição de guerra e uma cena de batalha (vv. 23-34)................... 131 Gumnétes e panóploi (vv. 35-38) .................................................... 138 Capítulo 3 – O fragmento 12 W: simpósio e aretê em Tirteu .......... 143 As fontes e a fortuna crítica ............................................................. 147 A glória do canto e a maior virtude (vv. 1-12) ................................ 154 O homem bom na guerra (vv. 15-22) ............................................. 168 O herói tirtaico e suas recompensas (vv. 27-43) ............................... 179 II. As Elegias Narrativas e o Festival Público Capítulo 1 – A poética da Eunomia .................................................. 187 A Eunomia e a miragem espartana ................................................ 187 A Eunomia de Tirteu .................................................................... 199 O fragmento 2 W ........................................................................... 203 Estratégias comunicativas no fr. 2 W ............................................... 214 O fragmento 4 W ........................................................................... 216 Ocasião de performance e estrutura do fragmento 4 W de Tirteu ..... 244 O fragmento 5 W .......................................................................... 247 A conquista da Messênia (vv. 1-3) .................................................. 252 Elegia e historiograia? A primeira guerra da Messênia (vv. 4-8) ..... 259 Os fragmento 6 e 7 ......................................................................... 266 O símile homérico e o símile tirtaico (fr. 6. 1 W e fr. 13 W) ........... 269 A punição dos messênios (fr. 6.2-3 e fr. 7) ...................................... 276 III. Excurso: As Elegias Fragmentárias Descrições de guerra: Os fragmentos 18-23a W .............................. 283 O papiro de Berlim e os fragmentos 18-23 W................................. 283 O Papiro de Oxirrinco 3316 e o fragmento 23a W ........................ 291 O fragmento 19 W: uma elegia exortativa? ..................................... 294 Considerações inais ........................................................................... 301 Referências bibliográicas ................................................................... 309 Anexo – Texto grego e tradução dos fragmentos de Tirteu ............. 325 noTA liminAr Este trabalho originou-se da dissertação de mestrado “Elegia Grega Arcaica, Ocasião de Performance e Tradição Épica: o caso de Tirteu”, defendida em dezembro de 2012 junto ao programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Universidade de São Paulo. Consiste precipuamente de tradução e comentários dos fragmentos elegíacos supérstites atribuídos ao poeta elegíaco grego arcaico Tirteu (c. 640 a.C), segundo a edição estabelecida por Martin West, Iambi et Elegi Graeci Ante Alexandri Cantati (1992). Desde a Antiguidade, a obra de Tirteu é classiicada em pelo menos dois grupos: A Eunomia, uma obra de conteúdo histórico e cívico-religioso, e as Exortações, elegias marciais que indicam uma visão de mundo heroica, similar àquela encontrada na tradição épica. Os comentários aos poemas seguem uma divisão pautada pelos debates em voga sobre a ocasião de performance da elegia grega arcaica: a primeira parte, As elegias exortativas e o simpósio, compreende a leitura dos fragmentos 10, 11 e 12 W – a parte mais conservada da poesia de Tirteu. Na segunda parte, As elegias narrativas e o festival público, são analisados os fragmentos 1 a 7 W, que teriam feito parte da Eunomia. Uma terceira parte, um excurso denominado As elegias fragmentárias, faz uma breve análise de um grupo de elegias (18 a 23a W) conservadas em fontes de transmissão direta e cujo estado lacunar não permite uma classiicação precisa. as elegias de tirteu Cabe lembrar que essa divisão é apenas preliminar e antes de tudo metodológica, uma vez que se pauta em hipóteses que ainda serão discutidas e avaliadas no decurso deste trabalho. Antes de proceder ao comentário das elegias de Tirteu, pretende-se ora considerar introdutoriamente alguns aspectos gerais da elegia grega arcaica e de sua ocasião de performance, assim como o modo com que Tirteu foi recebido pela tradição crítica – sobretudo no que concerne à sua relação com a epopeia homérica. * Todas as traduções apresentadas nesse trabalho são de minha autoria, exceto quando indicado em notas. Observo que são realizadas traduções próprias de obras já traduzidas em língua portuguesa. Justiico a minha opção por tal procedimento movido pela necessidade de uniformização e de evidenciar aspectos, vocábulos ou expressões não realçadas em outras traduções e que eram importantes aos meus comentários. A tradução dos poemas é em verso livre e branco. As edições dos textos gregos utilizados são listadas abaixo. Obras: dicionários e edições utilizadas para a tradução de Tirteu, testemunhos, outros poetas elegíacos arcaicos, Álcman, Píndaro e demais fragmentos mélicos Bailly BAILLY.Dictionnaire grec-français. Paris:Hachette, 2000. Bergk BERGK, T. Poetae Lyric Graeci – II. Leipzig: Teubner, 1882. 12 nota liminar Chantraine CHANTRAINE, P. Dictionaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1999. Davies DAVIES, M. (ed.). Poetarum Melicorum Graecorum Fragmenta. Oxford: Clarendon Press, 1991. G-P GENTILI,B.,PRATO,C. (ed.). Poetae Elegiaci: Testimonia et Fragmenti. Leipzig: Teubner. 1988. LSJ LIDDEL,H.G; SCOTT, R., JONES,S. Greek-English Lexicon with a revised supplement. Oxford: Clarendon Press. 1996. PMG PAGE, D.L. (ed.). Poetae Melici Graeci. Oxford: Oxford University Press, 1962. Sn-M SNELL, B., MAEHLER, H. (eds.) Pindarus – pars altera: fragmenta. Leipzig: Teubner. 1964. Prato PRATO, C. (ed. e estudo). Tirteo. Introduzione, testo critico, testimonianze e commento. Roma: Edizioni dell’ Ateneo. W WEST, M.L. (ed). Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati. Oxford: Oxford University Press. 1992. v. 2. Abreviações de periódicos seguem o padrão do Anée Philologique. Para as traduções de Aristóteles, Ateneu, Diógenes Laércio, Estrabão, Eurípides, Hesíodo, Homero, Horácio, Pausânias, Quintiliano, Platão, Plutarco e Xenofonte as edições utilizadas foram as seguintes: ARISTOTLE. Athenian Constitution, Eudemian Ethics,Virtues and Vices. Trad. H.Rackham. Cambridge: Harvard University Press, 1935. ATHENAEUS. The Deipnosophists I. Books 1-3.106e. Trad. C.B.Gulick. Cambridge: Harvard University Press. 1927. ______ The Deipnosophists VI. Books 13-14.653b. Trad. C.B.Gulick. Cambridge: Harvard University Press, 2009. 13 as elegias de tirteu DIOGENES LAERTIUS. Lives of Eminent Philosophers – I. Books 1-5. Trad. R.D.Hicks. Cambridge: Cambridge University Press, 1925. GRAY, V. (ed. e estudo). Xenophon, On Government. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. HERODOTUS. The Persian Wars III, Books V-VII. Trad. A.D.Goodley, Cambridge: Harvard University Press, 1999. HESIOD. Theogony, Works and Days, Testimonia. Trad. G. Most. Cambridge: Harvard University Press, 2007. HOMER. The Iliad – I. Books I-XII. Trad. A.T.Murray. Cambridge: Harvard University Press, 1975. ______. The Iliad – II. Books XIII-XXIV. Trad. A.T.Murray. Cambridge: Harvard University Press, 1975. ______. The Odyssey – I. Books I-XII. Trad. A.T.Murray. Cambridge: Harvard University Press, 1975. ______. The Odyssey – II. Books XIV-XXIV. Trad. A.T.Murray. Cambridge: Harvard University Press, 1975. HORACE. Satires, Epistles and Ars Poetica. Trad. R. Fairclough. Cambridge: Harvard University Press, 1929. NAUCK, J.A. Tragicorum Graecorum Fragmenta. Leipzig: Teubner, 1892. PLATO. Laws – I. Books 1-6. Trad. G.S.Bury. Cambridge: Harvard University Press, 1926. PLUTARCH. Lives – I , Theseus and Romulus, Lycurgus and Numa, Solon and Publicola. Trad. B.Perrin. Cambridge: Harvard University Press, 1967. QUINTILIAN. The Orator’s Education - IV. Books 9-10. Trad. D.A.Russell. Cambridge: Harvard University Press, 2002. SPIRO, F. (ed.), PAUSANIAS. Graecia Descriptio. Leipzig: Teubner, 1903. 14 nota liminar STEVENS, P.T. Euripides: Edited with Introduction and Commentary. Oxford: Clarendon Press, 1971. STRABO. Geography – IV. Books 8-9. Trad. H.L.Jones. Cambridge: Cambridge University Press, 1927. 15 inTrodução TirTEu E A ElEgiA grEgA ArcAicA A elegia grega arcaica é um gênero de difícil delimitação. Concepções não só modernas, como também antigas, datadas a partir do período clássico (séc. V. a. C), exigem uma depuração de conceitos, o estranhamento de um nome que, se hoje nos diz algo, à época dos gregos arcaicos pode ter sido assimilado de outra maneira. A elegia grega arcaica Em síntese, três termos concorrem para o estabelecimento atual da noção de elegia grega arcaica: ἡ ἐλεγεία (elegeía) τὸ ἐλεγεῖον (elegeîon) e ὁ ἔλεγος (élegos). Por abranger um espectro múltiplo de temas – desde relexões ético-ilosóicas, narrativas míticas a exortações militares, do qual apenas exclui-se a narrativa erótico-pornográica, a didática de cunho direto e factual e a ilosoia natural (West, 1974, p. 18) – o único critério seguro para deinir essa noção é o métrico. Tratase do dístico elegíaco, formado pela conjunção do hexâmetro datílico e do chamado “pentâmetro”, uma unidade métrica composta por dois hemistíquios com dois pés dátilos e meio cada (sendo que o primeiro hemistíquio pode admitir espondeus), formando um “meio hexâmetro”, ou como é tradicionalmente chamado, hemiepes. as elegias de tirteu Contudo, a palavra grega que designa esse critério métrico e que melhor corresponde à elegia grega arcaica no sentido que temos hoje, ἡ ἐλεγεία, é tardia, ocorrendo pela primeira vez em Aristóteles, Constituição de Atenas, 5.2: ἰσχυρᾶς δὲ τῆς στάσεως οὔσης καὶ πολὺν χρόνον ἀντικαθημένων ἀλλήλοις, εἵλοντο κοινῇ διαλλακτὴν καὶ ἄρχοντα Σόλωνα, καὶ τὴν πολιτείαν ἐπέτρεψαν αὐτῷ, ποιήσαντι τὴν ἐλεγείαν ἧς ἐστὶν ἀρχή· γιγνώσκω, καί μοι φρενὸς ἔνδοθεν ἄλγεα κεῖται, πρεσβυτάτην ἐσορῶν γαῖαν Ἰαονίας κλινομένην· Quando as revoltas civis eram intensas e uns assentavam-se contra os outros durante muito tempo, escolheram em comum [acordo], como mediador e arconte, Sólon, e legaram a administração [da cidade] a ele, que fez a elegia cujo começo é: Sei, e no fundo do meu peito jaz a dor, contemplando a mais antiga terra jônia em declínio” O termo τὸ ἐλεγεῖον (elegeíon) é anterior, empregado para deinir o dístico elegíaco ou o “pentâmetro” que o compõe. O plural, τὰ ἐλεγεία, designa extensões de versos em dísticos, a obra completa de um poeta ou inscrições tumulares. É dessa maneira que gramáticos posteriores entenderam a diferença entre ἡ ἐλεγεία (elegeía) e τὸ ἐλεγεῖον (elegeíon), como demonstram os Comentários à Arte Gramática de Dionísio Trácio (p. 173.13): ἐλεγεῖον γάρ ἐστιν, ὅταν εἷς στίχος ὑπάρχῃ καὶ πεντάμετρος, ἐλεγεία δέ, ὅταν ὅλον τὸ ποίημα ἀμοιβαῖα ἔχῃ τὰ μέτρα, ἑξάμετρον καὶ πεντάμετρον. 18 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica Pois é ἐλεγεῖον [=dístico elegíaco] sempre que há um verso no início e então um pentâmetro, e é ἐλεγεία [=elegia] sempre que o poema todo tem metros em alternância, hexâmetro e pentâmetro. Mas o termo mais problemático, e também o primeiro encontrado na literatura grega supérstite, é ἔλεγος, que era utilizado para denominar a canção de lamento acompanhada pelo aulo. Sua conexão com a elegia recebeu formulação mais conhecida na Arte Poética de Horácio (v. 75: versibus impariter iunctis querimonia primum, “primeiro, o lamento era em versos desiguais unidos”), mas já encontrava antecedentes em Dídimo1 e Proclo2. É nesse sentido que Pausânias (Descrição da Grécia, 10. 7. 4-5) teria entendido a palavra, quando menciona que as canções ao aulo e as elegias (ἐλεγεῖα [θρῆνοι]3) foram extintas dos jogos olímpicos por serem “extremamente melancólicas” (σκυθρωπότατα, skuthropótata) e de mau agouro (οὐκ ...εὔφημον, ouk...éuphêmon). O autor recorre a um epigrama do auleta Equêmbroto da Arcádia – vencedor do concurso aulódico de 586 a.C. – para conirmar a sua hipótese: τῆς δὲ τεσσαρακοστῆς ὀλυμπιάδος καὶ ὀγδόης, ἣν Γλαυκίας ὁ Κροτωνιάτης ἐνίκησε, ταύτης ἔτει τρίτῳ ἆθλα ἔθεσαν οἱ 1 2 3 Dídimo (63 a.C – 10 d.C) seria pouco anterior a Horácio. O Etimológico de Órion (58.7) cita seu tratado perdido περὶ ποιητῶν, que deinira ἔλεγος como θρῆνος e Arquíloco, Calino ou Mimnermo como os seus possíveis εὑρεταί. Fócio, Biblioteca 319b.8-9: τὸ γὰρ θρῆνος ἔλεγον ἐκάλουν οἱ παλαιοὶ καὶ τοὺς τετελευτηκότας δι’ αὐτοῦ εὐλόγουν (Pois os antigos chamavam de élegos o treno, e elogiavam com ele os falecidos). Ver Gentili, “Epigramma ed Elegia”, Fondation Entretiens Hardt XIV, 1967, p. 51. O texto de Pausânias traz a palavra θρῆνοι (thrênoi, “treno”), mas a maioria dos editores a exclui considerando-a uma glosa acrescentada ao texto original (ver Gerber, D. 1997, p. 95). 19 as elegias de tirteu Ἀμφικτύονες κιθαρῳδίας μὲν καθὰ καὶ ἐξ ἀρχῆς, προσέθεσαν δὲ καὶ αὐλῳδίας ἀγώνισμα καὶ αὐλῶν· ἀνηγορεύθησαν δὲ νικῶντες Κεφαλήν τε Μελάμπους κιθαρῳδίᾳ καὶ αὐλῳδὸς Ἀρκὰς Ἐχέμβροτος, Σακάδας δὲ Ἀργεῖος ἐπὶ τοῖς αὐλοῖς· ἀνείλετο δὲ ὁ Σακάδας οὗτος καὶ ἄλλας δύο τὰς ἐφεξῆς ταύτης πυθιάδας. ἔθεσαν δὲ καὶ ἆθλα τότε ἀθληταῖς πρῶτον, τά τε ἐν Ὀλυμπίᾳ πλὴν τεθρίππου καὶ αὐτοὶ νομοθετήσαντες δολίχου καὶ διαύλου παισὶν εἶναι δρόμον. δευτέρᾳ δὲ πυθιάδι οὐκ ἐπὶ ἄθλοις ἐκάλεσαν ἔτι ἀγωνίζεσθαι, στεφανίτην δὲ τὸν ἀγῶνα ἀπὸ τούτου κατεστήσαντο· καὶ αὐλῳδίαν <τό>τε κατέλυσαν, καταγνόντες οὐκ εἶναι τὸ ἄκουσμα εὔφημον· ἡ γὰρ αὐλῳδία μέλη τε ἦν αὐλῶν τὰ σκυθρωπότατα καὶ ἐλεγεῖα [θρῆνοι] προσᾳδόμενα τοῖς αὐλοῖς. μαρτυρεῖ δέ μοι καὶ τοῦ Ἐχεμβρότου τὸ ἀνάθημα, τρίπους χαλκοῦς ἀνατεθεὶς τῷ Ἡρακλεῖ τῷ ἐν Θήβαις· ἐπίγραμμα δὲ ὁ τρίπους εἶχεν· Ἐχέμβροτος Ἀρκὰς θῆκε τῷ Ἡρακλεῖ νικήσας τόδ’ ἄγαλμ’ Ἀμφικτυόνων ἐν ἀέθλοις, Ἕλλησι δ’ ἀείδων μέλεα καὶ ἐλέγους.4 No terceiro ano da quadragésima oitava olimpíada, a que Gláucias de Crotona venceu, os Anictiões estabeleceram concursos de citaródia desde o começo, e além disso, também acrescentaram competições de aulos e de aulodia. Foram proclamados vencedores Melampo da Cefalênia na citaródia, o auleta Equêmbroto de 4 West assim estabelece o texto e supõe se tratar de um poema composto em metros eólicos e não em dísticos elegíacos, como Spiro (1903) em sua edição de Pausânias. 20 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica Arcádia, e Sacadas de Argos na competição de aulos. Este Sacadas também conquistou as outras duas Pitíadas depois dessa. Nessa época também estabeleceram pela primeira vez prêmios para os atletas nos jogos em Olímpia (exceto a corrida de quadrigas) além de ter instituído eles próprios a corrida de longo percurso e trajeto duplo para crianças. Na Pitíada seguinte, não chamaram mais para competir por prêmios. Depois dela, estabeleceram a coroação como prêmio das competições e revogaram a aulodia, pois julgaram que o som não era de bom agouro. Pois a aulodia e as canções dos aulos eram extremamente melancólicas, e elegias [os trenos] eram cantadas com os aulos. Meu testemunho é o ex-voto de Equêmbroto, uma trípode de bronze dedicada à Héracles em Tebas. A trípode continha a inscrição: Equêmbroto da Arcádia dedicou à Héracles esta dádiva ao vencer nos jogos dos Anictiões, cantando aos gregos canções e lamentos. Ao analisar as ocorrências de cada termo, West (1974, p. 4) conclui que ἐλεγεῖον, por ter na base de sua deinição o elemento métrico, poderia apenas ter derivado de ἔλεγος (élegos, “lamento”), em um processo similar ao sofrido por ἰαμβεῖον (iambeíon) e ἴαμβος (íambos). A asserção coloca um problema, já observado por West (1974, p. 7): como situar ἔλεγος na base do termo elegia, uma vez que no corpus sobrevivente de poemas elegíacos arcaicos não há peça signiicativa que seja representante de um lamento? 21 as elegias de tirteu West soluciona a questão estabelecendo que os versos em metro elegíaco não eram antes do século V a.C. conhecidos por qualquer termo especíico senão pelo genérico ἔπη, que poderia designar simplesmente versos, visto que para West a ocasião e função dessa poesia é múltipla. Mas E. L. Bowie rejeita esta hipótese em seu artigo “Early Greek Elegy, Symposium and Public Festival” (1986, p. 27), observando em primeiro lugar que a poesia elegíaca teria, sim, uma ocasião privilegiada (o simpósio, ver abaixo, p. 31) e que o uso de ἔπη para designá-la era raro, empregado apenas na última década do século V por Heródoto para referir-se aos versos de Sólon (5.113.2), talvez porque o próprio poeta já se referisse a eles assim (fr. 1. 2 W). Ele conclui que ἔλεγος poderia ser, pelo menos até meados de 420 a.C, um termo apropriado para a elegia grega arcaica tal como a entendemos hoje, sem relação necessária com o lamento. Seu sentido geral seria de “canção geralmente acompanhada pelo aulo e entoada principalmente no simpósio” ou simplesmente “canção acompanhada pelo aulo”. Com o surgimento de ἐλεγεῖον no inal do século V, este passa a ser utilizado irrestritamente em detrimento de ἔλεγος, que já havia adquirido então o sentido de canção lutuosa e não mais serviria para classiicar inequivocamente o tipo de poesia composta em dísticos elegíacos.5 5 Como se observa em Eurípides, que usa ἔλεγος não para designar um gênero, mas somente o lamento: ver Troianas v. 119 (δακρύων ἐλεγούς, dakrúôn élegoús, “lácrimes lamentos”) e Iigênia em Táuris, v. 146 (ἀλύροις ἐλέγοις, alúrois elégois, lamentos sem lira). Talvez por ἀλύροις Eurípides queira referir-se a cantos acompanhados pelo aulo, e esse é o entendimento de Aristóteles (Retórica, 1408 a). Ver também Aléxis, fr. 356K: φθόγγους δ’ ἀλύρους/ θρηνοῦμεν (cantamos nênias/ sonoras sem lira). 22 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica Essa leitura de Bowie ainda é prevalecente hoje em dia6, mas uma teoria proposta por Denys Page em 1936, no artigo “The Elegiacs in Euripides’ Andromache” (pp. 206-230) voltou a ser aceita e debatida mais avidamente, revivida em grande medida graças à descoberta de novos fragmentos de Simônides a respeito da Batalha de Plateia. O estudioso argumentava sobre a existência de uma escola dórica de poesia, que compunha lamentos em versos elegíacos e da qual Equêmbroto da Arcádia e Sacadas de Argos seriam os únicos representantes que nos chegaram. Os versos 103-116 da Andrômaca de Eurípides aludiriam a essa tradição dórica da prática da elegia lutuosa: Ἰλίωι αἰπεινᾶι Πάρις οὐ γάμον ἀλλά τιν’ ἄταν ἀγάγετ’ εὐναίαν ἐς θαλάμους Ἑλέναν. ἇς ἕνεκ’, ὦ Τροία, δορὶ καὶ πυρὶ δηϊάλωτον εἷλέ σ’ ὁ χιλιόναυς Ἑλλάδος ὠκὺς Ἄρης καὶ τὸν ἐμὸν μελέας πόσιν Ἕκτορα, τὸν περὶ τείχη εἵλκυσε διφρεύων παῖς ἁλίας Θέτιδος· αὐτὰ δ’ ἐκ θαλάμων ἀγόμαν ἐπὶ θῖνα θαλάσσας, δουλοσύναν στυγερὰν ἀμφιβαλοῦσα κάραι. πολλὰ δὲ δάκρυά μοι κατέβα χροός, ἁνίκ’ ἔλειπον ἄστυ τε καὶ θαλάμους καὶ πόσιν ἐν κονίαις. ὤμοι ἐγὼ μελέα, τί μ’ ἐχρῆν ἔτι φέγγος ὁρᾶσθαι Ἑρμιόνας δούλαν; ἆς ὕπο τειρομένα πρὸς τόδ’ ἄγαλμα θεᾶς ἱκέτις περὶ χεῖρε βαλοῦσα τάκομαι ὡς πετρίνα πιδακόεσσα λιβάς. 6 Ver Gerber, 1997, p. 96 e Aloni, 2009, p. 169. 23 (105) (110) (115) as elegias de tirteu À íngreme Ílion Páris não trouxe núpcias, mas ruína, ao levar Helena ao seu tálamo como esposa. Por causa dela, ó Troia, por ferro e fogo prisioneira, (105) tomou-te o ágil Ares de mil naus gregas e – pobre de mim! – ao meu marido Heitor, ao redor dos muros o ilho da marinha Tétis arrastou em seu carro; eu mesma, do tálamo fui levada às margens do mar, com a escravidão odiosa a cingir-me a fronte. (110) Do rosto verti copioso pranto, quando deixei cidade, leito e marido na poeira. Ai, pobre de mim! Porque eu deveria ainda ver a luz do sol, como escrava de Hermíone? Oprimida por ela, abracei essa estátua da Deusa, como suplicante, (115) e esvaio em lágrimas, qual fonte manando das pedras. É também muito importante para a teoria de Page o tratado περὶ μουσικῆς de Plutarco7, que atesta a existência de um nomo chamado ἔλεγος, que teria se desenvolvido no Peloponeso, e que provavelmente fora nomeado por Clonas de Tégea, um poeta épico e elegíaco8. Embora, como note Bowie (1986, p. 24) e Gentili (1967, p. 52), Plutarco não faça qualquer relação explícita entre ἔλεγος e lamento e nem admita que os dísticos elegíacos eram o metro exclusivo do nomo ἔλεγος, ele menciona a existência de um nomo κραδίας (kradías, “da igueira”)9, um nomo que, pelo 7 8 9 Para debates acerca da autoria desse texto a Plutarco, ver Rocha Júnior, O Perì Mousikês de Plutarco: tradução, introdução e notas, pp. 15-30, 2007. ἐλεγείων τε καὶ ἐπῶν ποιητὴν, Sobre a Música § 3. E outro nomo antigo é o chamado Crádias, o qual Hipônax diz que Mimnermo tocou no aulo. Pois na origem os auledos cantavam elegias musicadas (Trad. de Roosevelt Araújo da Rocha Júnior, 2007). 24 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica contexto em que seria entoado – a procissão dos phármakoi – poderia ser efetivamente dotado de um caráter lamentoso. Muitos estudiosos demonstraram ceticismo às hipóteses de Page10, mas as objeções mais fortes foram levantadas por Bruno Gentilli, em “Epigramma ed Elegia” em L’ Épigramme Grecque, Fondation Hardt Entretiens XIV (1967, pp. 52-64). O principal argumento destes críticos é que não há evidências substanciais no corpus elegíaco sobrevivente para comprovar a existência de tal escola. Esta é também a opinião de Fowler (1987, p. 87) que julga ser improvável que o nome de um gênero eminentemente jônico fosse dado a partir de uma obscura tradição dórica. E. L. Bowie, em “Ancestors of Historiography in Greek Elegiac and Iambic Poetry?” em The Historian Craft in the age of Herodotus (2001, p. 53), discorda da teoria de Page e acredita que os dísticos elegíacos da Andrômaca seriam uma alusão a uma elegia narrativa composta por Sacadas de Argos, denominada Queda de Troia e referida por Ateneu (Banquete dos Eruditos, 13.610 c). A teoria é interessante – uma vez que há pressupostos para crer que a primeira performance da Andrômaca tenha se dado em Argos11 – mas é de tão difícil comprovação quanto a de Page. A. E. Harvey, em seu artigo “The Classiication of Greek Lyric” (1955, p. 170) adere à hipótese de Page, airmando que tanto o gênero trenódico quanto a elegia apresentam conselhos, relexões e exortações. Para o estudioso, a elegia não lutuosa teria desenvolvido outros temas a partir da lutuosa, mantendo, no 10 11 Ver, por exemplo, Friedlander e Holeit, Epigrammata 1948, p. 66; Bowie, 1986, pp. 23-25, Fowler, 1987, The Nature of Early Greek Lyric: Three Preliminary Studies, p. 87. Ver Stevens, P.T. Euripides Andromache, Edited with an Introduction and Commentary, p. 20. 25 as elegias de tirteu entanto, o tom relexivo e exortatório que caracterizaria ambas. Mesmo assim, como Harvey não oferece nenhum novo argumento, o problema da teoria de Page se mantém. Recentemente, Cristopher A. Faraone procurou reforçar a teoria de Page em The Stanzaic Architecture of Early Greek Elegy (2008, p. 137), oferecendo alguns possíveis candidatos. O autor airma que “os dísticos elegíacos peloponésios cantados em estrofes foram utilizados por mulheres para inúmeros propósitos rituais, incluindo lamentos e hinos”. Faraone relembra o Hino ao Banho de Palas de Calímaco, uma elegia também composta em dialeto dórico12 e que constituiria uma imitação em literatura erudita dos cantos peloponésios em dísticos elegíacos. Alguns estudiosos anteriores a Faraone 13 já haviam visto influências desta possível escola de elegias trenódicas ao analisarem a narrativa de Tirésias presente no Hino (vv. 70-136). Na passagem, a mãe de Tirésias, Cariclo, se queixa da crueldade de Atena e lamenta a sorte do ilho, que perdera a visão por contemplar, ainda que involuntariamente, a deusa nua. Mas um olhar mais atento à passagem, como mostra Anthony W. Bulloch em Callimachus Fifth Hymn (1985, pp. 33-34), revela que o lamento não é o enfoque da elegia (restringindo-se a apenas dez versos, 85-95), e tampouco a narrativa se assemelharia a uma canção fúnebre: o poema apresenta uma conclusão positiva com a intervenção de Atena nos versos inais (vv. 120-136), oferecendo dádivas compensatórias à cegueira de Tirésias. Assim, embora o Hino ao Banho de Palas pudesse de fato ter sido inluenciado por 12 13 E não em jônico, como esperado. Ver pp. 153-154. Heinze,em 1919, foi o primeiro a propor uma conexão do quinto hino de Calímaco e a tradição elegíaca do lamento (“Ovids elegische erzähung”, 95.1 em Bulloch, A, p. 33, 1985). 26 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica tradições rituais do Peloponeso, nada nele indica que tais tradições seriam trenódicas. A outra evidência de Faraone seria uma inscrição em um monumento funerário coletivo (poluandrion) datado do século VI a.C e encontrado em Ambrácia, o “Poliândrio de Ambrácia”. O monumento contém dez versos em dístico elegíaco, chamando a atenção por ser proveniente de um período em que a maioria dos epitáios não ultrapassava quatro versos14: ἂνδρας [τ] ούσδε [ἐ]σθλοὺς ὀλοφύρομαι, οἶσι Πυραιβῶν παίδες ἐμητίσαντ’ ἀ[λ]γινοέντα φόνον ἀνγε[λ]ίαν μετιόντας ἀπ εὐρυχορο[ιο Κορίνθου] [. . . . . . . ] [. . . . . . . . ] (5) πατρίδ’ ἀν ἱμερτὰν πένθος ἔθαλλε τότε. tώδε δ απ’ Ἀνπρακίας, Ναυσίστατον, αὐτα παθόντε, Καλλίταν τ’ Ἀίδα δῶμα μέλαν κατέχει. καὶ μὰν Ἀραθθίωνα καὶ Εὒξενον ἲστε, πολῖται, ὡς μετὰ τῶνδ ἀνδρῶν Κὰρ ἔκιχεν θανάτου.15 (10) Por estes valentes varões eu choro, a quem os ilhos de Pirebo tramaram uma d[o]lorosa morte, enquanto seguiam uma embaixada da espaç[osa Corinto] [. . . . . . . ] [. . . . . . . . ] e então o luto lorescia na encantadora pátria. 14 15 (5) Ver West, 1974, p. 2: “Antes das Guerras Pérsicas, é raro encontrar um epigrama mais longo do que quatro versos”. Utilizo a edição revisada do texto, conforme apresentada em D’Alessio, 1995, Sull’ Epigrama dal Polyandrion di Ambracia, p. 26. 27 as elegias de tirteu Ambos de Ambrácia, ambos padeceram do mesmo destino, [Nausístrato e Cálite; retêm-nos a negra casa do Hades. E sim, sabei, cidadãos, que em companhia desses varões, a Sina da morte pegou Arácion e Euxeno. (10) O epitáio aos embaixadores de Ambrácia reúne características que estimularam os estudiosos16 a reavaliarem a conexão entre lamento e elegia, e, portanto, a revalidar a hipótese de uma escola de elegia trenódica no Peloponeso. Dentre elas, poder-se-ia elencar: o dialeto dórico, próprio da região de Ambrácia; o uso de um formulário comum à elegia grega arcaica, como em Κὰρ ἔκιχεν θανάτου (v. 10), que relembra a fórmula pentamétrica μοῖρα ἔκιχεν θανάτου17; o emprego de uma primeira pessoa (v. 1, ὀλοφύρομαι) que se dirige aos cidadãos de Ambrácia (v. 9, πολῖται), um expediente mais utilizado na elegia18 do que no epigrama funerário arcaico, que emprega com mais frequência a segunda pessoa 19. Faraone também nota a presença de um verbo durativo (ὀλοφύρομαι) em conjunto com uma perspectiva passada do luto, veriicada em πατρίδ’ ἀν ἱμερτὰν πένθος ἔθαλλε τότε (v. 6) e entende este recurso como um traço formal da elegia trenódica 16 Ver Cassio, A.C. 1994, apud Faraone, 2008, pp. 133, 135. 17 Ver Tirteu 7.2 W. 18 Ver, por exemplo, Tirteu fr. 10.15W; Sólon fr. 4.5-6W. 19 Ver West, 1974, p. 2: “O poeta suprime a sua personalidade; verbos em primeira pessoa regularmente têm o objeto inscrito ou o indivíduo morto como seu sujeito, enquanto aqueles em segunda pessoa dirigem-se a quem quer que leia a inscrição”. 28 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica (p. 135), não só porque evoca o lamento de Andrômaca20, mas também o fragmento 13 W de Arquíloco, que alterna referências passadas de um desastre no mar (vv. 3-4) com o luto atual na cidade (v. 1, vv. 4 -5): κήδεα μὲν στονόεντα, Περίκλεες, οὔτε τις ἀστῶν μεμφόμενος θαλίηις τέρψεται οὐδὲ πόλις· τοίους γὰρ κατὰ κῦμα πολυφλοίσβοιο θαλάσσης ἔκλυσεν· οἰδαλέους δ᾽ ἀμφ᾽ ὀδύνηισ᾽ ἔχομεν πνεύμονας (...) (5) Nosso gemente luto, Péricles, nenhum dos cidadãos censurando se alegrará em festas, e nem a cidade. Pois tais homens as ondas do mar políssono engolfaram: e temos os pulmões túrgidos de dores. (...) (5) Mas o que Faraone julga como conclusivo é o fato de que tanto o epitáio do Poliândrio de Ambrácia quanto os primeiros dez versos do lamento de Andrômaca se adequam à sua teoria de que a elegia grega era constituída por estrofes de cinco dísticos, e o uso do dialeto dórico em ambos fornece um argumento para a proposição de Page de que Eurípides estaria reletindo na Andrômaca uma antiga tradição trenódica do Peloponeso. Gregory Nagy em “Ancient Greek Elegy” (2009, p. 23) tenta buscar na épica homérica antecedentes para a elegia trenódica, que ele deine como um canto lutuoso monódico e proissionalizado, 20 Ver a profusão de verbos no passado, quando Andrômaca relembra a tomada de Troia (vv. 103-115) e o presente τάκομαι, no verso 116. Ver Faraone, p. 135. 29 as elegias de tirteu entoado exclusivamente por homens, e que é respondido por um coro, não proissional e principiado por homem ou mulher. Esse processo seria veriicado no contexto da Ilíada, que utiliza θρῆνος (thrênos, “treno” ou “canto fúnebre”) sempre em um sentido mais técnico – signiicando o lamento proissional – e reserva o termo γόος (góos, “lamento”) para o canto responsivo amador que vem em sua sequência, geralmente acompanhado pela fórmula ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες (“e em seguida, as mulheres pranteavam”). Os versos 720-723 do Canto 24 da Ilíada são um exemplo claro dessa dinâmica21: τρητοῖς ἐν λεχέεσσι θέσαν, παρὰ δ’ εἷσαν ἀοιδοὺς θρήνων ἐξάρχους, οἵ τε στονόεσσαν ἀοιδὴν οἳ μὲν ἄρ’ ἐθρήνεον, ἐπὶ δὲ στενάχοντο γυναῖκες τῇσιν δ’ Ἀνδρομάχη λευκώλενος ἦρχε γόοιο (720) em leito cordado puseram-no, e ao lado assentaram os cantores (720) regentes dos trenos. Uma gemente canção eles entoavam, e as mulheres pranteavam em resposta. E entre elas Andrômaca de níveos braços começava o lamento. Nagy (2009, p. 12) entende que esse “pranto em resposta” seria a representação dada pela épica a um γόος em dístico elegíaco, visto que é característico do épos subsumir outras formas métricas ao seu próprio metro22. Para Nagy, a fundação da elegia como gênero adviria com a proissionalização desse γόος, que passaria a ser entoado principalmente por homens nos simpósios, 21 22 Além do γόος de Andrômaca (24.725-745) outros exemplos citados por Nagy são: Ilíada 19.282-302 (Briseida); 24.748-759 (Hécuba); 24.763-775 (Helena). Ver Richard Martin, The Language of Heroes, 1989, pp. 12-42. 30 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica em uma ocasião deslocada de seu ambiente original (o funeral) e em um contexto de cantos monódicos, não mais corais – o que possibilitaria a abundância de temas que constitui a elegia grega arcaica, e também a sua reelaboração em outro espaço de performance, como o festival público. Nesse sentido, embora o lamento possa continuar a fazer parte do horizonte desta espécie de elegia (como mostra Arquíloco 13 W), torna-se um lamento estilizado (Ver Nagy, 2009, p. 36), que leva em consideração o seu próprio ambiente simpótico23. Independente de seguirmos ou não a hipótese de Nagy, é notável que a sua leitura tente conciliar a proposta de uma elegia trenódica com um aspecto deinidor do gênero: a ocasião de performance, isto é, o ambiente de destinação e produção de um poema – que, no caso da elegia, resumir-se-ia ao simpósio. A elegia e sua ocasião de performance Em meados da década de 60, no artigo “The poetry of Archilochos”, Kenneth Dover sugeriu, dada certa coincidência de éthos entre composições elegíacas e jâmbicas de Arquíloco, que o único traço comum para a deinição genérica de seus poemas seria a ocasião para a qual foram compostos (1964, p. 189). Desde então, consoante aos trabalhos que se seguiram a esse estudo e ao de Martin L. West sobre a elegia grega arcaica e clássica em 23 Nagy conclui que há uma relação do fragmento 13 W com o simpósio a partir da presença de palavras como θαλίηις (v. 2), entendida pelo erudito como um sinônimo de simpósio, como poderiam demonstrar por exemplo, também os versos 983-988 da Teognideia e os versos 56 e 454 do Hino Homérico a Hermes. O verbo ἔθαλλε no Poliândrio de Ambrácia(v. 5) seria, ainda, para Nagy (p. 38) uma maneira encontrada pelo poeta de manter na inscrição epigráica o referente simpótico. 31 as elegias de tirteu Studies in Greek Elegy and Iambus (1974, pp. 10-13), acredita-se que para a interpretação de um gênero poético na Grécia do período arcaico (séc. VII a.C- V a.C) é necessário pensar também na ocasião de performance de um poema, além de seu metro e linguagem. Os estudos dos últimos anos assinalam que quase toda a lírica monódica do período arcaico – incluindo sob essa categoria a poesia elegíaca – tivera o simpósio24 como seu espaço de performance original. Ewen Bowie, em “Early Greek Elegy, Symposium and Public Festival” (1986, pp. 19-21), por exemplo, demonstra que as evidências que se pode depreender de fragmentos supérstites atestam tão somente o simpósio como ambiente propício à prática de elegias breves. O erudito menciona os versos 237-243 do corpus de elegias atribuído a Teógnis, a Teognideia. O poeta anuncia aο seu eromenos Cirno que seus versos são alados dons de Musas que o farão transpor os limites do tempo e do espaço, pois seu nome será eternamente celebrado por toda a terra grega. E o local dessa celebração remete propriamente ao simpósio – banquetes e festins integrados por belos jovens com aulos, instrumento da elegia: Σοὶ μὲν ἐγὼ πτέρ’ ἔδωκα, σὺν οἷσ’ ἐπ’ ἀπείρονα πόντον πωτήσηι, κατὰ γῆν πᾶσαν ἀειρόμενος ῥηϊδίως· θοίνηις δὲ καὶ εἰλαπίνηισι παρέσσηι 24 Entendo o simpósio (συμπόσιον, symposion) como uma festividade altamente ritualizada, com regras especíicas, que se dava após o banquete propriamente dito (δεῖπνον, deipnon) e privilegiava o ato de beber. Era composto por pequenos grupos de homens aristocratas e dominado, ao mesmo tempo, por um forte sentimento de coesão e competição (Ver Wecowski 2002, pp. 337-361, sobretudo 337-338). 32 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica ἐν πάσαις πολλῶν κείμενος ἐν στόμασιν, καί σε σὺν αὐλίσκοισι λιγυφθόγγοις νέοι ἄνδρες εὐκόσμως ἐρατοὶ καλά τε καὶ λιγέα ἄισονται. Eu te dei asas, com as quais sobre o inindo mar voarás, e por toda a terra, elevando-se facilmente; em todos os banquetes e festins estarás presente, reclinado sobre os lábios de muitos, e com aulos, lautins harmoniosos, rapazes atraentes com beleza e harmonia em ordem te celebrarão. (240) (240) Todavia, quanto ao contexto de apresentação das elegias de cunho militar exortatório, cujos autores mais signiicativos são Calino de Éfeso e Tirteu de Esparta25, algumas questões são continuamente levantadas. Segundo West (1974, p. 10), as elegias exortativas de Tirteu eram entoadas em um momento precedente à batalha, na qual “os guerreiros são exortados a ter coragem e a conquistar glória”, mas não há qualquer alusão direta a essa ocasião nos fragmentos que nos foram transmitidos. West recorre a dois testemunhos para o estabelecimento de uma ocasião de performance para a elegia marcial. O primeiro é datado do século IV a.C. Trata-se do opúsculo Contra Leócrates (§ 107), de Licurgo. Nele, o orador menciona que em sua época era um nomos espartano a récita de poemas de Tirteu na tenda do rei : καὶ περὶ τοὺς ἄλλους ποιητὰς οὐδένα λόγον ἔχοντες, περὶ τούτου οὕτω σφόδρα ἐσπουδάκασιν, ὥστε νόμον ἔθεντο, ὅταν 25 Outras elegias incluídas neste grupo podem ter sido o fragmento 3 W de Arquíloco e o 14 W de Mimnermo (Ver West, 1974, p. 10). 33 as elegias de tirteu ἐν τοῖς ὅπλοις {ἐκστρατευόμενοι} ὦσι, καλεῖν ἐπὶ τὴν τοῦ βασιλέως σκηνὴν ἀκουσομένους τῶν Τυρταίου ποιημάτων ἅπαντας, νομίζοντες οὕτως ἂν αὐτοὺς μάλιστα πρὸ τῆς πατρίδος ἐθέλειν ἀποθνῄσκειν. χρήσιμον δ’ ἐστὶ καὶ τούτων ἀκοῦσαι τῶν ἐλεγείων, ἵν’ ἐπίστησθε οἷα ποιοῦντες εὐδοκίμουν παρ’ ἐκείνοις· Embora não tivessem em conta alguma os outros poetas, por ele [scil. Tirteu] tiveram um interesse tão veemente que outorgaram uma lei (nomos) que, quando estivessem em armas, {fazendo uma expedição militar}, convocava todos à tenda do rei para ouvirem os poemas de Tirteu, presumindo que assim eles desejariam ao máximo morrer pela terra pátria. É-vos útil ouvir destes dísticos elegíacos, de modo a vos persuadires quanto ao tipo de poesia que era apreciada entre eles [scil. Espartanos] (…) Contudo, a citação de Licurgo é anacrônica para a análise das ocasiões de performance de elegias no período arcaico, por relatar um procedimento bem posterior à época em que se estima a atividade poética de Tirteu. Um testemunho do historiógrafo Filocoro de Atenas (Fr. Gr. Hist. 328 F 216) encontrado no Banquete dos Eruditos de Ateneu (XIV, 630 ss.) é então aduzido por West para corroborar que a prática espartana já retrocedia ao sétimo século. Filocoro airma que o hábito de entoar os poemas de Tirteu nas expedições espartanas surgira logo após a vitória sobre os messênios, o que teria se dado em meados do século VII a.C : Φιλόχορος δὲ φήσιν κρατήσαντας Λακεδαιμονίους Μεσσηνίων διὰ τὴν Τυρταίου στρατηγίαν ἐν ταῖς στρατείας ἔθος ποιήσασθαι, ἄν δειπνοποιήσωνται καὶ παιανίσωσιν. ἅδεν καθ 34 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica ’ ἕνα τά Τυρταίου. κρίνειν δὲ τὸν πολέμαρχον ἄθλον διδόναι τῶι νικῶντι κρέας . E Filocoro diz que os lacedemônios, depois de vencerem os messênios pela liderança de Tirteu, estabeleceram um hábito em suas campanhas militares: sempre depois de jantarem e entoarem o peã, cantariam um por um os poemas de Tirteu. O polemarca julgaria e daria carne ao vencedor como prêmio. De modo geral, os testemunhos recolhidos por West informam que a performance das elegias de Tirteu se dava quando os soldados estavam em campanha. Por outro lado, nada nas fontes parece sugerir que a elegia exortativa marcial seria apresentada em uma ocasião precedente à batalha. A única elegia marcial que pode trazer alguma referência a um ambiente de performance especíico é o mais longo fragmento de Calino de Éfeso (1 W), que em seus quatro primeiros versos traz: μέχρις τέο κατάκεισθε; κότ’ ἄλκιμον ἕξετε θυμόν, ὦ νέοι; οὐδ’ αἰδεῖσθ’ ἀμφιπερικτίονας ὧδε λίην μεθιέντες; ἐν εἰρήνηι δὲ δοκεῖτε ἧσθαι, ἀτὰρ πόλεμος γαῖαν ἅπασαν ἔχει Até quando icais acomodados? Quando tereis um ânimo valente, jovens? Não tendes vergonha de seus convizinhos, assim folgados em excesso? Em paz pareceis vos assentar, mas a guerra ocupa toda a terra. Os termos utilizados pelo poeta elegíaco parecem remeter precisamente ao simpósio. No primeiro verso, emprega-se o verbo κατάκειμαι (katákeimai). Este verbo é utilizado como uma sinédoque para um estado de ociosidade e inação, mas seu sentido 35 as elegias de tirteu primeiro denota simplesmente o ato de acomodar ou reclinar-se, que é o mesmo verbo empregado para designar a postura dos convivas no simpósio. Adkins (1977, p. 69) observa que o termo ocorre na Ilíada e na Odisseia e utilizado apenas literalmente, com o sentido de “estar deitado” 26. Dentre os textos de que temos notícia, essa sinédoque é atestada pela primeira vez somente em Xenofonte27, como mostra Gennaro Tedeschi em “L’ Elegia Parenetica-Guerriera a il Simpósio” (1978, p. 95). Segundo o autor, κατάκειμαι é um termo técnico empregado para designar o ato de sentar-se reclinado em simpósio, do mesmo modo que verbos como κλίνομαι e κατάκλινομαι. Há exemplos desse uso nos versos 515-516 da Teognideia: τῶν δ’ ὄντων τἄριστα παρέξομεν· ἢν δέ τις ἔλθηι σεῦ φίλος ὤν, κατάκεισ’, ὡς φιλότητος ἔχεις. (515) Oferecerei o que há de melhor: se algum amigo teu chegar, acomoda-o, conforme a estima. (515) Bowie em “Miles ludens? The problem of martial exhortation in early greek elegy” (1990, p. 223) acredita que o sentido literal é o mais adequado, pois a acusação de ociosidade feita pelo poeta à 26 27 Adkins encontra sete ocorrências na Ilíada e na Odisseia: Il.17.677; 24.10; Od.11.45, 10.532, 19.439 e três no Hino Homérico a Hermes: H.Merc. 254, 324, 358. Curiosamente, três ocorrências da palavra na Odisseia (7.188, 18. 409 e 18.419) – as duas primeiras usadas em um contexto de banquete – não são registradas pelo estudioso. An. 3,1, 14: ἀλλὰ κατακείμεθα ὥσπερ ἐξὸν ἡσυχίαν ἄγειν, Mas reclinamo-nos como se fosse possível estar tranquilos). 36 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica sua audiência não condiz com um ambiente precedente à batalha, em que os esforços já estariam concentrados na atividade bélica, o que seria até mesmo impróprio como uma exortação à luta. Por conseguinte, seria preciso supor antes um contexto de relaxamento, e tal contexto, dadas as fontes e testemunhos oferecidos, provavelmente seria o simpósio. μεθιέντες (methiéntes, “relaxados”, verso 3) e ἧσθαι (hésthai, “estar sentado”, verso 4) também não são termos estranhos a uma ocasião simposial: ambos contêm a mesma literalidade de κατάκεισθε e prolongam a ideia apresentada por este verbo. Embora não tenha encontrado muita adesão entre os estudiosos28, a ideia de que poderiam existir elegias marciais destinadas ao simpósio não é nova, e segue, em princípio, hipóteses já lançadas por Richard Reitzenstein em Epigramm und Skolion, no im do século XIX (1893, p. 50), e também Cecil M. Bowra em Early Greek Elegists (1938, p. 14). West (1974, p. 11) não dá um veredito a respeito da ocasião de performance da elegia marcial, mas reconhece a possibilidade do simpósio ser um cenário propício para poesias de caráter exortativo, referindo-se a uma passagem da Teognideia (vv. 825-830) que apresenta uma situação similar à de Calino 1 W : Πῶς ὑμῖν τέτληκεν ὑπ’ αὐλητῆρος ἀείδειν θυμός; γῆς δ’ οὖρος φαίνεται ἐξ ἀγορῆς, ἥτε τρέφει καρποῖσιν ἐν εἰλαπίναις φορέοντας ξανθῆισίν τε κόμαις πορφυρέους στεφάνους. 28 (825) Verdenius (1969, p. 2) argumenta, com Fränkel (1975, p. 153), que o poema não ocorreria necessariamente em um simpósio e como argumento cita passagens da Ilíada (2.797, 4.371, 5.782-83). Ver também Campbell (1982, p. 163). 37 as elegias de tirteu ἀλλ’ ἄγε δή, Σκύθα, κεῖρε κόμην, ἀπόπαυε δὲ κῶμον, πένθει δ’ εὐώδη χῶρον ἀπολλύμενον. (830) Como vosso ânimo suporta o cantar do auleta? O limite da terra revela-se da ágora, que nutre com frutos os que portam nos festins coroas púrpuras nos cabelos louros. Eia, Cita, vamos! Corta teu cabelo, cessa o cortejo, lamenta o lugar pefumado que te arruína. Mas qual seria a função no contexto de simpósio de uma poesia que tem como um dos seus temas centrais a exortação à coragem militar? Bowie (1990, p. 228) recorre à Teognideia para demonstrar que o tema podia ser utilizado no ambiente simpótico, mesmo quando hostilidades não estivessem à vista (885-890): εἰρήνη καὶ πλοῦτος ἔχοι πὀλιν, ὄφρα μετ` ἄλλων κωμάζοιμι . κακοῦ δ`οὐκ ἕραμαι πολἐμου. (885) Que paz e riqueza mantenham a cidade, para que eu festeje com os outros: não gosto da guerra má ! (885) μηδὲ λίην κήρυκος ἀν’ οὖς ἔχε μακρὰ βοῶντος· οὐ γὰρ πατρώιας γῆς πέρι μαρνάμεθα. Não dê muito ouvidos aos brados do arauto: nós não lutamos pela terra pátria. ἀλλ’ αἰσχρὸν παρεόντα καὶ ὠκυπόδων ἐπιβάντα ἵππων μὴ πόλεμον δακρυόεντ’ ἐσιδεῖν. (890) É torpe quem se apresenta e marcha com celerípedes corcéis para não encarar a guerra lácrima. (890) 38 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica Os exemplos da Teognideia apresentam três atitudes contrastantes diante da guerra, que demonstram como essa tópica poderia ser trabalhada na ocasião do simpósio. 29 Bowie conclui assim que não seria estranho pensar na elegia marcial sendo apresentada nos simpósios de qualquer cidade grega, uma vez que a guerra também dizia respeito ao simposiasta – ao mesmo tempo um cidadão e um soldado. Consideradas tais hipóteses, resta pensar em que medida elas seriam aplicáveis às elegias exortativas de Tirteu, tendo em vista que muitos estudiosos, amparados por testemunhos antigos30, atribuem à sua poesia um papel único em determinado contexto histórico: o de estimular soldados para a imediata ação bélica nos confrontos entre Esparta e Messênia de meados do século VII. Vale notar que esses juízos têm como fundamento uma concepção de Esparta que tende a ignorar as similaridades entre ela e as demais póleis gregas, ao mesmo tempo em que descartam certa “consciência genérica” da elegia exortativa de Tirteu, evidenciada, por exemplo, no uso quase absoluto do dialeto jônico: se as elegias de Tirteu visavam de fato infundir coragem e exortar soldados ao valor marcial, é estranho pensar que foram compostas em outro dialeto que não fosse o local. 29 30 Ver Vetta (1980, p. XXIX, n.33) A maioria dos testemunhos antigos coloca Tirteu como um ex-professor ateniense que se tornou general (στρατῆγος) ou conselheiro de guerra (σύμβουλος) espartano graças ao vigor de suas exortações bélicas (Ver, por exemplo, Ath.14.630a, Paus. 4.15.6, Diod. Sic. 8.27-1-2, e sobretudo Hor. Art. poet. v. 402 (mares animos...exacuit). Dos estudiosos contemporâneos, ver: West (1974, p. 10), ao colocar a ocasião de performance da poesia de Tirteu como antecedente à batalha, e Bowra (1938, p. 41): “Tyrtaeus is the very voice of the Spartan ruling class, the interpreter of its ideals and its instructor on the art of war”. 39 as elegias de tirteu Elizabeth Irwin, em Solon and Early Greek Poetry: The Politics of Exhortation (2005, p. 30) já alerta que não se pode descartar o aspecto pan-helênico da elegia exortativa marcial, uma forma convencional que segue determinações genéricas e detém amplo sentido no universo de diversas póleis gregas. Um indício desse pan-helenismo pode ser veriicado quando se compara as exortações de Tirteu ao fragmento marcial de Calino acima citado: ambos os poetas compuseram elegias do mesmo tipo, apesar de muito distantes geograicamente e próximos cronologicamente para supor que um poderia ter sido inluenciado pelo outro. Antonio Aloni em “Elegy: forms, function and communication” (2009, p. 171) divide as elegias simpóticas de acordo com o tempo, o espaço e a estrutura sociopolítica de onde foram compostas. Segundo o autor, os simpósios espartanos não se restringiam às συσσίτια (sussítia, “refeições comunais”) 31, mas constituíam-se também como um espaço para performances mélicas e citaródicas de poetas espartanos como Álcman ou Terpandro. De fato, a tradição registra Terpandro como o primeiro poeta a cantar em âmbito simposial, a quem Píndaro atribui a invenção dos σκόλια (skólia, “canções de mesa”)32 e do βάρβιτος (bárbitos), um instrumento de corda próprio para a monodia (fr. 125 Sn-M.)33: τόν ῥα Τέρπανδρός ποθ’ ὁ Λέσβιος εὗρεν πρῶτος, ἐν δείπνοισι Λυδῶν ψαλμὸν ἀντίφθογγον ὑψηλᾶς ἀκούων πακτίδος 31 32 33 Questão que trataremos também na Parte 2 – Capítulo 1 deste trabalho, A Poética da Eunomia (“A Eunomia e a miragem espartana”), pp. 187-199. Plut. Mus, 28: “Mas, se como Píndaro diz, Terpandro também foi o inventor das melodias escólias [σκολιῶν μελῶν] (...)” (Tradução de Roosevelt Rocha Júnior, 2007, p. 105). Píndaro, fr. 125 Sn-M.; Ver Vetta, 1992, p. 184. 40 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica a ele (sc. bárbitos) um dia Terpandro,o Lésbio, descobriu primeiro, nos banquetes dos Lídios o vibrante som concorde de sublime harpa (péctis) ouvindo... Luana Quatroccelli no artigo “Sparta Convivialità” (2004, p. 15) recorda um testemunho do epicurista do século II a.C. Filodemo de Gádara, que menciona o poder psicagógico da música de Terpandro, entoada nas sussítia espartanas como uma maneira de conter o povo em um período de rebeliões civis (De Mus. 1. fr. 30): ]τα καὶ Τέρπανδρ[ος κατὰ μα]ντεῖον ἀπάγε[ιν ὃς ἐν τοῖ]ς φιλιτεῖοις ἂιδω[ν τῆς τα]ραχῆς ἔπαυσε τοῦς [Λακεδαι]μον[ίους ]...e Terpand[ro, conforme] a designaç[ão or]acular, cantando nos banquetes comunais (philiteîois)34 fez os Lacedemônios cessarem o tumulto . Analisando tais evidências, a hipótese de Massimo Vetta, em “Il Simposio: la Monodia e il Jambo” em Lo Spazio Letterario della Grecia Antica (1992, p. 184) é de que Terpandro compôs nomos citaródicos que tinham como espaço de performance original um simpósio que em nada diferia dos simpósios aristocráticos conhecidos em outras póleis gregas, mas que depois foram reintroduzidos no circuito de reperformances das sussítia, que marcaram a Esparta mais fechada e conservadora do século VI a.C. O fragmento 19 Davies de Álcman – poeta quase contemporâneo de Tirteu – também revela-nos que esse 34 Para a sinonímia dos termos Φιλίτιον (philítion), Φιδίτιον (phidítion) e συσσίτιον (sussítion) ver Irwin,2005, p. 32, n.40. 41 as elegias de tirteu simpósio seria uma reunião bem diferente das refeições comunais espartanas35: κλίναι μὲν ἑπτὰ καὶ τόσαι τραπέσδαι μακωνιᾶν ἄρτων ἐπιστεφοίσαι λίνω τε σασάμω τε κἠν πελίχναις πέδεστι χρυσοκόλλα. assentos sete e tantas mesas repletas de bolos de papoula, linhaça e sésamo; e nos canecos, está presente o khrysokólla 36 Outros fragmentos de Álcman ainda exploram imagens próprias do mundo simposial: o fr. 95a-b Davies retrata o 35 36 Os versos de Álcman remetem à prática da poesia metasimposial que se ocupa de descrever metodicamente o ambiente simpótico e suas práticas. O fr. 1W de Xenófanes é um dos exemplos mais bem acabados, embora não seja o único: “Agora, limpo é o chão, e as mãos de todos, /e as taças: um cinge-nos trançadas coroas,/e outro estende-nos olente bálsamo em um prato: /a cratera está repleta de alegria./Pronto outro vinho, melíluo nas jarras,/Odor de rosas, que airma jamais acabar;/No meio propaga-se santo perfume de incenso; /é fresca a água, é doce, é pura./Ao lado pães dourados, majestosa mesa/cheia de queijos, de mel pingue; /o altar no meio está todo coberto de rosas; /Canto dança e festival envolvem a casa./Devem primeiro hinear ao Deus os homens alegres /Com afamados mitos e puras palavras/Após libar e rogar pelo poder de fazer o justo / (isto em verdade é mais fácil, não a insolência); /deve-se beber o quanto suportas, e poder/voltar para casa sem auxílio, a menos que muito idoso,/e louvar aquele homem que ao beber revela nobres palavras,/para que haja memória e esforço pela virtude; /e não devem expor os combates de Titãs, de Gigantes,/de Centauros, icções dos antigos,/ou ardentes sedições, nelas não há o que preste – /mas ter dos Deuses sempre a boa providência”. O fragmento foi conservado por Ateneu (3.110f – 111a), interessado na menção feita por Álcman à μακωνιᾶν ἄρτων. O autor explica que o khrysokólla era “uma refeição [feita] a partir de mel e linhaça” [ἔστι βρωμάτιον διὰ μέλιτος καὶ λίνου]. 42 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica ambiente convivial espartano e a sua terminologia; o fr. 98 Davies refere o procedimento de entoar peãs em simpósios e, por im, o fr. 17 Davies (vv. 3-8), de rara temática privada, parece demarcar uma distinção entre dois grupos; um é o δᾶμος, no qual o poeta se insere, que “gosta de refeições simples”, e outro, que aprecia iguarias soisticadas (um dos sentidos propostos para τετυμμένον): [...] ἀλλ’ ἔτι νῦν γ’ ἄπυρος, τάχα δὲ πλέος ἔτνεος, οἷον ὁ παμφάγος Ἀλκμὰν ἠράσθη χλιαρὸν πεδὰ τὰς τροπάς· οὔτι γὰρ †οὐ τετυμμένον† ἔσθει, ἀλλὰ τὰ κοινὰ γάρ, ὥπερ ὁ δᾶμος, ζατεύει [...] Por enquanto ainda fria, mas logo cheia da sopa de ervilhas que o onívoro Álcman ama quente após o solstício: pois confeitos ele não come, mas coisas comuns, tal qual o povo – ele busca. A conclusão de Aloni (2009, p. 173) é a de que Tirteu emergiria nesse contexto não só como o mais famoso poeta elegíaco espartano, mas também, talvez, como o único. A elegia teria sido o meio escolhido por ele para representar e dar dimensão heroica a uma nova forma de combate, o hoplítico, já bem delineada no mundo jônico. Esse argumento levanta alguns problemas, se considerarmos os testemunhos que falam de uma tradição de poetas elegíacos 43 as elegias de tirteu atuantes em Esparta no período arcaico, embora não fossem naturais de lá.37 Além disso, pode-se perguntar: por que Tirteu optaria também pelo dístico elegíaco em seus fragmentos políticos, que a priori não se ocupam da exortação ao combate? E em que medida suas elegias representam de fato uma nova forma de combate38? A associação da elegia com o mundo jônico seria suiciente para conferir estatura heroica e delimitar essa nova forma de combate? Vetta (1992, p. 186) supõe que a grande fama das elegias de Tirteu se dera por causa de uma seleção operada nas sussítia nas primeiras décadas do século VI a.C. Poderíamos então imaginar que Tirteu teria passado pelo mesmo processo que Terpandro: assim como os cantos simposiais dele permaneceram vivos em reperformances realizadas nas sussítia principalmente por conta de seu valor político, os poemas de Tirteu se mantiveram em circulação por serem exemplares de uma moral cívica e guerreira que se desenvolvia em Esparta na época, e é com esse papel que Tirteu seria recebido pela tradição39. Pesadas essas avaliações, parece mais plausível concordar com Douglas Gerber em “Elegy” (1997, p. 92), e supor que as elegias marciais de Tirteu podiam ter as suas primeiras performances visando tanto a tenda real, em um contexto de relaxamento similar ao do simpósio (como se depreende das citações de Licurgo e Filocoro) quanto o simpósio aristocrático, e aquelas que se 37 Ver Plut. De Mus. § 3, 8, 9. 38 Ver Comentários ao fr. 11 W (pp. 105-142). 39 Plat. Leg. 629a, 660e-661b (ver pp. 147-154 deste trabalho). Cabe acrescentar que Platão é o autor mais antigo que temos notícia a registrar a obra de Tirteu, em um contexto que lhe era importante salientar as diferenças entre os simpósios atenienses e espartanos. 44 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica provassem mais populares eram entoadas indistintamente em ambos os locais. Mas além do simpósio, Bowie (1986, pp. 27-34) admite ainda uma segunda circunstância de performance para a elegia: o autor propôs a existência de longas elegias destinadas à performance pública em grandes festivais, teoria que em grande medida foi confirmada com a descoberta dos novos fragmentos de Simônides de Céos. Essas elegias públicas compartilhariam algumas características em comum, como a predileção por narrativas míticas e/ou históricas, a prevalência de valores cívicos que dizem respeito a toda uma comunidade e a preocupação em demarcar datas e eventos cronológicos, o que poderia antecipar os procedimentos da prosa historiográica do período clássico. Assumindo essas posições de Bowie, veriica-se nos poemas de Tirteu um instrumento profícuo para o estudo da elegia grega arcaica, uma vez que seus poemas poderiam ter sido compostos para ambas as ocasiões de performance aqui sugeridas, quais sejam, o simpósio aristocrático e o festival público. Que poemas seriam esses e de que maneira podemos organizar os fragmentos supérstites de Tirteu? Os poemas de Tirteu Conforme a Suda, a obra de Tirteu era classificada em três modalidades distintas: πολιτεία Λακεδαιμονίοις (Politeía Lakedaimoníois, “Constituição para os Lacedemônios”), ὑποθῆκαι δι’ ἐλεγείας (hypothekai di’ elegeías, “Exortações em dísticos elegíacos”) e μέλη πολεμιστήρια (méle polemistéria, “Cantos bélicos”). 45 as elegias de tirteu Naturalmente, tal divisão não se encontra em testemunhos mais antigos, que denominam a sua obra de forma genérica – ποιήματα (Platão, Leis, 629 b), ἐλεγεῖα (Licurgo, Contra Leócrates 106) e ἔπη (Máximo de Tiro, 35.5) – tampouco são títulos originais, conferidos pelo poeta, que apenas em uma ocasião denomina a sua obra, com o amplo termo λόγος (12.1 W). Nesse caso, os títulos podem ter surgido de uma necessidade de distinguir os poemas tirtaicos por sua métrica (ὑποθῆκαι δι’ ἐλεγείας, “exortações em dísticos elegíacos”, e μέλη πολεμιστήρια, Cantos bélicos) e por sua temática: uns, de conteúdo guerreiro (as ὑποθῆκαι) e outros, de conteúdo civil (πολιτεία Λακεδαιμονίοις). A πολιτεία Λακεδαιμονίοις, ou εὐνομία (Eunomia, “Boa ordem”), como a chamaram Aristóteles (Pol.1307a) e Estrabão (Str. 8.4.10), seria supostamente um poema narrativo que visava o festival público como ocasião de performance. Bowie (1986, pp. 29-30) reconhece em alguns fragmentos tirtaicos elementos próprios da elegia narrativa pública, e é seguido pela grande maioria dos estudiosos que dedicaram páginas à poesia de Tirteu, como D’ Alessio (2009), Faraone (2008), Irwin (2005) e Stehle (1997). Teriam feito parte deste poema os fragmentos 1 a 4 e possivelmente os fragmentos 5 a 7 W. O fragmento 1 W é um testemunho da Política de Aristóteles que informa qual seria o tom da Eunomia: um poema admonitório, composto para conter os ânimos civis e assim evitar uma sedição em Esparta; o fragmento 2 W narraria o regresso dos descendentes de Héracles para a Lacedemônia; o fragmento 4 W oferece um oráculo que traria prescrições destinadas a todo o povo de Esparta; o fragmento 5 W colocaria ênfase na datação da guerra, e os fragmentos 6 e 7 W, em seus acontecimentos e resultados. 46 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica As Exortações (fr. 10, 11 e 12 W) constituem a parte mais preservada da poesia de Tirteu. O vínculo com a tradição épica não se dá aqui apenas em nível formal (o hexâmetro dactílico que integra o dístico elegíaco), mas também em nível temático. São elegias que prescrevem um imaginário heroico que condena a fuga (como αἰσχρός, aiskhrós, “feia e vergonhosa”, “torpe”) e gloriicam o guerreiro que permanece irme nas linhas dianteiras (πρόμαχοι, prómakhoi) e morre lutando por sua pátria, de modo mais ou menos similar ao igurado na tradição legada pela poesia épica, notadamente pela Ilíada. Os μέλη πολεμιστήρια ou ήμβατήρια seriam supostamente os poemas de Tirteu compostos em verso anapéstico, hoje perdidos, mas mencionados por Ateneu (Banquete dos Eruditos XIV, 630), Pausânias (Descrição da Grécia, 4.15.6) e provavelmente Tucídides (História da Guerra do Peloponeso, 5.70). Pausânias registra a existência de poemas mélicos de Tirteu em metro anapéstico, e traça um paralelo entre eles e as composições elegíacas: ὁ δὲ ἀφικόμενος ἰδίᾳ τε τοῖς ἐν τέλει καὶ συνάγων ὁπόσους τύχοι καὶ τὰ ἐλεγεῖα καὶ τὰ ἔπη σφίσι τὰ ἀνάπαιστα ᾖδεν. Quando ele (sc. Tirteu) chegou, cantou em particular para eles (sc. nobres) os seus versos elegíacos e anapésticos, e para quantos ele viesse a encontrar. Ateneu, por sua vez, informa a tradição dos cantos de marcha na Lacedemônia, e nota que os cantos de Tirteu foram entoados nesse contexto para auxiliar a marcha dos combatentes: πολεμικοὶ δ’ εἰσὶν οἱ Λάκωνες, ὣν καὶ οἱ υἱοὶ τὰ ἐμβατήρια μέλη ἀναλαμβάνουσιν ἃπερ καὶ ἐνόπλια καλεῖται. καὶ 47 as elegias de tirteu αὐτοὶ δ’ οἱ Λάκωνες ἐν τοῖς πολέμοις τὰ Τυρταίου ποιήματα ἀπομνημονεύοντες ἔρρυθμον κίνησιν ποιοῦνται. Os lacônios são belicosos, e até mesmo os seus ilhos encarre-gam-se dos cantos de marcha, que são chamados precisamente de enóplios. Os próprios lacônios, recitando de cor os poemas de Tirteu nas guerras, fazem o seu movimento em ritmo. Tucídides menciona essa mesma tradição em Esparta como mais um índice para a oposição que traça entre espartanos e atenienses. Contudo, o historiógrafo apenas cita o uso do aulo durante estas marchas, sem fazer referência ao nome de Tirteu: Ἀργεῖοι μὲν καὶ οἱ ξύμμαχοι ἐντόνως καὶ ὀργῇ χωροῦντες, Λακεδαιμόνιοι δὲ βραδέως καὶ ὑπὸ αὐλητῶν πολλῶν ὁμοῦ ἐγκαθεστώτων, οὐ τοῦ θείου χάριν, ἀλλ’ ἵνα ὁμαλῶς μετὰ ῥυθμοῦ βαίνοντες προσέλθοιεν καὶ μὴ διασπασθείη αὐτοῖς ἡ τάξις, ὅπερ φιλεῖ τὰ μεγάλα στρατόπεδα ἐν ταῖς προσόδοις ποιεῖν. Ao passo que os argivos e seus aliados marchavam em fúria e energicamente, os lacedemônios marchavam lentamente e sob o som de diversos auletas, não por rito sacro, mas a im de que procedessem uniformemente, caminhando com o ritmo, e as suas ileiras não se desalinhassem, o que é usual que grandes exércitos façam ao atacarem. Díon Crisóstomo (Oração 35, 10) refere-se a um ἐμβατήριον lacônico (PMG 856-857) e seu escoliasta o atribui a Tirteu. Embora considerado espúrio, o fragmento consta na edição de West (1992) como os fragmentos 15 e 16: 48 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica ἄγετ’ ὦ Σπάρτας εὐάνδρου Vamos, valentes d’ Esparta, κοῦροι πατέρων πολιητᾶν, moços de pais livres! λαιᾶι μὲν ἴτυν προβάλεσθε, À esquerda, anteponde o escudo, δόρυ δ’ εὐτόλμως πάλλοντες, e atirai a lança com coragem, μὴ φειδόμενοι τᾶς ζωᾶς não poupando a vida: οὐ γὰρ πάτριον τᾶι Σπάρται. esse não é o costume de Esparta. ἄγετ’ ὦ Σπάρτας ἔνοπλοι κοῦροι Vamos, moços de Esparta em armas, ποτὶ τὰν Ἄρεως κίνασιν. para a marcha de Ares. Hoje é comum considerar estes fragmentos como exemplos de poemas populares de Esparta, e a sua atribuição a Tirteu é incerta. Entretanto, as semelhanças com as elegias exortativas são inegáveis: note-se a menção aos κοῦροι (15.2 W, 16.1 W), que ecoa o chamado aos νέοι no fragmento 10. 15 W; o apelo para que se enfrente o inimigo portando escudo (15.3 W) é evocativo do fragmento 11.4 W; e o verso 15.5 W, μὴ φειδόμενοι τᾶς ζωᾶς, parece uma variação do verso 10.14 W, θνήσκωμεν ψυχ<έω>ν μηκέτι φειδόμεν, “morramos, não mais poupando a vida”. Outro fragmento na edição de West que não pertence a Tirteu é o 24 W, proveniente de uma inscrição encontrada na cidade de Tirreu e provavelmente datada do inal do século III a.C, período em que a região teria sido atacada pelos Etólios. Este fragmento cita Tirteu nominalmente, e sua autoria é atribuída ao epigramista helenístico Damágeto por Paul Friedländer, em “A new epigram of Damagetus” (1942, pp. 71-83), graças a similaridades vocabulares entre a inscrição e os epigramas desse autor da Antologia Grega. 49 as elegias de tirteu De qualquer maneira, ainda que não constituam alguma citação direta a Tirteu, a inscrição demonstra a persistência de sua obra no período helenístico: τὸμ Μούσαις, ὦ ξεῖνε, τετιμένον ἐνθάδε κρύπτει Τιμόκριτογ κόλπωι κυδιάνειρα κόνις. Αἰτωλῶν γὰρ παισὶ πάτρας ὓπερ εἰς ἒριν ἐλθὼν ὡγαθὸς ἢ νικᾶν ἢθελε<ν> ἢ τεθνάναι · πίπτει δ’ ἐμ προμάχοισι λιπὼμ πατρπὶ μύριον ἂλγος, ἀλλὰ τὰ παιδείας οὐκ απέκρυπτε καλά · Τυρταίου δὲ Λάκαιναν ἐνὶ στέρνοισι φυλάσσων ῥῆσιν, τὰν ἀρετὰν εἵλετο πρόσθε βίου. Estrangeiro, aqui a poeira gloriicadora de homens eclipsa em seu seio Timócrito, honrado pelas Musas. Quando foi à luta pela pátria contra os ilhos dos Etólios, o valente escolheu: era vencer ou morrer. Cai na vanguarda, abandonando o pai em dor ininita, mas a bela educação não se eclipsou: guardando no peito o lacônio verbo de Tirteu, escolheu virtude em vez da vida. (5) (5) Os fragmentos 8 e 9 W são testemunhos que também citam o nome de Tirteu. O fragmento 8 W tem como fonte a Geograia de Estrabão, e relata eventos das duas Guerras Messênicas. O testemunho informa que o próprio Tirteu teria mencionado que fora um general durante esta guerra, uma informação que poderia ter sido extraída de seus poemas (8.4.10): Πλεονάκις δ’ ἐπολέμησαν διὰ τὰς ἀποστάσεις τῶν Μεσσηνίων. τὴν μὲν οὖν πρώτην κατάκτησιν αὐτῶν φησι Τυρταῖος ἐν τοῖς ποιήμασι κατὰ τοὺς τῶν πατέρων πατέρας γενέσθαι· τὴν δὲ 50 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica δευτέραν, καθ’ ἣν ἑλόμενοι συμμάχους Ἀργείους τε καὶ Ήλείους καὶ Πισάτας ἀπέστησαν, Ἀρκάδων μὲν Ἀριστοκράτην τὸν Ὀρχομενοῦ βασιλέα παρεχομένων στρατηγόν, Πισατῶν δὲ Πανταλέοντα τὸν Ὀμφαλίωνος· ἡνίκα φησὶν αὐτὸς στρατηγῆσαι τὸν πόλεμον τοῖς Λακεδαιμονίοις Amiúde izeram guerra por causa das insurreições dos Messênios. Tirteu diz em seus poemas que a primeira conquista deles ocorreu no tempo dos pais dos pais (fr. 5.6) A segunda, no tempo em que se revoltaram, tendo escolhido aliados Argivos, Eleios e Pisanos. Os árcades ofereceram Aristócrates, rei dos Orcômenos, como general e os Pisanos [ofereceram] Pantaleão de Onfalion, enquanto pelos espartanos [Tirteu] diz que ele próprio foi o general. O fragmento 9 é uma citação da Ética a Nicômaco (1116 a), seguida por uma passagem dos Comentários a Aristóteles de Eustrácio (20, 165.1). Na Ética, Aristóteles deine como belo e viril o comportamento dos homens que lutam na vanguarda do combate: καὶ οἱ προστάττοντες, κἂν ἀναχωρῶσι τύπτοντες, τὸ αὐτὸ δρῶσι, καὶ οἱ πρὸ τῶν τάφρων καὶ τῶν τοιούτων παρατάττοντες· πάντες γὰρ ἀναγκάζουσιν. δεῖ δ’ οὐ δι’ ἀνάγκην ἀνδρεῖον εἶναι, ἀλλ’ ὅτι καλόν. Aqueles que vão à frente e golpeiam os outros caso retrocedam, fazem o mesmo (e também aqueles que se põem diante de trincheiras e de outras coisas do tipo) porque são obrigados. Mas deve-se ser viril não por obrigação, e sim porque é belo. Eustrácio exempliica o comentário informando que tal era o comportamento dos espartanos durante a Guerra Messênica, conforme narram os poemas de Tirteu. Provavelmente o escoliasta 51 as elegias de tirteu tinha em mente poemas exortativos como 10, 11 e 12 W, que exploram como principal argumento a exortação para lutar nas primeiras linhas do combate: τοῦτο περί Λακεδαιμονίων λέγοι ἂν · τοιαύτην γάρ τινα μάχην ὃτε πρός Μεσσηνίους ἐπολέμουν ἐμαχέσαντο, ἧς καὶ Τυρταῖος μνημονεύει. Poder-se-ia falar isso dos espartanos: Pois lutaram de tal modo quando travavam uma guerra contra os Messênios, aquela que Tirteu menciona. O fragmento 13 W foi recolhido por Galeno em Sobre as Doutrinas de Hipócrates e Platão. Ao tratar das doutrinas de Crisipo que sugerem a existência de duas faculdades da alma, racional e irracional, o autor apresenta um verso “estranho” de Tirteu: αἲθωνος δὲ λέοντος ἒχων ἐν στήθεσι θυμόν (“Tendo no peito o ânimo de árdego leão”). O fragmento 14 W está presente nos Paradoxos Estoicos de Plutarco. O verso é ‘πρὶν ἀρετῆς πελάσαι τέρμασιν ἢ θανάτου’, “Antes de alcançar os limites da virtude ou da morte”. O metricista Querobosco é quem registra o fragmento 17 W para mostrar uma peculiaridade métrica de Tirteu: em um verso hexamétrico em que consta a palavra ἥρω̆ες, Querobosco observa que a última sílaba, geralmente longa, é escandida como breve. Por im, restam os fragmentos 18-23 W e 23a W que diferentemente dos demais fragmentos que compõem o corpus de elegias tirtaicas, provêm de fontes de transmissão direta. Os fragmentos 18-23 W pertencem a um papiro oriundo do período ptolomaico, de meados do século III a.C, que apresenta duas colunas de texto (West, 1974, p. 187). A edição de West distingue seis fragmentos 52 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica nas duas colunas, que não necessariamente pertenciam a um mesmo poema. A primeira coluna, praticamente ilegível, compõe os fragmentos classiicados como 18, 20 e 22 W. Integram a segunda coluna os fragmentos 19, 21 e 23 W. O fragmento 23a W corresponde ao Papiro de Oxirrinco 3316, descoberto em 1980. Data provavelmente do século III a.C., e seria uma elegia exortativa com referências a um momento particular da Segunda Guerra da Messênia, a aliança entre Argivos e Arcádios já mencionada no fragmento 8 W. A fortuna crítica de Tirteu As primeiras hipóteses modernas acerca da poesia de Tirteu datam do século XIX, e se embebem do espírito que caracterizou a obra magna de Friedrich Wolf, Prolegomena ad Homerum (1795). Ao propor que Homero teria composto oralmente rapsódias que seriam reunidas apenas no século VI a.C. como um canto uno, Wolf deu origem à linha de estudos que seria denominada analítica. Essa escola, por muito tempo vigente, propôs a existência de um núcleo principal original nas epopeias homéricas que teria sido tardiamente preenchido por interpolações e camadas que quebram ou se somam à continuidade narrativa do núcleo original. O ceticismo a respeito da unidade da poesia homérica estendeu-se a outros autores do período arcaico, e dentre estes Tirteu – gerando o que alguns chamaram, analogamente, de “Questão Tirtaica” 40. De fato, em 1816, Francke (apud Prato, 1968, p. 8) 40 Ver, por exemplo, Hugh Parry na resenha a Carlo Prato, Tirteo (1970, p. 498). 53 as elegias de tirteu preconizaria, à maneira dos estudos analíticos, que Tirteu izera uma longa elegia de cunho patriótico, que sofrera séries de intervenções ao longo dos séculos e teria sido desmembrada no que hoje são os fragmentos 10 e 11 W. O fragmento 12 W e a Eunomia (fr. 1-4 W)41 seriam também composições autênticas. Em 1826, Thiersch (apud Prato, 1968, p. 8) tencionou demonstrar que a poesia de Tirteu era espúria e o poeta nunca existira. Segundo o autor, os fragmentos de sua obra seriam composições que acompanhavam diferentes etapas da Segunda Guerra da Messênia e fruto de diversos autores: era a visão romântica de um “anônimo gênio espartano”. Foi Bach, em 1831, que encerrou a questão ao argumentar não ser lícito comparar Homero com uma igura historicamente comprovada pela tradição como Tirteu. Apenas no im do século a historicidade da poesia de Tirteu volta a ser duramente questionada, com base na tradição da própria Guerra Messênia. A. W. Verrall, em seu artigo de 1896 “Tyrtaeus and Graeco-roman tradition” (pp. 269-277) acreditava ser a poesia de Tirteu e sua igura uma hábil composição ateniense, datada de tempos de uma hipotética terceira rebelião da Messênia. Calcado em uma citação do orador Licurgo42 e na escassez de fontes sobre as antigas Guerras Messênias (apenas um relato romanceado de Pausânias43) Verrall airmou que, se o poeta tivesse existido, seria após as Guerras Pérsicas, duzentos anos depois da data normalmente atribuída a ele. Schwartz publica, três anos depois no artigo “Tyrtaeos” (1899, pp. 429-468), uma proposta ainda mais radical: ele defende 41 Tratadas na época como uma coletânea de poemas cívicos (Ver Prato, C., 1968, p. 9). 42 Contra Leocrates, 106 ss. 43 Descrição da Grécia, 4. 4 – 29 54 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica que as Guerras Messênias jamais teriam existido. O exagero das fontes helenísticas que trataram destas guerras – o poeta épico Riano de Creta e o historiógrafo Míron de Priene – e a sua data tardia impediam uma apreensão clara de sua historicidade, e, portanto, também da historicidade de Tirteu, cuja poesia estaria intrinsecamente ligada a estas guerras. Para comprovar que Tirteu era uma construção ateniense do séc. V, Schwartz já apresentava hipóteses que seriam retomadas por Fränkel no século seguinte, como a presença da argumentação silogística no fragmento 12 W, típica dos oradores do quinto século, e não do período arcaico em que o poeta teria vivido. Wilamowitz (apud Jäger, 1966, p. 105) foi quem por im argumentou contra essas teses, assumindo tanto a autenticidade das Guerras Messênias como a historicidade de Tirteu. O ilólogo alemão entende, contudo, que alguns poemas de Tirteu, como o 11 W, sofreram intervenções pontuais de outros poetas, do mesmo modo que ocorrera com a poesia de Teógnis, cuja fama como poeta moralista izera com que muitos poemas com esse teor fossem acrescentados à sua coleção. Depois deste estudo, a poesia de Tirteu passa a interessar também aos historiadores, que, seguindo a autoridade e peso do estudo de Wilamowitz, passam a ver em seus fragmentos a única testemunha crível da Guerra Messênia, das técnicas de combate desempenhadas em seu decurso e, especialmente, uma valiosa fonte para a história do desenvolvimento da pólis arcaica e da história espartana. Homero e Tirteu Quando se observa a Ilíada em conjunto com o que restou da obra poética de Tirteu, certas comparações são inevitáveis. É uma 55 as elegias de tirteu tarefa difícil encontrar algum verso, dístico, vocábulo ou epíteto que não pareça evocar algum trecho da poesia homérica. Na Antiguidade latina, este vínculo já não era ignorado, sendo notória a passagem de Horácio em sua Arte Poética44. Desde então, o aspecto que reúne ambos os poetas é a exortação militar (Arte Poética, 402-403: “mares animus in martia bella/versibus exacuit”), com uma evidente superioridade técnica do poeta épico assinalada.45 Nos dias atuais, essa relação foi diversamente analisada, mas sempre colocou Tirteu como dependente direto do substrato homérico; a opinião de Carlo Prato, em sua edição dos fragmentos de Tirteu, resume o juízo prevalecente ao airmar que “O método de trabalho de Tirteu é extremamente simples e claro; consiste da combinação de vocábulos e expressões derivadas do épos, em um esforço contínuo de modernização do velho formulário e de adaptação às exigências de sua arte” (1968, p. 50*). Imbricada na airmação de Prato, podemos entrever a tese que dominou meados do século XX e se convencionou chamar de “Escola Snell – Fränkel”. Talvez a obra mais inluente nesse sentido tenha sido a de Bruno Snell, Tyrtaios und die sprache des epos (1969). As teses de 44 45 v. 401ss: “[...]post hos insignis Homerus/ Tyrtaeusque mares animos in Martia bella/ versibus exacuit” (“Depois disso o insigne Homero/ e Tirteu, que às guerras de Marte os ânimos viris/ com versos incitaram”) Ver Quint. Inst. X. 32 (“Quid? Horatius frustra Tyrtaeum Homero subiungit?”; Quê? Horácio erra ao justapor Tirteu e Homero?”). Ver Quint. Inst. XII. 11, 27: neque enim, si quis Achillis gloriam in bellicis consequi non potest, Aiacis aut Diomedis laudem aspernabitur, nec qui Homeri non fuerunt, Tyrtaei. (e ainda, se algum homem não pode alcançar a glória de Aquiles na guerra, não desdenhará de elogio [como o] de Ajax ou Diomedes; e nem, os que não foram Homeros, [não desdenharão de serem] Tirteus”). 56 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica Snell-Fränkel escoram-se em uma percepção evolutiva dos gêneros, que apresenta épica, lírica e drama em sucessão cronológica. Deste modo, a elegia exortativa marcial seria vista como a ponte entre Homero e a literatura do período clássico. Esta sucessão entre os gêneros seria, para Snell, o relexo de uma importante etapa do desenvolvimento do espírito humano: a emergência da individualidade em um mundo eminentemente impessoal. Nesse contexto, Tirteu surge como um poeta que, embora usuário do repositório épico, inova em relação a ele em três aspectos: (a) nos sentidos de termos que denotam os órgãos anímicos do homem, especialmente o θυμός (thumós, “ânimo”) Conforme sua tese, esmiuçada em A Descoberta do Espírito, o θυμός consistiria em um órgão que repousa no peito à espera de um estímulo externo. Nesse caso é que Tirteu se distinguiria de Homero, pois em seus versos o θυμός é um órgão controlável pela vontade e intenção (ex. 10.17 W: ἀλλὰ μέγαν ποιεῖτε καὶ ἄλκιμον ἐν φρεσὶ θυμόν, “Mas fazei grande e valente o ânimo no peito”), uma mesma noção que já estaria presente em alguns fragmentos de Safo (Ver fr. 1 V) e Arquíloco (Ver fr. 128 W). Não é escopo do presente trabalho deter-se nessa questão; diversos estudiosos já se debruçaram sobre isso, mostrando que Homero entendia o θυμός de maneira não muito distinta de Tirteu e outros líricos (Ver Corrêa, 2009, pp. 33-40); (b) No tratamento da ἀρετή (areté), a virtude ou excelência humana. Snell é adepto das proposições de Werner Jäger, descritas em “Tyrtaeus on True Arete” (1966, pp. 103-142). Enquanto na poesia de Homero encontramos diversas atividades que são consideradas ἀρεταί, no fragmento 12 W Tirteu consideraria apenas uma única e verdadeira excelência, a bravura impetuosa (θοῦρις ἀλκή, thoúris alké) que faz com que o soldado se mantenha em seu posto sem fugir. 57 as elegias de tirteu Tal leitura se deve a uma interpretação, a nosso ver, equivocada do verso 13, ἥδ’ ἀρετή, τόδ’ ἄεθλον ἐν ἀνθρώποισιν ἄριστον, que, por conta do pronome demonstrativo ἥδη permite duas traduções: uma considera ἀρετή como sujeito da oração e tem ἥδη como predicado; “Essa [é] a virtude, esse [é] o prêmio, entre homens o melhor”.46 A outra possibilidade é considerar todo o sintagma ἥδ’ ἀρετή como sujeito, sendo ἥδη um predicativo: “Essa virtude, esse prêmio, entre homens é o melhor”. Snell opta pela primeira tradução. Um dos argumentos em seu favor é que o paralelismo entre os pronomes ἥδη e τόδε na frase sugere que ambas poderiam ser traduzidas da mesma maneira.47 Entretanto, o contexto favorece a segunda possibilidade. Νο verso 2, encontramos a expressão ποδῶν ἀρετῆς, “virtude dos pés”, que aponta para a existência de outras que Tirteu rejeita na sua elegia em nome da bravura impetuosa. Não se pode desprezar também o verso 10 - οὐ γὰρ ἀνὴρ ἀγαθὸς γίνεται ἐν πολέμωι (“pois um varão não se torna valoroso na guerra”) – onde o adjunto ἐν πολέμωι (én polémoi, “na guerra”) é necessário para atenuar o adjetivo ἀγαθός (agathós, “bom, valente, valoroso”) e ainda é jogado para o fim do verso, um expediente comum na poesia grega arcaica e frequentemente empregado por Tirteu para realçar algum vocábulo ou expressão. Considerando essas hipóteses, não haveria motivos para acreditar que Tirteu oferece a visão de uma ἀρετή diferente daquela apresentada por Homero. O fato é que a tese de uma ἀρετή absoluta incorre na terceira e última inovação vista por Snell na 46 47 Ver, por exemplo, a tradução de Prato (1968, p. 130): “Questa (è) la (vera) areté” e a tradução portuguesa de Artur Parreira, sobre Jäger, Paideia, p. 122: “Isto é arete, este é o título mais alto e mais glorioso...” Ver análise ao Fr. 12 W, pp. 143-183. 58 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica poesia de Tirteu: (c) a noção de patriotismo. Segundo esse estudioso, enquanto Homero não retrata o patriotismo e apenas mostra os guerreiros em defesa de seu próprio círculo familiar, Tirteu, nas palavras de Jäger, “transformou o ideal homérico da ἀρετή do campeão singular na ἀρετή do patriota” (1966, p. 103); “o ideal homérico da ἀρετή heroica transforma-se no heroísmo do amor a pátria” (1995*, p. 120). Já Snell relembra o uso da forte expressão ξυνὸν δ’ ἐσθλὸν (ksúnon esthlón, “bem comum”, 12. 15 W), para concluir que, na elegia exortativa, o valor marcial estaria fortemente atrelado ao bem da comunidade – a terra pátria (πατρίς, patrís, fr. 10.2 W), a pólis, o δῆμος ( dêmos, fr. 12. 27-32 W) a ἀστύ (astú, fr. 12. 24 W) ou o λαός (laós, fr. 11.11-13 W). Nesse cenário evolutivo, o novo conceito de ἀρετή heroica da pólis advém, segundo Jäger, da adaptação da ideia de glória heroica para o ambiente da pólis. Agora é a cidade que mantém o κλέος (kléos, “glória”) outrora individual: é ela que confere a imortalidade que subtrai o homem da transitoriedade de sua condição humana e o insere e preserva no espaço duradouro da comunidade, além de ser gloriicada pelo sacrifício do herói. Esta última tese, porém, não parece se sustentar à leitura de algumas passagens da Ilíada. O que se nota é que conceitos de defesa da família e patriotismo são colocados em um mesmo plano, e muitas vezes são equacionados48, mas as proporções com que aparecem dependem da necessidade e do contexto narrativo exigidos em cada passagem, e de conformações que são próprias de cada gênero. 48 Na elegia exortativa marcial, é o caso de Calino 1. 6 -8 W: τιμῆέν τε γάρ ἐστι καὶ ἀγλαὸν ἀνδρὶ μάχεσθαι/γῆς πέρι καὶ παίδων κουριδίης τ’ ἀλόχου /δυσμενέσιν (Pois é honroso e esplêndido ao varão lutar/ pela terra, ilhos e esposa legítima/ contra os inimigos) 59 as elegias de tirteu Na Ilíada, são os troianos que estão em posição equivalente à dos interlocutores de Tirteu, e por isso, vemos amiúde heróis como Heitor e Glauco exortarem os seus camaradas a defenderem a pátria. Heitor exorta Polidamante, “Apenas um augúrio tem valor! Lutar pela pátria” (Il. 12.243); Glauco, por sua vez, reprova os troianos com as palavras (17.156-159): εἰ γὰρ νῦν Τρώεσσι μένος πολυθαρσὲς ἐνείη ἄτρομον, οἷόν τ’ ἄνδρας ἐσέρχεται οἳ περὶ πάτρης ἀνδράσι δυσμενέεσσι πόνον καὶ δῆριν ἔθεντο, > αἶψά κε Πάτροκλον ἐρυσαίμεθα Ἴλιον εἴσω. Ah, se agora entre os Trôas houvesse uma força muito audaz, imperturbável, do tipo que advém aos homens que pela pátria impõem o combate e a labuta contra homens inimigos, na hora arrastaríamos Pátroclo p’ra dentro de Ilíon! O próprio Heitor é visto por outros seus compatriotas como o bastião troiano, sua queda como que signiicando a queda da própria cidade; é nesses termos que Príamo se expressa (Il. 24.499501) e esse é o motivo do nome do ilho de Heitor, Astíanax (Il. 6.403)49. Embora menos comum, a preocupação com o λαός também aparece entre os heróis do lado grego: não é visando o bem comum do λαός que Aquiles interpela Agamênon e provoca a dissidência cujas consequências nortearão toda a primeira metade da trama da Ilíada ? Em seu recente comentário à Ilíada, The Making of Iliad, Disquisition and Analytical Commentary, Martin L. West considera que “Homero” seria um poeta letrado da metade do século VII a.C (aproximadamente 680-640 a.C.), e que a Ilíada fora o 49 Ver Greenhalgh, 1972, “Patriotism in the Homeric World”, pp. 528-537. 60 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica resultado de um longo período de elaboração que contou com a ajuda da escrita. Nesse processo, o poeta acrescentava a um núcleo original novos cantos e episódios, além de trechos reelaborados, que poderiam ou não ser inluência de outros poetas e tradições do período. Nesse cenário proposto por ele, Homero situa-se no mesmo século e na mesma época em que certamente os dois poetas de elegias bélicas que nos restaram já estavam em plena atividade (Calino, aproximadamente 650 a.C; Tirteu, por volta de 640 a.C.), embora certamente não fossem os primeiros, visto que a distância geográica que separa ambos – Calino na Jônia, e Tirteu em Esparta - indica que a esta época a elegia marcial já estava bem propagada na Grécia. O postulado de West não é novo, e retoma, em suma, antigos estudos analíticos. No que concerne a relação entre Homero e os elegistas marciais, West parece reavaliar as teorias de Von Dietrich Mülder, ilólogo alemão do início do século XX, que em seu trabalho Homer und die altonionische Elegie (1906) havia sido o primeiro a sugerir a precedência dos poetas elegíacos jônicos em relação a Homero. O autor justiicava a sua hipótese ao veriicar que, na composição geral do poema - preparações para a batalha, advertências de Nestor e outros – tudo está de acordo com a época de Tirteu, isto é, com a própria época do poeta que compôs a Ilíada; mas, nas cenas de batalha, o poeta remete aos tempos heroicos, descrevendo os combates de campeões singulares como na tradição épica. Um argumento de Mülder que parece ter se tornado pelo menos questionável nos dias atuais é a ideia de que a representação da guerra na Ilíada difere em larga medida daquela representada por Tirteu. Se na elegia marcial não há o retrato do herói singular, 61 as elegias de tirteu como explicar o verso 21 do fr. 1 W Calino, ἔρδει γὰρ πολλὼν ἄξια μοῦνος ἐών (“embora só, faz feitos dignos de muitos”), que poderia muito bem aludir a um guerreiro de investidura tipicamente épica? E o que dizer do fragmento 12 W de Tirteu, que não se detém na descrição de um grupo de soldados, irmemente posicionados em seus lugares, mas em vez disso concentra-se em um único guerreiro, o ἀνὴρ ἀγαθὸς (v. 20), que “súbito dispersa as falanges brutais dos inimigos” (v. 21) e “rápido detém o luxo da guerra” (v. 22)50? O que parece mais plausível é considerar que Homero e Tirteu retratam um mesmo universo guerreiro, com mudanças que se devem à estrutura e à função de cada poema. Poéticas de Guerra Nos capítulos seguintes pretende-se analisar os fragmentos e os testemunhos acerca das elegias exortativas de Tirteu (fr. 1012 W) e o poema intitulado Eunomia (fr. 1-4 W), assim como outros fragmentos que poderiam ser incluídos sob este nome (fr. 5-7 W). O cerne da questão está no debate da ocasião de performance para a qual estes versos teriam sido compostos. Seguindo a hipótese inluente de Bowie (1986, pp. 29-33) hoje é possível alocar o corpus elegíaco em duas circunstâncias distintas com base na 50 Vale indicar, contudo, que no tempo em que Mülder escreveu sua obra o debate sobre a autenticidade do poema 12 W (e mesmo sobre a autenticidade do próprio Tirteu!) era intenso. Wilamowitz (1900, apud Luginbill 2002) julgava-o espúrio por seu estilo destoante das demais. Depois de Jäger, em 1960, poucos helenistas se aventuraram a negar a autoria de Tirteu para o poema (Ver Tarditi, G. Parenesi e Arete nel corpus tirtaico, 1982). 62 introdução – tirteu e a elegia grega arcaica extensão de cada poema: uma particular, voltada para as heterias aristocráticas do simpósio, e outra pública, com longas elegias narrativas direcionadas aos festivais cívico-religiosos. Quanto ao primeiro grupo, a atribuição do simpósio como circunstância de performance ideal para as elegias de Tirteu suscita novas relexões sobre o estatuto e as funções da poesia de Tirteu: qual é o sentido da conluência de temas da elegia exortativa militar e da tradição épica no contexto do simpósio? O vínculo intertextual entre ambas as tradições pode ser relacionado às discussões acerca do gênero elegíaco, conforme praticado na Grécia do século VII a.C. ? Elizabeth Irwin em Solon and Early Greek Poetry, the Politics of Exhortation (2005, pp. 35-62) encontra o elo entre a ocasião de performance da elegia marcial e a poesia épica nas cenas de banquete da Ilíada, nas quais são revelados os privilégios e as honras dos heróis. A elegia marcial, sendo apresentada no simpósio, poderia aludir implicitamente a estes banquetes militares e assim identiicar sua audiência simposiasta a heróis de estatura épica. Como resultado, a elegia forma e justiica a identidade deste grupo social – exclusivamente aristocrático – diante da polis. A partir desta perspectiva, a análise dos fragmentos 10-12 W assume dois pressupostos correlatos: (1) O simpósio aristocrático é a ocasião de performance original da elegia exortativa marcial. Este simpósio poderia apresentar em sua forma peculiaridades que são típicas da região de Esparta ou de um contexto militar especíico, mas não difere funcionalmente dos simpósios de outras poleis gregas. Por conseguinte, (2): a linguagem da elegia grega arcaica veiculada em espaço simpótico exibe um componente aristocrático. Nas exortações marciais de Tirteu este componente revela-se como a atribuição e iccionalização de papeis heroicos, expediente que 63 as elegias de tirteu elabora, face ao universo da polis, uma identidade destacada para a aristocracia. Quanto à Eunomia, acreditou-se por muito tempo que fosse um poema narrativo destinado à comunidade e entoado apenas no espaço do festival público. Sua temática civil favorece essa hipótese – o poema trataria possivelmente da colonização da região do Peloponeso (fr. 2 W), da revolta que acometeu Esparta com o término da Segunda Guerra da Messênia e do primeiro conlito contra os Messênios (fr. 5-7 W). Wolfgang Rösler em “Mnemosyne in the Symposion” (1990, pp. 233-234) revisitou a evidência e veriicou pontos de contato entre estes poemas e o ambiente do simpósio, sendo seguido por uma revisão de Bowie sobre a sua hipótese (2001, pp. 45-47) no que concerne à Eunomia. Atualmente a discussão permanece em aberto, sobretudo por causa da escassez dos fragmentos que restaram. Stehle em Performance and Gender in Ancient Greece (1997, p. 51) considera-a um exemplar de poesia da comunidade, enquanto D’Alessio em “Deining Local Identities in Greek Lyric Poetry” (2009, p. 151) chama-a de “elegia coral” e identiica, não só neste poema, mas em todo o corpus tirtaico, uma ideologia comunal adequada às sussitia, reuniões espartanas ains aos simpósios de outras póleis. Ao longo deste estudo, em vez de conjeturar uma ocasião de performance deinitiva para cada poema, pretende-se ter como horizonte os seguintes questionamentos: há marcas textuais que distinguem uma poética circunscrita aos eventos públicos e outra, própria do ambiente simpótico? Se sim, haveria pontos de contato entre elas? Pode-se dizer que as elegias de Tirteu revelam tais marcas ? 64 i. As ElEgiAs ExorTATivAs E o simpósio cApíTulo 1 o frAgmEnTo 10 W E A ExorTAção mArciAl Deve-se a sobrevivência do fragmento 10 W (6-7 G-P) ao ateniense Licurgo, que o introduz em sua obra κατὰ Λεωκράτους (katá Leokrátous, “Contra Leócrates”) No discurso, composto no ano de 330 a.C., o orador acusa certo Leócrates de traição à cidade de Atenas por este ter se dirigido a Rodes, violando um decreto ateniense que proibira seus cidadãos de abandonarem a cidade após a Batalha de Queroneia. Notório pela grande quantidade de citações a poetas e relatos históricos, o opúsculo detém-se em exemplos de vívido patriotismo e em certo momento ocupa-se da igura de Tirteu. Segundo ele, a Atenas de seus ancestrais era tão valorosa que até mesmo os reis de Esparta, célebres por sua bravura, acataram o oráculo que lhes prescrevera obter um líder ateniense (§ 105 -106)1. O fragmento de Tirteu é citado nesse contexto, como exemplo de poesia – único tipo apreciado em 1 τίς γὰρ οὐκ οἶδε τῶν Ἑλλήνων, ὅτι Τυρταῖον στρατηγὸν ἔλαβον παρὰ τῆς πόλεως, μεθ’ οὗ καὶ τῶν πολεμίων ἐκράτησαν, καὶ τὴν περὶ τοὺς νέους ἐπιμέλειαν συνετάξαντο οὐ μόνον εἰς τὸν παρόντα κίνδυνον, ἀλλ’ εἰς ἅπαντα τὸν αἰῶνα βουλευσάμενοι καλῶς (“Pois, entre os gregos, quem não sabe que [os espartanos] tomaram Tirteu como general para a sua cidade? Por meio dele, inclusive, venceram a guerra e também organizaram uma educação para os jovens, não somente para a ameaça presente, mas bem a planejaram para todo o sempre” ). as elegias de tirteu Esparta, segundo Licurgo – capaz de mover os ânimos dos guerreiros espartanos e fazê-los desejar morrer por sua pátria (§ 107)2: τεθνάμεναι γὰρ καλὸν ἐνὶ προμάχοισι πεσόντα ἄνδρ’ ἀγαθὸν περὶ ἧι πατρίδι μαρνάμενον· τὴν δ’ αὐτοῦ προλιπόντα πόλιν καὶ πίονας ἀγρούς πτωχεύειν πάντων ἔστ’ ἀνιηρότατον, πλαζόμενον σὺν μητρὶ φίληι καὶ πατρὶ γέροντι παισί τε σὺν μικροῖς κουριδίηι τ’ ἀλόχωι. ἐχθρὸς μὲν γὰρ τοῖσι μετέσσεται οὕς κεν ἵκηται, χρησμοσύνηι τ’ εἴκων καὶ στυγερῆι πενίηι, αἰσχύνει τε γένος, κατὰ δ’ ἀγλαὸν εἶδος ἐλέγχει, πᾶσα δ’ ἀτιμίη καὶ κακότης ἕπεται. (5) (10) †εἰ δ’ οὕτως ἀνδρός τοι ἀλωμένου οὐδεμί’ ὤρη 3 γίνεται οὔτ’ αἰδὼς οὔτ’ ὀπίσω γένεος. θυμῶι γῆς πέρι τῆσδε μαχώμεθα καὶ περὶ παίδων θνήσκωμεν ψυχ<έω>ν μηκέτι φειδόμενοι. ὦ νέοι, ἀλλὰ μάχεσθε παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες, μηδὲ φυγῆς αἰσχρῆς ἄρχετε μηδὲ φόβου, ἀλλὰ μέγαν ποιεῖτε καὶ ἄλκιμον ἐν φρεσὶ θυμόν, μηδὲ φιλοψυχεῖτ’ ἀνδράσι μαρνάμενοι· τοὺς δὲ παλαιοτέρους, ὧν οὐκέτι γούνατ’ ἐλαφρά, μὴ καταλείποντες φεύγετε, τοὺς γεραιούς. (15) (20) αἰσχρὸν γὰρ δὴ τοῦτο, μετὰ προμάχοισι πεσόντα κεῖσθαι πρόσθε νέων ἄνδρα παλαιότερον, 2 3 Ver a Introdução, “Tirteu e a Elegia Grega Arcaica” para citação, tradução e uma consideração desta fonte no que tange à ocasião de performance da elegia grega arcaica. Neste verso, adotamos a correção proposta por Francke (1816). 68 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial ἤδη λευκὸν ἔχοντα κάρη πολιόν τε γένειον, θυμὸν ἀποπνείοντ’ ἄλκιμον ἐν κονίηι, αἱματόεντ’ αἰδοῖα φίλαις ἐν χερσὶν ἔχοντα – αἰσχρὰ τά γ’ ὀφθαλμοῖς καὶ νεμεσητὸν ἰδεῖν, καὶ χρόα γυμνωθέντα· νέοισι δὲ πάντ’ ἐπέοικεν, ὄφρ’ ἐρατῆς ἥβης ἀγλαὸν ἄνθος ἔχηι, ἀνδράσι μὲν θηητὸς ἰδεῖν, ἐρατὸς δὲ γυναιξὶ ζωὸς ἐών, καλὸς δ’ ἐν προμάχοισι πεσών. (25) (30) ἀλλά τις εὖ διαβὰς μενέτω ποσὶν ἀμφοτέροισι στηριχθεὶς ἐπὶ γῆς, χεῖλος ὀδοῦσι δακών. Belo, sim, é morrer, na vanguarda caindo um varão valoroso a lutar pela pátria. Mas mendigar, deixando sua cidade e férteis campos, de tudo é o mais penoso, vagando com a cara mãe e o velho pai, ilhos pequenos e esposa legítima. Será odioso entre aqueles a quem chegar, pois cede à carência e à pobreza horrível, envergonha a linhagem, vexa a forma esplêndida e toda a desonra e vileza o seguem. Se é assim, se ao varão errante não vêm préstimo ou respeito algum, e nem à descendência, com ânimo lutemos por esta terra, e pelos ilhos morramos, não mais poupando a vida! Jovens, vamos, lutai, mantendo-vos lado a lado, não inicieis a torpe fuga ou o pavor mas fazei grande e valente o ânimo no peito; não amai a vida, em luta com varões! 69 (5) (10) (15) as elegias de tirteu E não fujais, aos mais velhos abandonando, aos anciãos, que não têm mais joelhos ágeis. Pois, sim, isto é torpe: na vanguarda caindo, jazer ante os jovens um varão mais velho, já de cabeça branca e barba grisalha, expirando o valente fôlego na poeira, os ensanguentados genitais nas próprias mãos – que espetáculo torpe, que visão revoltante! – e o corpo despido: Mas tudo convém aos jovens enquanto tiverem a lor brilhante da amável juventude: é admirado por homens, por mulheres amado, quando vivo; e belo, se na vanguarda cai. (20) (25) (30) Vamos! Cada um ique bem irme, ambos os pés ixos ao chão, mordendo os lábios com os dentes! Há uma divergência quanto à composição dessa elegia. Embora os 32 versos do poema sejam citados por Licurgo de maneira contínua, como se fossem um só poema, a tese mais difundida entre os estudiosos é de que se trata de duas elegias distintas justapostas: a primeira, do verso 1 ao 14, e a segunda, do verso 15 ao 32. O texto de Licurgo em nada auxilia a dirimir esta questão, uma vez que ele denomina os versos de Tirteu apenas como ἐλεγεῖα, “dísticos elegíacos”, podendo eles pertencerem a um único poema ou diversos. O editor de κατὰ Λεωκράτους, C.H. Heinrich (1821) foi o primeiro a aventar a hipótese da elegia separada, sendo seguido por Wilamowitz (1900) e por alentada análise de F. Jacoby (1921, apud Prato, 1968, p. 82). Wilamowitz questiona a autenticidade dos versos 15-32, uma vez que a palavra φιλοψυχεῖτε (v. 18) só é encontrada em 70 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial textos a partir do século V a.C. (1900, p. 111 apud De Falco e Coimbra, 1941, p. 165) 4. O erudito também lança suspeitas sobre os versos 1-14, que, segundo ele, descrevem uma guerra defensiva – contrária à situação dos Espartanos durante a Guerra Messênia. O argumento de Jacoby para a cisão está em uma possível mudança de interlocutores: enquanto nos primeiros versos predomina uma exortação na qual o próprio poeta se associa aos demais, como demonstram os subjuntivos exortativos na primeira pessoa do plural μαχώμεθα (makhómetha, “lutemos”, v. 13) e θνήσκωμεν (thnéskhomen, “morramos”, v. 14), a partir do verso 15 o poeta se afasta e o destinatário passa a ser um “vós”, mais especiicamente, os jovens soldados (ὦ νέοι, v. 15). O uso de verbos na segunda pessoa do plural, como, por exemplo, μάχεσθε (mákhesthe, “lutai”, v. 15), assinalariam esta exortação mais destacada. Sitzler (1921, apud Prato, op.cit.) ofereceu argumentos contra esta hipótese ao observar que, na Ilíada, um mesmo passo às vezes alterna ordens na primeira e na segunda pessoa do plural, ou as traz em sucessão, de maneira a indicar ações distintas5. Assim, por exemplo, as palavras de Ares no Canto V da Ilíada (vv. 464469) primeiro reprovam os troianos por permitirem (ἐάσετε, eásete, “permitireis”, v. 465) o morticínio provocado pelos Aqueus e, depois, sugerem enfaticamente o resgate de Eneias, que havia sido ferido por Diomedes, usando a primeira pessoa do plural σαώσομεν (saósomen, “salvaremos”): 4 5 Eurípides, Alceste, v. 703; Hécuba, 315; Heraclidas 518, 533. Os exemplos trazidos pelo estudioso são: Il 5.464 ss., 6.67 ss., 13.95 ss., 15.496 ss.. 71 as elegias de tirteu ὦ υἱεῖς Πριάμοιο διοτρεφέος βασιλῆος ἐς τί ἔτι κτείνεσθαι ἐάσετε λαὸν Ἀχαιοῖς; ἦ εἰς ὅ κεν ἀμφὶ πύλῃς εὖ ποιητῇσι μάχωνται; κεῖται ἀνὴρ ὃν ἶσον ἐτίομεν Ἕκτορι δίῳ Αἰνείας υἱὸς μεγαλήτορος Ἀγχίσαο· ἀλλ’ ἄγετ’ ἐκ φλοίσβοιο σαώσομεν ἐσθλὸν ἑταῖρον. Ó filhos de Príamo, rei nutrido por Zeus, até quando permitireis que a tropa seja dizimada pelos Aqueus? Quando estiverem lutando ao redor das portas bem lavradas? Está caído o varão, que igual ao divino Heitor louvávamos, Enéias, o ilho de Anquises de grande coração. Eia, vamos! Salvemos o bom companheiro do embate! Quanto a essa sugestão, Prato (1968, p. 83) rejeita-a alegando que Tirteu não exorta para duas ações distintas, mas para a mesma ação, evidente no uso dos verbos μαχώμεθα (v. 13) e μάχεσθε (v. 15). Embora muitos dos exemplos propostos por Sitzler sejam discutíveis, uma vez que nem todos constituem exortações de fato, concordaremos com outra leitura, proposta por Schmid (1929, apud De Falco e Coimbra, 1941, p. 165), Jäger (1966, p. 107), Verdenius (1969, p. 346) e, mais recentemente, Faraone (2008, pp. 45-51) que leem os versos de Tirteu como pertencentes a um único poema. Schmid (apud De Falco e Coimbra, 1941, p. 165) enxerga no poema uma composição tripartite: para ele, os catorze primeiros versos têm como interlocutores homens já não tão jovens, com esposa, ilhos pequenos e pais idosos (entre os quais o poeta se reconhece), ao passo que os versos restantes dirigem a exortação a rapazes na lor da idade. Ambos os grupos seriam reunidos na exortação inal do poema (vv. 31-32), conferindo unidade à elegia. 72 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial Apesar de este não ser um recurso estranho às elegias de Tirteu6, não nos parece haver tal segmentação neste poema; nesse caso, estaremos mais de acordo com a proposta de Verdenius (1969, p. 346): em vez de uma mudança nos interlocutores, o que ocorre é uma mudança de tom. Segundo Verdenius, a primeira parte (vv. 1-14) apresenta um tom mais relexivo, e a exortação propriamente dita se daria apenas a partir da segunda metade da elegia (vv. 15-32). O uso da primeira pessoa do plural, então, consistiria em uma estratégia retórica; diz Verdenius (1969, p. 347): “a primeira pessoa do plural é frequentemente utilizada como icção para ins pedagógicos; o narrador expressa sua identiicação com um grupo ao simular que pertence a ele. É o que professores fazem sempre. Por que Tirteu não poderia ter feito o mesmo?”. Christopher A. Faraone, ao analisar a estrutura da elegia grega arcaica em The stanzaic archicteture of early greek elegy (2008, pp. 45-51) observa que esta alternância entre relexão e exortação não seria apenas um recurso empregado por Tirteu, mas antes constituiria um padrão composicional de toda a elegia grega arcaica. O autor sugere que a elegia grega arcaica é organizada por uma estrutura estróica, na qual cada estrofe corresponde a cinco dísticos elegíacos. Faraone (2008, p. 41) observa que um dos recursos comuns da elegia marcial é a alternância de estrofes que contém relexões com estrofes propriamente exortativas. Os trinta primeiros versos do fragmento 10 W demonstram esta alternância: a primeira estrofe (vv. 1-10) oferece uma relexão, na 6 Ver o fragmento 11 W, no qual os 34 primeiros versos dirigem-se à linhagem do invencível Héracles, Ἡρακλῆος ἀνικήτου γένος, e os versos inais voltam-se para os guerreiros de armamentos leves, γυμνῆτες. No fragmento 19 W, similarmente, o poeta também parece tratar de segmentos especíicos do exército. 73 as elegias de tirteu qual se colocam duas situações opostas: lutar e morrer pela terra pátria (vv. 1-2) ou fugir (vv. 3-10). Os versos descrevem, de maneira geral e hipotética, as consequências para um guerreiro que abandona o conlito. Já no segundo grupo de cinco dísticos (vv. 11-20), o poeta passa para a exortação direta de seus interlocutores, distribuindo sete ordens ao longo dos dez versos: μαχώμεθα,“lutemos”, v. 13; θνήσκωμεν, “morramos”, v. 14; μάχεσθε, lutai, v. 15; μηδὲ φυγῆς αἰσχρῆς ἄρχετε μηδὲ φόβου, “não começai torpe fuga ou pavor”, v. 16; μέγαν ποιεῖτε καὶ ἄλκιμον ἐν φρεσὶ θυμόν, “fazei grande e valente o ânimo no peito”, v. 17; μηδὲ φιλοψυχεῖτε, “não amai a vida”; v. 18 e μὴ καταλείποντες φεύγετε, τοὺς γεραιούς, “não fujais, deixando para trás os velhos”, v. 20. Nos versos 21-30, o poeta volta às relexões de cunho geral para demonstrar, novamente, dois quadros distintos: por um lado, o horror que é a visão de um guerreiro veterano que tomba na linha de frente, e, por outro, a conveniência desta mesma situação para um jovem. Faraone ainda observa que as três estrofes são interrelacionadas de modo a sugerir uma unidade coesa entre elas, uma vez que, no início de cada nova estrofe, Tirteu retoma um tema que era central na estrofe anterior. Assim, diante das consequências da fuga descritas na primeira estrofe, o poeta conclui, na estrofe seguinte, que a melhor alternativa é lutar (vv. 11-14): †εἶθ’ οὕτως ἀνδρός τοι ἀλωμένου οὐδεμί’ ὤρη γίνεται οὔτ’ αἰδὼς οὔτ’ ὀπίσω γένεος. θυμῶι γῆς πέρι τῆσδε μαχώμεθα καὶ περὶ παίδων θνήσκωμεν ψυχέων μηκέτι φειδόμενοι. (11) Se é assim, se ao varão errante não vêm préstimo ou respeito algum, e nem à descendência, (11) 74 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial com ânimo por esta terra lutemos, e pelos ilhos morramos, não mais poupando a vida! Enquanto os versos 21 a 30 dão a explicação para a exortação empreendida ao im da estrofe anterior (vv. 19-22): τοὺς δὲ παλαιοτέρους, ὧν οὐκέτι γούνατ’ ἐλαφρά, μὴ καταλείποντες φεύγετε, τοὺς γεραιούς. αἰσχρὸν γὰρ δὴ τοῦτο, μετὰ προμάχοισι πεσόντα κεῖσθαι πρόσθε νέων ἄνδρα παλαιότερον [...] E não fujais, aos mais velhos abandonando, aos anciãos, que não têm mais joelhos ágeis . Pois, sim, isto é torpe: na vanguarda caindo, jazer ante aos jovens um varão mais velho (...) (20) (20) A análise de Faraone é extremamente acurada ao notar as semelhanças entre cada grupo de dez versos no fragmento de Tirteu, mas não consegue incluir em seu esquema de composição estróica o dístico inal (vv. 31-32): ἀλλά τις εὖ διαβὰς μενέτω ποσὶν ἀμφοτέροισι στηριχθεὶς ἐπὶ γῆς, χεῖλος ὀδοῦσι δακών. Mas que cada um ique bem irme, ambos os pés ixos ao chão, mordendo os lábios com os dentes! Esses versos geraram suspeitas já entre os primeiros editores das elegias de Tirteu. Brunck (1772 apud Faraone 2008, p. 51), veriicando que este dístico é idêntico aos vv. 21-22 do fragmento 11 W, o desconsidera, julgando que se tratava de alguma interpolação feita por um copista. Francke (1816, p. 153 apud Bach, 1831, p. 105) o segue, e tenta reunir os fr. 10 W e o 11 W em 75 as elegias de tirteu um mesmo poema. Bach (1831, p. 105) rejeita a sua hipótese, já observando a qualidade destes versos7 e perguntando-se porque Tirteu não poderia repeti-lo em outro poema. Para Faraone (2008, p. 51) o último dístico encerra o poema “de maneira desajeitada”, caso se leve em conta “a estrutura estróica delineada acima”. O autor então sugere que o poema continuava após o verso 32, formando uma elegia com, no mínimo, quatro estrofes – e que, portanto, Licurgo não citaria duas elegias justapostas, mas apenas uma, incompleta. A proposta de Faraone é adequada no sentido de resolver a questão longamente discutida sobre cisão da elegia no verso 15, ao identiicar similitudes e continuidades ao longo dos versos 1-30; Entretanto, parece-nos criar outro problema quando sugere a incompletude da elegia. A nosso ver, o emprego de uma breve exortação após uma sequência de meditação (como são os vv. 21-30) imprime no poema um fecho sentencioso que resume e contribui para a unidade da elegia marcial. O impacto desta exortação inal é evidenciado no uso de ἀλλά – “partícula usualmente empregada em comandos e exortações para marcar um encerramento ou um último apelo” (Denniston, 1954, p. 14). Esta conclusão impactante, na qual versos meditativos são seguidos por um dístico de exortação, ocorre também em outro fragmento de Tirteu (12. 35-44 W): εἰ δὲ φύγηι μὲν κῆρα τανηλεγέος θανάτοιο, νικήσας δ’ αἰχμῆς ἀγλαὸν εὖχος ἕληι, πάντες μιν τιμῶσιν, ὁμῶς νέοι ἠδὲ παλαιοί, πολλὰ δὲ τερπνὰ παθὼν ἔρχεται εἰς Ἀΐδην, γηράσκων δ’ ἀστοῖσι μεταπρέπει, οὐδέ τις αὐτὸν 7 (35) Ver o Capítulo 2: o fragmento 11 e o modo de guerra, pp. 129-131, para uma análise detalhada deste dístico. 76 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial βλάπτειν οὔτ’ αἰδοῦς οὔτε δίκης ἐθέλει, πάντες δ’ ἐν θώκοισιν ὁμῶς νέοι οἵ τε κατ’ αὐτὸν εἴκουσ’ ἐκ χώρης οἵ τε παλαιότεροι. ταύτης νῦν τις ἀνὴρ ἀρετῆς εἰς ἄκρον ἱκέσθαι πειράσθω θυμῶι μὴ μεθιεὶς πολέμου. (40) Mas se escapa à sina da morte de longo luto, e, ao vencer, conquista o triunfo ilustre da lança, todos o honram, igualmente jovens e velhos e depois de viver muitas alegrias, vai ao Hades. Envelhecendo, distingue-se entre os cidadãos, e ninguém quer faltar-lhe com respeito e justiça; todos, jovens e seus coetâneos, cedem-lhe lugar em conselho, e também os mais velhos. Tente hoje cada varão ao ápice dessa virtude chegar, com coragem, sem descuidar da guerra! (35) (40) Jäger (1966, p. 107) e Verdenius (1969, p. 345) sugerem que esta elegia é indiretamente citada por Platão, em um passo das Leis (630 b), anterior, portanto, ao κατὰ Λεωκράτους de Licurgo. O Estrangeiro Ateniense tenta comprovar a sua hipótese de que o melhor homem dispõe da combinação de quatro virtudes cardeais: coragem (ἀνδρεία), justiça (δικαιοσύνη), temperança (σωφροσύνη) e sabedoria (φρόνησις). Para isso recorre a versos que teriam pertencido a Tirteu, que, de acordo com ele, falou de homens que possuíam apenas bravura e careciam das demais virtudes: πιστὸς μὲν γὰρ καὶ ὑγιὴς ἐν στάσεσιν οὐκ ἄν ποτε γένοιτο ἄνευ συμπάσης ἀρετῆς· διαβάντες δ’ εὖ καὶ μαχόμενοι ἐθέλοντες ἀποθνῄσκειν ἐν ᾧ πολέμῳ φράζει Τύρταιος τῶν μισθοφόρων εἰσὶν πάμπολλοι, ὧν οἱ πλεῖστοι γίγνονται θρασεῖς καὶ ἄδικοι 77 as elegias de tirteu καὶ ὑβρισταὶ καὶ ἀφρονέστατοι σχεδὸν ἁπάντων, ἐκτὸς δή τινων εὖ μάλα ὀλίγων. Pois [um homem] jamais seria leal e íntegro nas guerras civis sem uma virtude total. Na guerra a qual Tirteu se refere, havia uma grande quantidade de mercenários irmemente plantados e tencionando morrer em combate. Desses a maioria era insolente, injusta, descomedida e, ouso dizer, os mais insensatos de todos os homens, exceto uma minoria bem pequena. Nesse sentido, seguiremos a sugestão de que se trata de um único poema, provavelmente completo, e que sua coesão pode ser veriicada a partir de imagens e argumentos que se reiteram ao longo de todo o poema. Cabe, portanto, analisar que imagens seriam essas e de que maneira o poeta procede em sua elaboração. O fr. 10 W e um exemplo de enárgeia Além de uma mudança de tom como propõe Verdenius, lançaremos a hipótese de que o fr. 10 W engendra duas imagens em sucessão, cada uma visando realçar e explicar a mesma situação vista por dois pontos de vista diferentes. A primeira imagem (vv. 3-10) concebe as consequências hipotéticas para o varão fora do combate: o guerreiro que evitou a guerra, se não morre em combate, é condenado a um destino ainda pior aos olhos do poeta: vagar em completa miséria e destituído de todos os seus privilégios. Com essa imagem, o poeta justiica a asserção feita nos versos 1 e 2, um paradigma de todo o gênero elegíaco marcial, τεθνάμεναι γὰρ καλὸν ἐνὶ προμάχοισι πεσόντα/ἄνδρ’ 78 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial ἀγαθὸν περὶ ἧι πατρίδι μαρνάμενον, “belo, sim, é morrer, na vanguarda caindo,/ um varão valoroso a lutar pela pátria” (vv. 1-2). Tirteu estabelece a imagem no verso 10 e dirige as primeiras exortações nos versos 11 a 14. Contrapondo-se à imagem do guerreiro errante, o poeta conclui que a melhor alternativa é adentrar o combate, e ratiica assim a validade universal do preceito exposto no vv. 1-2 (o que justiicaria também o uso da primeira pessoa do plural). As exortações que se seguem (vv. 15-20) ainda levam em conta a oposição entre fugir ou lutar, mas já pressupõem um jovem guerreiro dentro do campo de batalha. Uma vez lá, a exortação geral dos versos 14-15, “viver e morrer pela pátria e pelos ilhos”, se desenvolve em outras exortações que prescrevem como deve ser a conduta deste jovem no combate (vv. 13-20). Assim, a segunda imagem elaborada pelo poeta também será do ponto de vista de dentro do combate, e versará agora sobre as consequências da fuga vistas sob essa ótica. Novamente é um julgamento ético e moral que desencadeia a construção da imagem: assim como declarou que a morte na guerra é bela (καλός, kalós, v. 1), a fuga, por sua vez, é feia e vergonhosa (αἰσχρός, aiskhrós, v. 21). O poeta então justiica essa última declaração com outra imagem, a do guerreiro veterano que morre de forma aviltante no lugar dos jovens (vv. 21-27). Os últimos versos (vv. 27-29) retomam a airmação geral do primeiro e acrescentam a ela um tom particularizante, que leva em conta as oposições καλός (v. 1) x αἰσχρός (v. 21) e νέοι (v. 15) x ἀνήρ παλαιότερος (v. 22) desenvolvidas ao longo do poema. Uma exortação inal, demarcada por ἀλλά, encerra o poema. Como observam Prato (1968, p. 53*) e Maria Noussia em “Lo Stilo Semplice di Tirteo?” (2010, p. 17), a poesia exortativa 79 as elegias de tirteu de Tirteu tem como característica elaborar exortações inspiradas por uma visão de mundo heroica. Como se trata de uma visão de mundo já transmitida e conhecida pela tradição, o poeta não precisa explicar os conceitos éticos nos quais essas exortações se fundam, mas procura justiicá-las, acessando conhecimentos que já são compartilhados por toda a sua audiência, por meio de descrições imagéticas. Noussia (2010, p. 19) identiica esse procedimento como ἐνάργεια (“enárgeia”, “vividez”) e salienta a sua eicácia retórica, cujo resultado é a identiicação e a criação de um elo emocional entre autor e público. Vale acrescentar que uma poesia que dá tamanha importância à enárgeia – cuja principal característica é por diante dos olhos da audiência um retrato distante 8– encontra-se em casa no simpósio, que tem como uma de suas características a atribuição de papéis ou de situações apenas imaginadas pelos seus participantes9. E, como se tentará demonstrar nos comentários abaixo, o fr. 10 W deixa entrever um contexto eminentemente simposial, no qual Tirteu desenha imagens de guerra repletas de detalhes realísticos e circunstanciais com o intuito de atribuir à sua audiência papéis heroicos similares àqueles retratados pela tradição épica. A bela morte e o penoso exílio (vv. 1-14) O primeiro dístico introduz uma tópica que forma um argumento recorrente na elegia exortativa marcial, embora não seja exclusiva dela: Tirteu airma a primazia do dever cívico e a beleza da morte em combate, dando a vida pela terra pátria e pela 8 Ver Bowie, 1990, p. 222. 9 Ver Bowie, 1986, p. 17. 80 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial família. Muitos estudiosos tencionam estabelecer uma característica distintiva entre a épica e a elegia marcial 10 vendo nesses versos um desenvolvimento da noção de patriotismo. Como tentamos demonstrar11, essas diferenças não parecem tão substanciais a ponto de representar uma mudança histórica ou um novo estágio no desenvolvimento do pensamento político grego. Ainda que a anterioridade da poesia de Homero esteja garantida, pode se atribuir as diferenças entre um e outro ao gênero: enquanto a poesia épica, dada a sua extensão, pode desenvolver diversas perspectivas acerca da guerra, Tirteu coloca na forma mais breve da elegia apenas os argumentos que deseja ressaltar. Não é, portanto, um traço exclusivo da elegia exortativa marcial, mas um lugar comum que já se encontra em muitos passos da poesia grega arcaica. O primeiro exemplo é na Ilíada, quando Heitor exorta seus compatriotas com um sentimento similar àquele expresso nos versos de Tirteu (Il. 15. 494-497): ἀλλὰ μάχεσθ’ ἐπὶ νηυσὶν ἀολλέες· ὃς δέ κεν ὕμεων βλήμενος ἠὲ τυπεὶς θάνατον καὶ πότμον ἐπίσπῃ τεθνάτω· οὔ οἱ ἀεικὲς ἀμυνομένῳ περὶ πάτρης τεθνάμεν (...) Eia! Combatei, juntos nos navios! Caso algum de vós Seja golpeado ou ferido e encontre a morte e a sina, Que morra! Não é vergonha p’ra quem defende a pátria Ser morto! 10 11 (495) (495) Bowra, 1960 (p. 52); Snell, 1982 (pp. 172-173), Krischer, 1979, pp. 385-389 (apud Irwin, 2005, p. 46); Raalaub, 1993, pp. 41-42. Ver Introdução, “Homero e Tirteu”, pp. 55-62. 81 as elegias de tirteu Calino de Éfeso (fr. 1, vv. 11-15 W) também registra essa tópica, sob uma perspectiva muito explorada na poesia elegíaca12, a da inevitabilidade da morte. οὐ γάρ κως θάνατόν γε φυγεῖν εἱμαρμένον ἐστὶν ἄνδρ’, οὐδ’ εἰ προγόνων ἦι γένος ἀθανάτων. πολλάκι δηϊοτῆτα φυγὼν καὶ δοῦπον ἀκόντων ἔρχεται, ἐν δ’ οἴκωι μοῖρα κίχεν θανάτου, ἀλλ’ ὁ μὲν οὐκ ἔμπης δήμωι φίλος οὐδὲ ποθεινός (15) Pois não há como um varão fugir à morte assinalada, Mesmo que seja da estirpe de ancestres imortais; muitas vezes quem foge à luta e ao estridor de dardos retorna, mas a hora fatal da morte o pega em casa. Esse não é caro ao povo, nem dele se tem saudade; (15) A tópica também é explorada nos fragmentos de Simônides que nos chegaram sob o título de θρῆνοι (thrênoi, trenos), mas enquanto lá a fatalidade do destino serve como ensejo para o elogio do morto, na elegia exortativa constitui um argumento para a exortação ao combate. O fragmento 525 PMG de Simônides já ressalta a impossibilidade de um guerreiro subtrair-se à morte com a fuga: ὁ δ’ αὖ θάνατος κίχε καὶ τὸν φυγόμαχον. e a morte alcança até mesmo o desertor. A primeira palavra do fragmento 10 W, τεθνάμεναι, pode ser lida de duas maneiras diferentes e excludentes entre si. A 12 Ver, por exemplo, Simônides, fr. 8 W; Mimnermo fr. 2. 5-7 W. 82 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial leitura mais aceita é a de W. J. Verdenius, em Tyrtaeus 6-7 D: A Commentary (1969, p. 338). O autor entende o verbo, situado em início de oração, como um enfático para “morrer”, e encontra usos similares em Homero (ver acima, Il. 15, 496-497) e no Ájax de Sófocles (vv. 479-480). Ele nota a presença do particípio presente μαρνάμενον (v. 2) que força a entender que o poeta está empregando o perfeito para exprimir a intensidade de uma ação. O sentido seria: “é belo morrer lutando pela pátria”. A outra leitura é proposta de Carlo Prato em seu comentário a Tirteu (1968, p. 87). Para esse estudioso, trata-se do perfeito em sua utilização habitual, a de indicar o estado presente de uma ação passada, e poderíamos denotar isso por causa do emprego de πεσόντα no verso 1, com um mesmo sentido de πεσόντα κεῖσθαι (“jazer caído”, 10. 21-22 W), no mesmo fragmento. A leitura correta para Prato seria, então: “Estar morto, caído na vanguarda, é belo”. Cada estudioso cita o particípio que favorece mais a sua leitura e ignora o outro. Qual seria, então, a leitura mais adequada? Não é difícil pensar que Tirteu tenha considerado as duas possibilidades para τεθνάμεναι, de maneira a permitir um duplo entendimento para καλόν (v. 1), que pode ser tanto ético (se considerarmos a hipótese de Verdenius, “é belo morrer... lutando pela pátria”) quanto estético ( a hipótese de Prato, “é belo estar morto caído nas primeiras linhas”), já que ambos os sentidos para o adjetivo serão reiterados ao longo do poema, como veremos. A noção de bela morte não é exclusiva de Tirteu e da poesia épica, mas recebeu ampla difusão: encontramo-la em um fragmento de Alceu (fr. 400 Voigt: τὸ γάρ Ἂρευι κατθάνην κάλον, Pois o que é belo/ é ser morto por Ares) e nos Sete Contra Tebas de Ésquilo (v. 1011, τοῖς νέοις θνῄσκειν καλόν, para os jovens é 83 as elegias de tirteu belo morrer). Horácio veio a empregar a noção e ampliá-la na Ode 3.2, v. 13: Dulce et decorum est pro patria mori. Se Horácio compôs este verso inluenciado pelo de Tirteu, como sugere Locksley I. Lindo, em “Tyrtaeus and Horace Odes 3.2” (1971, pp. 258-260), é curioso notar que ele provavelmente teria lido καλόν com o mesmo sentido ético/estético assinalado em Tirteu, ao se valer de um vocábulo latino que evoca ambivalência similar: decorum, cujo signiicado pode ser tanto estético (“belo”, “elegante”13), como ético (“nobre” ou “adequado” 14). Na epopeia homérica, προμάχοι (v. 1) é o termo empregado para denominar os guerreiros mais valorosos, o herói que luta sozinho na vanguarda. 15 Não há porque pensar que Tirteu fizesse aqui uma alusão explícita à falange hoplítica16, mas é muito provável que estes προμάχοι fossem compostos preferencialmente de jovens combatentes, como mostrarão os versos 21–22. O sujeito de τεθνάμεναι será introduzido no início do verso 2 em posição inicial: ἄνδρ’ ἀγαθόν. Tirteu utiliza com bastante frequência a posição das palavras no verso para gerar efeito estético, colocando as palavras de maior destaque nas posições mais importantes do verso, o início e o im, e é o que ocorre aqui. Devemos entender ἄνδρ’ ἀγαθόν como “o guerreiro de valor”. O adjetivo é considerado um termo chave da ética homérica e está associado na Ilíada à noção de eicácia, como demonstra A.W.H. Adkins em Merit and Responsibility, a Study on Greek 13 Ver Virg. Eneida, 11.480 (oculos decoros). 14 Ver Hor. Odes 1.10.3-4 (decorae...palaestrae), Odes 4.1.35-36 (decoro...silentio). 15 16 Ver, por exemplo, Il.3.31: Τὸν δ’ ὡς οὖν ἐνόησεν Ἀλέξανδρος θεοειδὴς/ ἐν προμάχοισι φανέντα (quando deiforme Alexandre viu-o/aparecendo na vanguarda). Ver os comentários ao fr. 11 W, pp. 105-142. 84 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial Values (1960, pp. 31-32)17. E tanto nas elegias de Tirteu quanto na Ilíada, essa eicácia está diretamente associada à capacidade militar: no fragmento 12 W, Tirteu ressalta que a única ἀρετή válida é a “bravura impetuosa”, θοῦρις ἀλκή. Em Homero, mostra Verdenius (1969, p. 339), ocorre a mesma concepção: quando Aquiles chama Heitor de ἄριστος em Ilíada 21.279, não está em jogo nenhuma qualiicação moral: apenas o valor de Heitor como o melhor guerreiro de Troia. Do mesmo modo, é o valor na guerra que é considerado no fragmento, como demonstra o particípio presente μαρνάμενον (v. 2), e não um valor amplo e abstrato, como sugeriu Bowra (1938, p. 64). Os versos 3-10 opõem o tom sentencioso e heroico do dístico anterior com um cenário negativo para o derrotado que sobrevive ao combate. A oposição é um dos procedimentos mais utilizados por Tirteu, e revela um método de argumentação e pensamento típicos da elegia grega arcaica.18 Há divergências entre os estudiosos sobre como o guerreiro se abstém do combate: para Schwartz (apud Prato, p. 88), trata-se do exílio voluntário, um desertor que almeja fugir das obrigações militares e dos riscos da guerra. Essa também é a opinião de Prato (1968, p. 89) e Jäger (1966, p. 110), mas Verdenius (1969, p. 339) prefere ver nesses versos o exílio forçado, a consequência para aquele que é derrotado em combate e reduzido à escravidão. O autor argumenta em favor dessa hipótese evocando o fragmento 5. 7-8 W de Tirteu, que relata a situação dos Messênios derrotados, que tiveram de abandonar as suas “férteis lavouras” (πίονα 17 Ver os comentários ao fr. 12W, pp. 143-183. 18 Ver, por exemplo, Sólon fr. 4W, v. 19ss, Teognideia 949-954. 85 as elegias de tirteu ἔργα λιπόντες) e fugir (φεῦγον) de suas terras para evitar a morte ou a escravidão19. O fragmento 4. 23-25 W de Sólon retrata a escravidão como o desfecho para os muitos males que assolam a cidade, dentre eles a guerra: ταῦτα μὲν ἐν δήμωι στρέφεται κακά· τῶν δὲ πενιχρῶν ἱκνέονται πολλοὶ γαῖαν ἐς ἀλλοδαπὴν πραθέντες δεσμοῖσί τ’ ἀεικελίοισι δεθέντες (25) revolvem no povo esses males; dentre os pobres muitos chegam à terra alheia, vendidos e agrilhoados com vexatórios grilhões. (25) Luana Quatrocelli, em “Tirteo e La Retorica de Elite” (2008,p. 12) aduz um dado histórico: a autora informa que o conisco de bens e o assassinato eram dois elementos frequentes que compunham a violência contra as elites em situações de revolta civil (στάσις). Nesse sentido, talvez o quadro de Tirteu para o guerreiro exilado (vv. 3-10) seja direcionado não para um soldado qualquer, mas exclusivamente para essa elite, chamada por ele de Ἡρακλῆος ἀνικήτου γένος, “a linhagem do invencível Héracles”, em outro poema (fr. 11.1 W). A única alternativa à escravidão desenhada por Tirteu é o exílio, um quadro pior que a morte: ao abandonar a sua pólis (προλιπόντα πόλιν) o guerreiro perde os seus direitos e também a sua riqueza, sinalizada aqui por πίονας ἀγρούς (píonas agroús, “campos férteis”). A similaridade entre os termos πίονας ἀγρούς (píonas agroús, “campos férteis”) no fr. 10 W e férteis lavouras (πίονα ἔργα) em 5.7 W nos parece grande demais para descartar a possibilidade de 19 Ver os comentários ao fr. 5W, na Parte II deste trabalho (pp. 247-266). 86 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial que Tirteu não estivesse espelhando propositalmente as imagens dos dois poemas. Mas a menção aos campos férteis se insere também em um registro mais amplo da poesia grega e especialmente da epopeia homérica; trata-se de um conceito que deine a glória conquistada na guerra e a τιμή por termos que são essencialmente materiais (Ver Adkins, 1977, pp. 70-71). Assim, ao mesmo tempo em que são um sinal de status, a opulência conquistada representa em termos materiais o valor guerreiro. Talvez o exemplo melhor elaborado dessa equação entre status e valor na guerra esteja no discurso de Sarpédon para Glauco, no canto 12 da Ilíada. Lá, o herói dirige-se ao seu interlocutor airmando que as honrarias que eles recebem de seu povo os identiicam também como os melhores guerreiros dentre os seus: Γλαῦκε τί ἢ δὴ νῶϊ τετιμήμεσθα μάλιστα ἕδρῃ τε κρέασίν τε ἰδὲ πλείοις δεπάεσσιν ἐν Λυκίῃ, πάντες δὲ θεοὺς ὣς εἰσορόωσι, καὶ τέμενος νεμόμεσθα μέγα Ξάνθοιο παρ’ ὄχθας καλὸν φυταλιῆς καὶ ἀρούρης πυροφόροιο; τὼ νῦν χρὴ Λυκίοισι μέτα πρώτοισιν ἐόντας ἑστάμεν ἠδὲ μάχης καυστείρης ἀντιβολῆσαι, ὄφρά τις ὧδ’ εἴπῃ Λυκίων πύκα θωρηκτάων· οὐ μὰν ἀκλεέες Λυκίην κάτα κοιρανέουσιν ἡμέτεροι βασιλῆες, ἔδουσί τε πίονα μῆλα οἶνόν τ’ ἔξαιτον μελιηδέα· ἀλλ’ ἄρα καὶ ἲς ἐσθλή, ἐπεὶ Λυκίοισι μέτα πρώτοισι μάχονται. Glauco, por que nós dois somos honrados ao máximo com trono, carnes e cálices repletos na Lícia? Por que todos nos admiram como Deuses 87 (310) (315) (320) (310) as elegias de tirteu e ocupamos vasto domínio às margens do Xanto, belo em videira e de seara dotada de trigo? Ora cabe a nós, estando entre os dianteiros dos lícios, icar irmes e encarar a batalha ardente, para que nenhum dos lícios de espessa couraça diga: “Não sem glória na Lícia governam nossos reis, eles que comem gordas ovelhas e bebem vinho distinto e doce-mel; a sua força também é boa, pois lutam entre os dianteiros dos lícios! (315) (320) A glória de Sarpédon é deinida em bens essencialmente materiais; é nesse mesmo sentido que Tirteu retrata a perda de bens do seu exilado: o guerreiro errante não tem posses que justiiquem a sua honra, diferente dos ancestrais (πατέρων...πατέρες fr. 5.4 W), cuja vitória sobre os inimigos e seu valor em combate recebem materialização em πίονα ἔργα. Graças à menção à πτωχεύειν, “mendigar”, no verso 3, Adkins em “Callinus and Tyrtaeus 10 as poetry” (1977, p. 85) viu aqui uma alusão deliberada a Odisseia. Mesmo que não se trate de uma alusão direta, a icção criada por Odisseu é muito similar à igura elaborada por Tirteu nos versos 3-10: o personagem se declara como um escravo fenício, um ex-nobre destituído duas vezes de seus bens, que recusou a morte e fugiu da escravidão ao longo de sua jornada. Os versos 18-19 do canto 17, mencionando tanto πτόλιν quanto ἀγρούς podem ser signiicativos: πτωχῷ βέλτερόν ἐστι κατὰ πτόλιν ἠὲ κατ’ ἀγρούς δαῖτα πτωχεύειν· δώσει δέ μοι ὅς κ’ ἐθέλῃσιν. Ao mendigo, melhor coisa é pela cidade e pelos campos mendigar a refeição: Alguém, se quiser, me dará algo. 88 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial O superlativo ἀνιηρότατον (anierótaton, “mais penoso”) é raro, e além dessa ocorrência em Tirteu, todas as outras na poesia grega arcaica se encontram apenas na Teognideia e sempre na mesma posição, ocupando quase todo o segundo hemistíquio do pentâmetro elegíaco. Para Teógnis é ἀνιηρότατον reconhecer alguém desonesto ou algo adulterado (vv. 123-124); em um poema em que o eu-elegíaco é um Ἵππος καλὴ καὶ ἀεθλίη (belo e competidor corcel), carregar um homem κάκιστον (kákiston, “extremamente mau”, “pior”) é ἀνιηρότατον (vv. 257-258); em outro dístico que parece evocar Tirteu, não ter um companheiro de coniança (πιστὸς ἑταῖρος, pístos hetaîros) é que torna o exílio ἀνιηρότατον (vv. 209-210); no verso 811-812 da Teognideia, ἀνιηρότατον ressurge em contraponto com κάκιον (kákion, “pior”). Segundo Teógnis, a traição de um amigo (φίλον) só não é pior do que uma morte vergonhosa (θανάτου ἀεικέος), mas certamente é a coisa mais penosa (ἀνιηρότατον). A última ocorrência (vv. 1355-1356) diz ser ἀνιηρότατον o amor não correspondido. Quase todos os poemas acima, dada a importância que dão à ideia de heteria (vv. 209-210, vv. 811-812), ao Eros (vv. 13551356) e à iccionalização de papéis (vv. 257-258), permitem-nos associar ἀνιηρότατον como um vocábulo próprio dos jogos verbais do simpósio20 e carregado de uma forte ética aristocrática. O termo ἀνιηρόν, por outro lado, já aparece em Homero, em conjunto com πτωχὸν. Ele ocorre na fala de Melântio, que o usa para depreciar Odisseu (Od. 17. 220: πτωχὸν ἀνιηρόν, δαιτῶν ἀπολυμαντῆρα, “tristeza de mendigo, lambe-prato de banquetes”), o que leva a sugerir dois sentidos para o adjetivo: 20 Ver comentários ao fragmento 12 W, pp. 158-159. 89 as elegias de tirteu um, usado para qualiicar um estado de sofrimento (“penoso”) e outro, para depreciar alguém (“triste”, ou “horrível”). Um dístico repleto de expressões convencionais (vv. 5-6) se segue, em que a ênfase recai em πλαζόμενον, “vagando”, assinalando a condição do exilado. As outras expressões são todas convencionais, mas Tirteu tenta empreender certa variação nos adjetivos: como mostram De Martino e Vox (1996, p. 561), φίληι (fílei, “cara, querida”) sugere emotividade; γέροντι (géronti, “ancião”) é um substantivo com função adjetival; μικροῖς (mikroîs, “pequenos”) sugere afetividade, diferente de ὀλίγος (olígos), que é usualmente empregado apenas para designar a estatura (Verdenius, 1969, p. 341)21. κουριδίηι τ’ ἀλόχωι (kouridíei t’ alókhoi, “esposa legítima”) é uma fórmula22 e confere ao dístico certa tonalidade épica e própria ao universo bélico: deine a esposa legítima, isto é, aquela que não é obtida como espólio de guerra. Se nos versos 3-6 é o dano material que Tirteu relata, no próximo dístico ele relatará o dano moral, isto é, a perda da estima pública23. ἔχθρος (ékhtros, “odioso”), a palavra que abre o verso 7, cuida de descentralizar a imagem do herói exilado (v. 5, πλάζομενον) e dá lugar ao julgamento do olhar alheio sobre o combatente que cede à pobreza e à necessidade de trabalhar (sentido sugerido por Verdenius, 1969, p. 341, para χρησμοσύνηι, khresmosúnei). Em outras palavras, Tirteu realiza nesse dístico um apelo ao αἰδώς (aidós, “pudor”, “respeito”). 21 22 23 outra possibilidade de tradução para παισί τε σὺν μικροῖς poderia ser, portanto, “ilhinhos”. Que ocorre também em outra elegia marcial, Calino 1.7 W. Procedimento similar se dá nos fragmentos 6 e 7 W, em que primeiro (6 W) Tirteu enfatiza a escravidão dos Messênios, e depois (7 W) a pena moral de lamentarem pelos seus senhores. 90 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial Como mostra Douglas L. Cairns em Aidôs, The Psychology of Honor and Shame in Ancient Greek Literature (1993, pp. 160-161), um dos principais motivadores para a ação na elegia marcial é a opinião pública. Já no fragmento 1 W de Calino (v. 4) um dos argumentos para o νέος lançar-se à guerra é o αἰδώς em relação aos vizinhos (οὐδ’ αἰδεῖσθ’ ἀμφιπερικτίονας; “não tende vergonha de vossos convizinhos?”). O mesmo ideário já ocorre na Ilíada, e um exemplo pode estar no discurso de Fênix no canto 9, vv. 459-461; o único impedimento para que o personagem não matasse o pai é a voz do povo (δήμου φάτιν, démou phátin) e os muitos insultos (ὀνείδεα, oneídea) que receberia: ἀλλά τις ἀθάνατων παῦσεν χόλον, ὃς ῥ ἐνὶ θυμῶι δήμου θῆκε φάτιν καὶ ὀνείδεα πόλλ’ ἀνθρώπων, ὡς μὴ πατροφόνος μετ’ Αχαιοῖσιν καλεοίμην. Mas um dos imortais cessou-me a cólera, no meu ânimo infundiu a voz do povo e os muitos insultos dos homens, que entre os aqueus me chamariam de parricida. Em correlação com a partícula μέν no verso 7, a partícula τε no verso 9 prolonga o apelo ao αἰδώς por mais um dístico, adicionando um verbo fundamental para a noção e que, segundo Cairns ( 1993, p. 51), é um sinônimo para αἰδέομαι (aidéomai): trata-se de αἰσχύνει (aiskhúnei, “envergonhar”). O poeta conclui o pequeno quadro do exilado recorrendo a parâmetros de excelência social (Quatrocelli, p. 16), γένος e ἀγλαὸν εἶδος, que remetem não só à representação do herói épico, mas também do aristocrata (Irwin, 2005, pp. 36-40). Adkins (1977, p. 88) viu aqui uma alusão deliberada a um famoso discurso da Ilíada, o de Glauco para Diomedes acerca de suas origens (6.206-210): 91 as elegias de tirteu Ἱππόλοχος δέ μ’ ἔτικτε, καὶ ἐκ τοῦ φημι γενέσθαι· πέμπε δέ μ’ ἐς Τροίην, καί μοι μάλα πόλλ’ ἐπέτελλεν αἰὲν ἀριστεύειν καὶ ὑπείροχον ἔμμεναι ἄλλων, μηδὲ γένος πατέρων αἰσχυνέμεν, οἳ μέγ’ ἄριστοι ἔν τ’ Ἐφύρῃ ἐγένοντο καὶ ἐν Λυκίῃ εὐρείῃ. ταύτης τοι γενεῆς τε καὶ αἵματος εὔχομαι εἶναι. (210) Hipóloco gerou-me, e ilho dele airmo ser: enviou-me à Troia, e muitas coisas prescreveu-me: ser sempre o mais valoroso, superar os outros, e não envergonhar a estirpe dos pais, que são de longe os melhores em Eira e na Lícia vasta. Desta estirpe e deste sangue eu garanto ser. A expressão, no entanto, talvez não seja uma alusão direta – já que a ideia era muito comum a uma moralidade heroica e ocorre, como demonstraram De Martino e Vox (1996, p. 560) em outro passo da epopeia homérica, como em Odisseia 24.508-509: μή τι καταισχύνειν πατέρων γένος, οἳ τὸ πάρος περ ἀλκῇ τ’ ἠνορέῃ τε κεκάσμεθα πᾶσαν ἐπ’ αἶαν. ... Não envergonhar a estirpe dos pais, que até hoje com bravura e força nos tem distinguido pela terra toda. O que notamos é que estes versos já delineiam uma visão estética que Tirteu deseja entretecer aos argumentos de cunho ético. ἀγλαὸν εἶδος é uma expressão que não ocorre na épica, embora os vocábulos que a formam apareçam com frequência separadamente. Seu sentido está relacionado à beleza física e provavelmente aqui já indicam o vigor da juventude, como será desenvolvido no verso 28 com a expressão ἐρατῆς ἥβης ἀγλαὸν ἄνθος. 92 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial O termo incomodou aos estudiosos que viam nos poemas de Tirteu um retrato de uma Esparta austera, similar à do período clássico (Gentili e Perrota, 2007, p. 28; Fränkel, 1975, p. 154), já que tal valor parece mais adequado à aristocracia arcaica de outras cidades gregas: Píndaro, por exemplo, exprime a correlação entre beleza e habilidade física na Olímpica 8, v. 19, airmando que Alcimedonte de Egina, sendo “belo de se ver” (ἐσορᾶν καλός) não desmentiu a sua esplêndida forma ao se sagrar vitorioso (οὐ κατὰ δ’ ἀγλαὸν εἶδος ἐλέγχει). Entretanto, como vimos na Introdução deste trabalho (pp. 39-45), tal valor não deve surpreender em Tirteu, pois revela como a sua Esparta, assim como a de Álcman, em pouco se distanciaria de outras cidades gregas. O último verso dessa primeira dezena encerra a imagem, airmando que “toda a desonra (ἀτιμίη) e vileza (κακότης) seguem [o exilado]”, usando duas palavras-chave para resumir a condição desenhada pelo poeta: a ἀτιμίη abrevia o que está expresso nos versos 7 e 8, e tem a ver com a perda da estima pública demarcada pelo olhar do outro. É essa a análise de Verdenius (1969, p. 341), que encontra seus argumentos em uma leitura de Heródoto (2.41). Prato (1968, p. 90), Gentilli e Perrota (2007, p. 28), porém, discordam, e creem tratar-se das perdas materiais sofridas pelo exilado. Os sentidos não são excludentes: ἀτιμίη pode signiicar tanto a perda dos bens materiais quanto da estima moral. E um exemplo foi citado acima, quando Sarpédon pergunta a Glauco porque eles são os mais honrados (τετιμήμεσθα, Il. 12.310), e enumera uma lista de riquezas e privilégios que são concedidos levando em conta o crivo do olhar alheio. κακότης, por sua vez, é a “vileza”, que pode ter aqui um duplo sentido: tanto a necessidade sofrida 93 as elegias de tirteu pelo que deixa sua terra, como a covardia, princípio determinante e que motiva a fuga. Para prevenir-se desse destino, portanto, a única alternativa para o guerreiro é lutar com coragem, dando a sua vida se necessário (vv. 11-14). Nota-se aí um traço estilístico de Tirteu, que perpassará todos os seus fragmentos exortativos: o jogo simétrico de oposições e conceitos antitéticos a partir da elaboração de imagens vívidas e concretas. Tirteu não se preocupa em esclarecer em seu poema conceitos como ἀτιμίη, κακότης, ἀνιηρότατος, καλός e outros; em primeiro lugar, porque tais conceitos já estão fincados na cultura de sua audiência; em segundo, porque as suas imagens falam por ele. O papel do poeta e a exortação marcial (vv. 15-18) Os versos 11 a 14 resumem a imagem dos versos 3-10, extraindo dela uma máxima que será o fulcro para a exortação dos versos 15 e 16. Se o exilado não recebe αἰδώς nem qualquer auxílio (vv. 11-12), é melhor perder a vida lutando de maneira nobre, defendendo os ilhos e a pátria (vv. 13-14). O poema então se torna uma exortação de fato, e o poeta deixa de lado a descrição do quadro do derrotado para criar uma imagem de dentro do campo de batalha. ἀλλά (v. 15) marca a transição do argumento para a ação propriamente dita. O poeta então usará uma série de frases que encontra paralelos em outros seus poemas. A primeira, μάχεσθε παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες (mákheste par’alléloisi ménontes, lutai lado a lado, v. 15) não corresponde a uma alusão ao confronto hoplítico, mas à cooperação como um valor fundamental do combate: o verdadeiro ἀνήρ ἀγαθός é 94 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial aquele que “encoraja o varão ao seu lado com palavras” (12. 1920 W), e os que se mantêm lado a lado na linha de frente do combate salvam os que permanecem na retaguarda (11.11-14 W).24 No verso 16, o poeta exorta que os νέοι não fujam nem iquem paralisados pelo medo (μηδὲ φυγῆς αἰσχρῆς ἄρχετε μηδὲ φόβου). A fuga é uma constante do combate retratado por Tirteu e nem sempre vista como algo ruim: no fragmento 11 W, o poeta apela para a validade de sua exortação ao combate explorando a experiência de seus interlocutores na guerra: eles já conhecem as “proezas destrutoras de Ares”, vivenciaram tanto a fuga quanto a perseguição (vv. 9-10) e sabem empiricamente que lutar é melhor. O fragmento 10 W, porém, apenas qualiica a fuga com um termo ético, αἰσχρῆς (“feio e vergonhoso”) – do qual trataremos mais tarde – e continua no dístico seguinte (vv. 17-18) com o relato das disposições anímicas que um guerreiro deve ter em combate. Nesse sentido, os dois dísticos se contrapõem: o primeiro (vv. 15-16) traz ações tangíveis no campo de batalha, enquanto o segundo (vv. 17-18) refere-se às qualidades internas que um νέος deve apresentar. Que qualidades seriam essas? Respectivamente, “tornar o ânimo no peito enorme e valente” (ἀλλὰ μέγαν ποιεῖτε καὶ ἄλκιμον ἐν φρεσὶ θυμόν, v. 17) e não se apegar à vida (μηδὲ φιλοψυχεῖτ’ ἀνδράσι μαρνάμενοι). Quanto à primeira exigência, ela é fortemente calcada numa ideia básica da poesia marcial: a ἀλκή é a principal qualidade exigida pelos guerreiros, seja na exortação elegíaca, seja na exortação épica.25 Calino inquire os seus interlocutores indolentes: “quando terão um ἄλκιμον θυμόν ( alkimon thúmon, “ânimo 24 Essa questão será melhor desenvolvida nos comentários ao fr. 11W. 25 Ver os comentários ao fr. 11 W, pp. 123-126. 95 as elegias de tirteu valente”, 1.1 W) ?”, uma expressão que não encontra paralelos em Homero e poderia muito bem compor um formulário próprio da elegia marcial. μέγαν θυμόν, contudo, é uma expressão frequente na Ilíada e na Odisseia, parecendo uma decomposição do epíteto μεγάθυμος (megáthumos, magnânimo). Alguns autores 26 viram nesse verso uma evolução da ideia de θυμός, que passa a ser retratado como uma parte controlável do espírito humano, e não mais um órgão que depende de estímulos externos. Mas algumas passagens em Homero já contrariam essa visão, citam-se duas: no canto 2 da Odisseia, verso 315, Telêmaco diz: πυνθάνομαι, καὶ δή μοι ἀέξεται ἔνδοθι θυμός (“Informo-me, e agora no fundo do peito cresce o meu ânimo”) e em Ilíada, 9.496, Fênix pede a Aquiles que dome o seu grande ânimo (ἀλλ’ Ἀχιλεῦ δάμασον θυμὸν μέγαν). A segunda exigência feita pelo poeta constitui um paradoxo bastante original e sem precedentes antes de Tirteu: μὴ φιλοψυχεῖτε, “não ter amor à vida”. Teodoro Assunção em “A Morte Política de Tirteu” recorda, citando Hannah Arendt (Condition de l’homme moderne, 1983, p. 46, n.1), que o amor à vida será associado por Platão (República, 386 a) à covardia: o servilismo do escravo seria natural devido à sua propensão a não optar pela morte. Se é assim também nesse fragmento, então Tirteu remete aos versos 3-10 aqui. Todavia, a ocorrência desse composto apenas no período clássico levou Wilamowitz (apud De Martino e Vox, p. 563) a julgar espúria esta elegia. Cabe notar, entretanto, que além da noção de ψυχή encerrada no vocábulo ser predominantemente arcaica, construções paradoxais desse tipo não são estranhas à Tirteu (ver o fr. 11.5-6 W: 26 Ver Introdução, “Tirteu e Homero”. 96 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial ἐχθρὴν μὲν ψυχὴν θέμενος, θανάτου δὲ μελαίνας/κῆρας <ὁμῶς> αὐγαῖς ἠελίοιο φίλας, Tornai a vida odiosa, e as Garras negras da Morte/ tão amadas quanto os raios de sol). Pensando assim, poderíamos até mesmo supor que φιλοψυχεῖτε seja uma criação tirtaica. No verso 16, Tirteu insere outro julgamento de valor: se no verso 1 a morte será bela, a fuga será então αἰσχρός (aiskhrós, “feia e vergonhosa”). E do mesmo modo que faz com κάλός no verso 1, Tirteu elaborará a seguir outra imagem para explicar o conceito, que não só recuperará a expressão que abre o poema (τεθνάμεναι γὰρ καλὸν) como também articulará os dois signiicados possíveis para αἰσχρός. Aiskhròs thánatos e valores éticos e estéticos no fragmento 10 W Com uma imagem extremamente bem construída, Tirteu agora relata a morte aviltante que recai a um guerreiro mais velho, que assume o lugar daquele que recua do combate. Se nos primeiros 10 versos vemos o destino do jovem que foge à morte e temos um vislumbre de quão horrível será seu exílio, agora temos uma nova perspectiva, interna ao combate: o jovem que abandona a luta também abandona os mais velhos, que embora sejam dotados de coragem (θυμὸν ... ἄλκιμον, v. 24) já não têm mais os membros ágeis (γούνατ’ ἐλαφρά, v. 19) para correr ou lutar, pois esse é um privilégio daqueles que possuem ἀγλαὸν εἶδος, ou melhor, a “lor esplêndida da amável juventude” (ἐρατῆς ἥβης ἀγλαὸν ἄνθος ἔχηι, v. 28). Por esse motivo é que Tirteu classiica a fuga como “vergonhosa” (αἰσχρός). A passagem é fortemente reminiscente da epopeia homérica. Os versos 21-30 de Tirteu se relacionam, tanto na linguagem 97 as elegias de tirteu quanto na temática, com o pedido de Príamo a Heitor em Ilíada, 22. 71-76: [...]νέῳ δέ τε πάντ’ ἐπέοικεν ἄρηϊ κταμένῳ δεδαϊγμένῳ ὀξέϊ χαλκῷ κεῖσθαι· πάντα δὲ καλὰ θανόντι περ ὅττι φανήῃ· ἀλλ’ ὅτε δὴ πολιόν τε κάρη πολιόν τε γένειον αἰδῶ τ’ αἰσχύνωσι κύνες κταμένοιο γέροντος, τοῦτο δὴ οἴκτιστον πέλεται δειλοῖσι βροτοῖσιν. [...] Mas tudo convém ao jovem: na guerra assassinado, trucidado por agudo bronze, jazer. Nele, morto embora, é belo tudo que se mostra: mas quando a cabeça grisalha e a barba grisalha e as genitais de um ancião assassinado os cães desiguram, isso sim vem a ser o mais deplorável para os pobres mortais. (75) (75) Apesar das passagens apresentarem suas particularidades, aceitamos que há uma conexão entre elas por causa de duas referências especíicas que ocorrem em ambas: a visão brutal e reprovável do ancião dilacerado em suas partes intímas, e o espetáculo, sempre belo, do jovem que é morto em combate no viço da juventude. Não é possível, porém, identiicar qual das passagens tem prioridade. Mülder (1906, apud Scott, J. A. 1908, p. 123) foi o primeiro a considerar a possibilidade de que a passagem pertencesse originalmente a Tirteu e tivesse sido imitada posteriormente pelo aedo iliádico, tendo seu propósito inicial alterado, e essa teoria parece ser retomada por West em The Making of Iliad (p. 385). Os versos 71-73 da Ilíada seriam em princípio um encorajamento ao jovem para morrer na guerra, de maneira similar a uma exortação elegíaca - um dos escólios ao verso explica que 98 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial tudo que se apresenta no jovem que morre é belo (v. 73), “porque belo é morrer pela pátria e pela propriedade, em benefício dos presentes”27. A Ilíada, contudo, transformaria a exortação em um quadro cruel do destino de Príamo – que diferente de seu par tirtaico, não é um guerreiro - e em um apelo à fuga feito a Heitor (vv. 73-76), enquanto Tirteu manteria a intenção original ao oferecer o contraponto perfeito entre a desgraça brutal do velho e a morte do jovem. O jovem morto é belo tanto do ponto de vista moral, pois assumiu o lugar seu devido no combate e protegeu “pai, ilhos e esposa” (10.6 W) como também é belo do ponto de vista estético, suscitando desejo nas mulheres e admiração nos homens (10.29). A morte de um velho, porém, é vergonhosa, feia moralmente (um dos sentidos de αἰσχρή, aiskhré, 10.21 W), provoca indignação (νεμέσετον, neméseton, 10.26 W), e é horrível de se ver (outro sentido de αἰσχρή, 10.26 W). A imagem do velho segurando as suas partes íntimas cheias de sangue,por exemplo, é rara e peculiar à Ilíada. Nas diversas cenas de combate do épico, este tipo de ferimento é raramente retratado, mas há motivos para acreditar que fosse muito comum na guerra arcaica, pois a conformação da armadura deixava exposta e vulnerável a área entre o umbigo e a virilha28. Mas dentre todas as narrativas iliádicas, apenas na morte de um guerreiro chamado Adamante é que se pode entrever algo similar (Il. 13. 566-568): 27 28 ὡς ἄρα καλὸν τὸ ἀποθανεῖν ὑπὲρ πατρίδος καὶ οἰκείων ἐπὶ λυσιτελείᾳ τῶν προσηκόντων. Van Wees (1994, pp. 135-136) informa que a couraça geralmente deixava desprotegida o baixo ventre e é justamente por isso que alguns guerreiros a reforçavam com um cinturão (zostér). Ver Martino e Vox, 1996, p. 563. 99 as elegias de tirteu Μηριόνης δ’ ἀπιόντα μετασπόμενος βάλε δουρὶ αἰδοίων τε μεσηγὺ καὶ ὀμφαλοῦ, ἔνθα μάλιστα γίγνετ’ Ἄρης ἀλεγεινὸς ὀϊζυροῖσι βροτοῖσιν. Meríones seguia, em seu encalço, e atirou com a lança entre os genitais e o umbigo, lá onde Ares é doloroso demais para os miseráveis mortais. É interessante notar esse detalhe não só para enfatizar como Tirteu costumava traçar retratos mais realísticos da guerra, mas também porque o realismo da cena contribui para o efeito geral de enárgeia que o poeta deseja imprimir: é característico da enárgeia a descrição precisa e detalhista, onde são mencionadas todas as circunstâncias de um fato e nada se omite (Ver Demétrio, Eloc., 209). Nesse sentido, o que se conclui, contrapondo ambas as passagens é que ocorre uma diferença de ênfase. Na cena homérica o enfoque está na triste condição de Príamo: lá, a morte de um velho é considerada deplorável ou digna de piedade (οἴκτιστον, oíktiston), enquanto em Tirteu, a antinomia entre velhice e juventude é posta para suscitar a ação guerreira, e portanto a narração da morte de um velho guerreiro não deve soar como triste, mas antes como abjeta e vergonhosa. A similaridade vocabular entre as duas passagens (Il. 22.71 e fr. 10.27 W; Il. 22.73 e fr. 10.30 W; Il. 22.74 e fr. 10.23 W) poderia, sim, como quer West, sugerir uma relação mais direta entre as duas passagens, mas sugerir que a passagem de Tirteu fosse prioritária apenas porque ali se desenvolve uma antítese completa entre jovem e velho parece ser exagero se antes consideramos a função de cada passagem, o sentimento que cada uma aspira alcançar, e o estilo particular de cada poeta. 100 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial Notemos ainda outros recursos presentes em Tirteu e não em Homero: o anacoluto do verso 26, interrompendo a descrição do velho lacerado, explicita uma força alocutória inexistente no discurso de Príamo na Ilíada: o poeta volta-se diretamente para os seus interlocutores, e o uso do vocábulo ἰδεῖν (v. 26) parece sugerir que a audiência visualize a cena, como se pudesse estar lá de fato. Esse expediente, aparentemente singular na poesia tirtaica29, ressalta a presença dos interlocutores do poeta e e os confunde, por meio de ἐνάργεια, com soldados atuando no campo de batalha. O uso de mais de um termo para a cor da barba e dos cabelos do ancião, que não julgamos tratar-se de sinônimos como propôs Prato (1968, p. 53), mas de tonalidades distintas de uma mesma cor, sugere também uma presentiicação por ἐνάργεια, que aviva na imaginação o espetáculo horrível que é a morte do guerreiro veterano30. Como já notamos, a ἐνάργεια, isto é, a representação icástica de um cenário distante, é um traço da poesia de simpósio. De certo modo, então, a poesia de Tirteu, rica na elaboração de imagens, poderia favorecer uma apropriação simpótica ou identiicar o simpósio como ocasião de performance principal para esse poema. Em um apelo inal (vv. 27-30) que anuncia a beleza do jovem, Tirteu evoca argumentos que são próprios de uma poesia amatória de simpósio: o guerreiro morto é detentor da “lor da amável juventude”, expressão de conotação erótica encontrada também em Mimnermo (1. 5 W). E esse mesmo guerreiro, durante a vida, 29 30 Ver Noussia, 2010. Dawson,1966 (apud Noussia, 2010, p. 31): “Tyrtaeus may well have felt that silver and gray ofered na interesting contrast to red blood in the grimmy dust, and all of them against bared lesh”. 101 as elegias de tirteu é alvo de admiração dos homens e de desejos das mulheres, ο que, como mostra Mimnermo, é um ideal no horizonte de todo o simposiasta : τίς δὲ βίος, τί δὲ τερπνὸν ἄτερ χρυσῆς Ἀφροδίτης; τεθναίην, ὅτε μοι μηκέτι ταῦτα μέλοι, κρυπταδίη φιλότης καὶ μείλιχα δῶρα καὶ εὐνή, οἷ’ ἥβης ἄνθεα γίνεται ἁρπαλέα ἀνδράσιν ἠδὲ γυναιξίν· ἐπεὶ δ’ ὀδυνηρὸν ἐπέλθηι γῆρας, ὅ τ’ αἰσχρὸν ὁμῶς καὶ καλὸν ἄνδρα τιθεῖ, αἰεί μιν φρένας ἀμφὶ κακαὶ τείρουσι μέριμναι, οὐδ’ αὐγὰς προσορῶν τέρπεται ἠελίου, ἀλλ’ ἐχθρὸς μὲν παισίν, ἀτίμαστος δὲ γυναιξίν· οὕτως ἀργαλέον γῆρας ἔθηκε θεός. Que vida, que prazer, sem a Afrodite de ouro? Esteja eu morto, quando isso não mais me interessar: um amor furtivo, e melíluos presentes, e o leito: essas são as agradáveis lores da juventude para homens e mulheres: mas quando advém a odiosa velhice, que deixa feio até mesmo um homem belo, toda a vez más preocupações consomem o seu espírito, não se alegra vendo os raios do sol, mas é odioso aos meninos e desprezado pelas mulheres: assim Deus fez atroz a velhice. (5) (10) (5) (10) A audiência exerce um papel central na recepção e interpretação da mensagem e a ocasião de performance é também importante para a apreensão do signiicado. Se essa é inequivocamente o simpósio, Tirteu pode ter deliberadamente trabalhado uma ambiguidade que seria reforçada nesse ambiente: na primeira parte, o uso de termos especíicos de 102 capítulo 1 – o fragmento 10 w e a exortação marcial uma ética aim à tradição épica constrói uma moralidade guerreira e assim torna presente a guerra no ambiente do simpósio, ao passo que na segunda o uso de um sentido privilegiadamente estético expõe a ocasião de performance desta poesia e denuncia o próprio jogo da poesia tirtaica, revelando que seus interlocutores não são como heróis homéricos, mas sim jovens aristocratas que fazem parte do ambiente simposial e que emulam os heróis da épica.31 Nesse sentido, a atribuição ao longo do poema de características épicas aos interlocutores do poeta opera a criação de uma identidade: ao airmar que são ἄνδρες ἀγάθοι (ándres agáthoi, “varões de valor”), estes jovens homens nobres que compõem a audiência do poeta assumem, no espaço da icção poética, a posição de baluartes para seu povo – aqueles que lutarão à frente (πρόμαχοι, prómakhoi) e morrerão em defesa da terra pátria. É a mesma posição de um herói épico, porém, no contexto da pólis, o que força estes aristocratas a justiicarem sua posição neste novo ambiente. Fazem-no por meio da poesia, em um jogo de interpretação de papéis que os equalizará a heróis épicos e que o poeta torna vivo na realidade do simpósio, na medida em que ressalta a ambivalência de um vocabulário de cunho estético, tão comum ao simpósio e também à moralidade guerreira. 31 Ver Irwin, 2005, pp. 48-62. 103 cApíTulo 2 o frAgmEnTo 11 W E o modo dE guErrA O fragmento 11 West constitui-se como mais uma elegia exortativa do corpus de poemas tirtaicos conservada na Antologia de Estobeu, provavelmente datada do século V d.C., no capítulo Sobre a Guerra (περὶ πολέμου, 4.9.16): ἀλλ’, Ἡρακλῆος γὰρ ἀνικήτου γένος ἐστέ, θαρσεῖτ’· οὔπω Ζεὺς αὐχένα λοξὸν ἔχει· μηδ’ ἀνδρῶν πληθὺν δειμαίνετε, μηδὲ φοβεῖσθε, ἰθὺς δ’ ἐς προμάχους ἀσπίδ’ ἀνὴρ ἐχέτω, ἐχθρὴν μὲν ψυχὴν θέμενος, θανάτου δὲ μελαίνας κῆρας <ὁμῶς> αὐγαῖς ἠελίοιο φίλας. ἴστε γὰρ ὡς Ἄρεος πολυδακρύου ἔργ’ ἀΐδηλα, εὖ δ’ ὀργὴν ἐδάητ’ ἀργαλέου πολέμου, καὶ μετὰ φευγόντων τε διωκόντων τ’ ἐγέ<νε>σθε ὦ νέοι, ἀμφοτέρων δ’ ἐς κόρον ἠλάσατε. οἳ μὲν γὰρ τολμῶσι παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες ἔς τ’ αὐτοσχεδίην καὶ προμάχους ἰέναι, παυρότεροι θνήσκουσι, σαοῦσι δὲ λαὸν ὀπίσσω· τρεσσάντων δ’ ἀνδρῶν πᾶσ’ ἀπόλωλ’ ἀρετή. οὐδεὶς ἄν ποτε ταῦτα λέγων ἀνύσειεν ἕκαστα, ὅσσ’, ἢν αἰσχρὰ πάθηι1, γίνεται ἀνδρὶ κακά· 1 (5) (10) (15) Optamos nesse passo pela edição de Gentilli-Prato, que glosa πάθηι em vez do μάθηι sugerido por West, por motivos que explicitaremos nos comentários (p. 126). as elegias de tirteu ἀργαλέον γὰρ ὄπισθε μετάφρενόν ἐστι δαΐζειν ἀνδρὸς φεύγοντος δηΐωι ἐν πολέμωι· αἰσχρὸς δ’ ἐστὶ νέκυς κατακείμενος ἐν κονίηισι νῶτον ὄπισθ’ αἰχμῆι δουρὸς ἐληλάμενος. (20) ἀλλά τις εὖ διαβὰς μενέτω ποσὶν ἀμφοτέροισι στηριχθεὶς ἐπὶ γῆς, χεῖλος ὀδοῦσι δακών, μηρούς τε κνήμας τε κάτω καὶ στέρνα καὶ ὤμους ἀσπίδος εὐρείης γαστρὶ καλυψάμενος· δεξιτερῆι δ’ ἐν χειρὶ τινασσέτω ὄβριμον ἔγχος, (25) κινείτω δὲ λόφον δεινὸν ὑπὲρ κεφαλῆς· ἔρδων δ’ ὄβριμα ἔργα διδασκέσθω πολεμίζειν, μηδ’ ἐκτὸς βελέων ἑστάτω ἀσπίδ’ ἔχων, ἀλλά τις ἐγγὺς ἰὼν αὐτοσχεδὸν ἔγχεϊ μακρῶι ἢ ξίφει οὐτάζων δήϊον ἄνδρ’ ἑλέτω, (30) καὶ πόδα πὰρ ποδὶ θεὶς καὶ ἐπ’ ἀσπίδος ἀσπίδ’ ἐρείσας, ἐν δὲ λόφον τε λόφωι καὶ κυνέην κυνέηι καὶ στέρνον στέρνωι πεπλημένος ἀνδρὶ μαχέσθω, ἢ ξίφεος κώπην ἢ δόρυ μακρὸν ἔχων. ὑμεῖς δ’, ὦ γυμνῆτες, ὑπ’ ἀσπίδος ἄλλοθεν ἄλλος πτώσσοντες μεγάλοις βάλλετε χερμαδίοις δούρασί τε ξεστοῖσιν ἀκοντίζοντες ἐς αὐτούς, τοῖσι πανόπλοισιν πλησίον ἱστάμενοι. Vamos! Porque sois da linhagem do invencível Héracles, coragem! Zeus ainda não virou as costas! Não temais a turba de guerreiros, não fujais; que avante contra a vanguarda o varão leve o escudo, 106 (35) capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra tornando odiosa a vida e as garras negras da morte (5) tão amadas quanto os raios do sol; sabeis que as proezas de Ares de muito pranto são destrutivas, bem conhecestes a índole da dura guerra; estivestes entre os que fogem e os que perseguem, ó jovens, e de ambas as coisas vos fartastes. (10) Pois os que se mantêm lado a lado e ousam ir à luta corpo a corpo e à vanguarda, morrem poucos e salvam a tropa atrás; mas dos varões que tremem, toda a virtude perece. Nunca se remataria em palavras cada um dos males (15) todos que vêm ao varão, caso sofra a infâmia. Pois é duro trespassar as costas de um varão que foge na aterradora guerra, e é torpe um morto estirado na poeira, seu dorso ferido por trás com ponta de lança. (20) Vamos! Cada um ique bem irme, ambos os pés ixos ao chão, mordendo os lábios com os dentes! As coxas e as canelas abaixo, o peito e os ombros cobrindo com o ventre do largo escudo, empunhe na mão destra a forte lança (25) e a crina temível agite sobre a cabeça: fazendo fortes façanhas, aprenda a lutar e sustendo o escudo, não ique longe dos dardos! Que cada um avance ao corpo a corpo e mate o inimigo ferindo-o com longa haste ou gládio, pé colocado junto a pé, escudo a escudo apoiando, crina à crina, elmo a elmo 107 (30) as elegias de tirteu e peito a peito, lute perto de um varão com cabo de espada ou grande lança em mãos. E vós, de armadura leve, que se agacham aqui e ali (35) sob os escudos, lançai grandes pedras, arremessando polidas lanças contra eles e postando-vos perto dos de armadura completa. O vocabulário é típico e há um dístico (vv. 21-22) idêntico a outro do fragmento 10 W.2 Seu interesse particular reside em uma extensiva descrição do combate desempenhado pelos guerreiros que são incitados à guerra pelo poeta (vv. 12-38), uma vez que a principal exortação do poema incide sobre as virtudes do combate corpo-a-corpo, um argumento sempre aludido em outros fragmentos 3, mas que aqui recebe maior relevo. Nesse sentido, o fragmento 11 W pode trazer uma contextualização da maneira como a guerra era travada na poesia de Tirteu, e desse modo, elucidar questões concernentes ao modo de guerra no período arcaico. Assim, durante a análise de elementos intrínsecos ao contexto do poema, pretende-se examinar também de que maneira as exortações feitas pelo poeta, as táticas e os equipamentos descritos podem contribuir para o delineamento da igura do guerreiro arcaico e do combate na poesia de Tirteu.4 2 3 4 Bowra (1938, p. 51) observa que os três fragmentos exortativos de Tirteu (10, 11 e 12 W) apresentam diversas similaridades verbais entre si: o fragmento 12 W tem cinco frases que reaparecem de modo igual ou muito similar no fragmento 11 W e seis que reaparecem no fragmento 10 W. 10.1W, τεθνάμεναι γὰρ καλὸν ἐνὶ προμάχοισι πεσόντα (Belo, sim, é morrer, caindo na vanguarda) 12.12W, δηίων ὀρέγοιτ’ ἐγγύθεν ἱστάμενος (postando-se perto, atinja os inimigos). Como se poderá notar pelo título, o escopo e recorte teórico empreendidos na análise desse fragmento têm em mente o estudo de Paula da Cunha Corrêa, Armas e varões, a guerra na lírica de Arquíloco, sobretudo o Capítulo 108 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra Por im, consideraremos em que medida a descrição dos guerreiros e de suas técnicas militares, provocando ἐνάργεια, podem constituir uma estratégia própria da elegia exortativa marcial para colocar seus interlocutores em posição de destaque. Os ilhos de Héracles vão à guerra (vv. 1-2) Devido ao tom do poema, se considera que ele teria sido composto após um revés na Segunda Guerra da Messênia, de modo a encorajar os espartanos a não desistirem da luta e exortá-los a lutar sem temor. Bowra (1938, p. 56) chega até mesmo a imaginar um cenário em que os soldados, derrotados, põem-se a acreditar que os Deuses estariam contra eles, levando o poeta a airmar-lhes uma ascendência divina no dístico inicial, como recurso para levá-los de volta à guerra. A alusão mítica do início compõe, de fato, o alicerce da exortação dos dois primeiros versos. Recebem destaque no verso, por conta da sequência de sílabas longas, as palavras Ἡρακλῆος (v. 1) e Ζεύς (v. 2), e esboça-se com isso uma associação entre elas. Tirteu parece, assim, realçar também na forma do poema a continuidade da linhagem divina de seus guerreiros, usando as figuras de Héracles e Zeus. É a ascendência divina que garante a vitória: sendo descendentes de Héracles, os guerreiros espartanos compartilham também da mesma invencibilidade em combate, relembrada pelo epíteto ἀνικήτος (anikétos, “invencível”, v. 1). A ascendência a partir desse herói também confere o amparo de Zeus, que dá a vitória como certa e determina a segurança do grupo. 5: O modo de guerra heróico, onde a questão das táticas de guerra no período arcaico é observada minuciosamente, sobretudo no contexto do fragmento 3 W de Arquíloco. 109 as elegias de tirteu O tema da intervenção divina – a imagem do Deus que, com um gesto, favorece ou prejudica os mortais – é largamente encontrado na poesia épica. A atuação dos Deuses e sua relação com os homens no decurso da guerra é matéria que concerne a toda a Ilíada (Assunção, 2001, p. 63), e Tirteu poderia estar remetendo a esta tradição ao compor este dístico. A expressão “οὔπω Ζεὺς αὐχένα λοξὸν ἔχει” signiica literalmente que Zeus “ainda não inclinou o pescoço”, e o seu sentido é de que Zeus ainda não afastou os olhos dos espartanos (De Falco, 1941, p. 172). Nesses termos, alguns exemplos homéricos podem ser aduzidos por sua similaridade com o poema de Tirteu. No canto 13 da Ilíada, Zeus, imaginando que nenhum outro imortal fosse contrariá-lo indo ao auxílio dos dânaos, permite-se voltar os olhos para longe de Tróia, e assim dá margem para um equilíbrio momentâneo de forças entre as tropas adversárias (Il. 13, 1-8): Ζεὺς δ’ ἐπεὶ οὖν Τρῶάς τε καὶ Ἕκτορα νηυσὶ πέλασσε, τοὺς μὲν ἔα παρὰ τῇσι πόνον τ’ ἐχέμεν καὶ ὀϊζὺν νωλεμέως, αὐτὸς δὲ πάλιν τρέπεν ὄσσε φαεινὼ (...) ἐς Τροίην δ’ οὐ πάμπαν ἔτι τρέπεν ὄσσε φαεινώ Depois que Zeus aproximou os Troianos e Heitor dos navios, deixou-os por lá para labutarem e sofrerem penas sem trégua, enquanto ele mesmo desviou os dois luzentes olhos (...) Para Troia de todo não mais voltou os dois luzentes olhos. Deve-se lembrar, entretanto, que Zeus desempenha um forte papel em outros fragmentos da obra de Tirteu, além de a linhagem nobre dos espartanos já ser mencionada em um fragmento considerado parte da Eunomia, que a crítica tradicionalmente 110 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra julga ter sido composta durante a crise que sucedeu à revolta messênica e exigira uma obra que ressaltasse a necessidade de seguir as leis estabelecidas5. De Falco (1941, p. 172) registra que outros entendem que οὔπω Ζεὺς αὐχένα λοξὸν ἔχει assinala a onipotência de Zeus que não se submete a ninguém.6 Tal argumento toma Teógnis (535-536) como exemplo : οὔποτε δουλείη κεφαλὴ ἰθεῖα πέφυκεν, ἀλλ’ αἰεὶ σκολιὴ καὐχένα λοξὸν ἔχει. (535) Nunca escrava cerviz nasce reta, mas sempre curva, e mantém o pescoço inclinado; (535) Fränkel (1975, p. 156) acrescenta outra passagem do poeta da Teognideia (529-530), para provar que é uma marca do escravo abandonar os amigos e ser indigno de coniança, justamente o oposto do que faz Zeus em relação aos espartanos : 5 6 Οὐδὲνα <πω> προὔδωκα φίλον καὶ πιστὸν ἑταῖρον, οὐδ’ ἐν ἐμῆι ψυχῆι δούλιον οὐδὲν ἔνι. (530) Nunca traí um amado e iel companheiro nem escravidão alguma há em minha alma. (530) Ver os comentários ao fragmento 2 W, pp. 203-204. “Dizendo o poeta que Zeus não tem ainda o pescoço inclinado, quer signiicar, segundo alguns, que o deus é ainda onipotente” (De Falco, 1941). A leitura de Luginbill (2002, p. 411), que verte a expressão por “Zeus não está com medo” parece seguir viés semelhante, inluenciada sobretudo pelo trabalho de J.A.S. Evans (1962, p. 182-183). Fränkel (1975, p. 156) lê do mesmo modo; a tradução inglesa para a passagem traz:“neither Zeus stand with his neck held awry”. 111 as elegias de tirteu Bowra (1938, p. 59) sugere que a palavra οὔπω (“ainda não”) denota uma ocasião singular para o poema: sua performance se daria em momentos “em que as coisas não iam tão bem”.7 Como procuramos demonstrar anteriormente, um recurso retórico comum na poesia elegíaca marcial, cuja ocasião principal e seguramente comprovada é o simpósio aristocrático, consiste na ἐνάργεια, o ato de presentiicar uma situação de guerra por meio de descrição vívida. Nesse sentido, o emprego de οὔπω poderia ter a mesma função que o advérbio νῦν teria no último dístico do fragmento 12 de Tirteu8: sugerir urgência ao colocar o cenário apresentado no poema diante dos olhos da audiência – uma audiência certamente em guerra, mas não necessariamente a caminho do combate (Ver Bowie, 1990, p. 223). A fuga e as virtudes do bom combate (vv. 3-20) Tirteu desdobra o clamor por coragem do dístico inicial em uma exortação a manter-se nas linhas de frente do combate (προμάχους), armado com o escudo, em vez de temer o exército inimigo (vv. 3-4). Em contraposição à coragem evocada no segundo verso (θάρσειτ’) há dois verbos que se referem ao medo: δειμαίνετε e φοβεῖσθε. O signiicado de cada um é preciso e de forte atestação épica. Enquanto aquele, cuja raiz é conim ao verbo δείδω e ao substantivo δέος, exprime um medo mais 7 8 Bowra (1938, p. 59) já assinala, contudo, o caráter genérico da elegia exortativa ao mencionar que Tirteu valia-se de procedimentos – como a utilização do imperativo presente, por exemplo – de modo a manter suas exortações sempre úteis para outras audiências. Ver os comentários ao fragmento 12 W, pp. 143-183. 112 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra “concreto” e “físico” (Il. 7, 479: χλώρον δέον, “pálido pavor”), φοβεῖσθε corresponde ao pânico que provoca a fuga desordenada e precipitada (Chantraine, 1968). Utilizados nesse sentido, ambos estão associados diretamente ao combate, e sugerem um vocabulário especíico da guerra. Desse modo, estes versos dão início a um discurso fundado nos aspectos mais realistas, pragmáticos e sombrios da guerra, como é comum em outros fragmentos de Tirteu (Luginbill, 2002, p. 414). Trata-se de um cenário em que a fuga parece ser corriqueira (καὶ μετὰ φευγόντων ... τ’ ἐγένεσθε, v. 9) e a morte, inevitável. Os argumentos do poeta concentram-se nos versos 3 a 10, e introduzem uma tópica da elegia marcial, a da inevitabilidade da morte, cujo exemplo mais bem acabado talvez encontre-se em Calino de Éfeso (fr. 1 W, vv. 14-15)9. Como faz alhures, Tirteu equaciona o pavor e a fuga ao apego à vida, afecção incompatível com a guerra, onde a morte é frequente10. Para se ter coragem de ir à frente do combate, não se pode temer perder a vida (fr. 10 W, 15-18): ὦ νέοι, ἀλλὰ μάχεσθε παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες, μηδὲ φυγῆς αἰσχρῆς ἄρχετε μηδὲ φόβου, ἀλλὰ μέγαν ποιεῖτε καὶ ἄλκιμον ἐν φρεσὶ θυμόν, μηδὲ φιλοψυχεῖτ’ ἀνδράσι μαρνάμενοι· Jovens, vamos, lutai, mantendo-vos lado a lado, não inicieis a torpe fuga ou o pavor mas fazei grande e valente o ânimo no peito; 9 10 (15) (15) Ver comentários ao fragmento 10 W (p. 82) para outros exemplos dessa tópica na elegia grega arcaica. Ver Assunção 1997, p. 36. 113 as elegias de tirteu não amai a vida, em luta com varões! Para ilustrar essa tópica, Tirteu elabora uma construção em quiasmo (Defradas, 1962, p. 33) em que ἐχθρήν e φίλας qualiicam, respectivamente, a vida (ψύχην) e a morte (θανάτου μελαίνας κῆρας), engendrando assim um paradoxo (Martino e Vox, 1996, p. 565).11 Tal paradoxo é posto em evidência, pois, como mostra Defradas (1962, p. 34), o dístico é enquadrado pelas duas palavras que se opõem, ἐχθρήν e φίλας, que ocupam posições métricas privilegiadas. Para Fränkel (1975, p. 157) o paradoxo se resolve nos versos seguintes: O homem que vai à frente e luta corpo a corpo tem mais chances de sobreviver 12. Nesse sentido, nota-se que o paradoxo se dissolve porque o poeta tem em vista neste poema a coletividade, e não o guerreiro singular: “menos morrem, e salvam a tropa atrás”. De Martino e Onnofrio Vox (1996, p. 565) assinalam que esses versos trazem certas reminiscências da poesia amatória, conforme praticada por Mimnermo; “A negra Κήρ assedia tanto o militar quanto o amante” (Mimnermo, fr. 2 W, 1-7): ἡμεῖς δ’, οἷά τε φύλλα φύει πολυάνθεμος ὥρη ἔαρος, ὅτ’ αἶψ’ αὐγῆις αὔξεται ἠελίου, 11 12 Pois Defradas (1962, p. 34) observa que a cor negra e a obscuridade estão frequentemente ligadas à noção de morte (Ver Il.11.332) e a noção de sol e luminosidade, à vida ( Ver Il.18.442), e o homem por natureza ama a vida e odeia a morte ( Ver Il.12.231). Ver também Mimnermo 1 W. De Martino e Vox (1996, p. 585) relembram nesse verso uma passagem de Arquíloco, que traz, também, uma contagem dos mortos (Fr. 101 W): ἑπτὰ γὰρ νεκρῶν πεσόντων, οὓς ἐμάρψαμεν ποσίν, χείλιοι φονῆές εἰμεν Dos sete corpos caídos, contra os quais investimos à pé, somos em mil os assassinos. 114 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra τοῖς ἴκελοι πήχυιον ἐπὶ χρόνον ἄνθεσιν ἥβης τερπόμεθα, πρὸς θεῶν εἰδότες οὔτε κακὸν οὔτ’ ἀγαθόν· Κῆρες δὲ παρεστήκασι μέλαιναι, ἡ μὲν ἔχουσα τέλος γήραος ἀργαλέου, ἡ δ’ ἑτέρη θανάτοιο... Nós, quais as folhas da multilórea estação da primavera quando aos raios de sol de pronto viçam, iguais a elas em breve tempo fruímos das lores da juventude, inscientes do bem e do mal que vêm dos Deuses. Mas Sinas negras se aproximam: uma, trazendo o termo da dura velhice; outra, da morte. (...) (5) (5) Se pensarmos dessa maneira, a riqueza de detalhes na descrição do corpo do guerreiro nos versos 23-24 também relembraria aquela de fragmentos eróticos como os de Arquíloco ou Anacreonte (Martino e Vox, 1996, p. 565). Tal identidade entre as imagens dos poemas de Tirteu e Mimnermo pode remeter ao contexto de performance da elegia – o simpósio – que identiica seus interlocutores como jovens na plenitude guerreira e sexual (Slings, 2000, p. 433). O ἦθος dos interlocutores de Tirteu é o do guerreiro experiente: homens que não só conhecem as “obras destrutoras de Ares de muito pranto” e a “índole da dura guerra” (vv. 6-7), mas que vivenciaram a fuga e a perseguição e sabem que a guerra e a morte são inescapáveis (Bowra, 1960, p. 56). O poeta demarca a experiência de seus interlocutores na guerra por meio da expressão “ἐς κόρον ἠλάσατε” (“chegastes à saciedade”, v. 10) que poderia ser corrente e proverbial (De Falco, 1941, p. 175). O termo κόρος, como em Homero, indica um 115 as elegias de tirteu limite natural e absoluto de uma atividade que, quando cumprida, causa seu im (Irwin, 2005, p. 212). A palavra não é necessariamente vista de modo negativo na tradição poética arcaica, tendo recebido as primeiras conotações pejorativas apenas na poesia de Sólon (Irwin, 2005, pp. 216-217). Homero emprega o termo e sua contraparte verbal, κορέννυμι, sobretudo para a comida ou a bebida; mas esse sentido de satisfação alimentar facilmente acaba se estendendo a outros desejos humanos – como o amor, o canto e a dança (Il. 13.636639) – e mesmo experiências desagradáveis, como o lamento, a guerra e a batalha ( Ver Helm, “Koros: from satisfaction to greed”, 1993, pp. 5-6). Nesse sentido, κόρος pode relacionar-se tanto ao cumprimento de um desejo, do qual decorre um sentimento benéico, como a uma experiência desagradável, que apenas cessará quando se chegar ao seu limite que, portanto, deve ser alcançado o quanto antes (Helm, 1993, p. 7). Desse modo, alcançar o κόρος da fuga e da perseguição acena não só para uma situação comum na guerra e para a experiência desses combatentes, como também pode signiicar que a única alternativa para eles é o combate homem a homem – situação oposta tanto à fuga quanto à perseguição, cujo “limite” já foi alcançado. Os próximos versos ocupam-se de descrever as implicações morais (vv. 11-16) e físicas (vv. 16-20) da fuga (Martino e Vox, 1996, p. 565). Notaremos que o poeta não condenará a fuga por esta representar a quebra de uma formação tática rígida, uma vez que as exortações dirigidas aos seus interlocutores parecem assinalar um tipo de combate que admite certa mobilidade. Segundo Snodgrass (1965, pp. 115-116), os poemas de Tirteu retratam um estágio rudimentar da falange hoplítica: embora a panóplia 116 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra tenha sido adotada em larga medida, isso não necessariamente correspondeu a uma uniformização das técnicas. Tal ausência de uniformização é também patente nos poemas de Homero, onde coexistem a luta em formações compactas, reunidas para ataque ou defesa, e duelos em que predominam a livre movimentação de guerreiros pelo campo de batalha (Corrêa, 2009, p. 78). Van Wees (2004, p. 166) ainda acrescenta que o combate de infantaria arcaico era, em muitos aspectos, mais próximo dos embates retratados por Homero do que às lutas em formação hoplítica do período clássico. Dessa maneira é pertinente pensar em aproximações entre o fragmento 11 de Tirteu e o modo de batalha descrito nos poemas homéricos: as exortações para dirigir-se à linha de frente (πρόμαχοι) e lutar perto do inimigo (vv. 11-12) são indícios de que os hoplitas que tomam parte desse combate são mais móveis de que seus sucessores, pois não tinham um lugar determinado em uma formação compacta (Van Wees, 2004, p. 172). Há também a valorização do combate corpo a corpo (αὐτοσχεδιή), denotada pelo verbo τολμῶσι (“ousar”, “ter coragem”) e que se faz evidente na descrição dos γυμνῆτες, os guerreiros da infantaria leve, nos vv. 35-38. A mesma mobilidade é aludida por Mimnermo, contemporâneo de Tirteu (Van Wees, 2004, p. 173), em um fragmento da Esmirneida (fr. 14 W): οὐ μὲν δὴ κείνου γε μένος καὶ ἀγήνορα θυμὸν τοῖον ἐμ<έο> προτέρων πεύθομαι, οἵ μιν ἴδον Λυδῶν ἱππομάχων πυκινὰς κλονέοντα φάλαγγας Ἕρμιον ἂμ πεδίον, φῶτα φερεμμελίην· τοῦ μὲν ἄρ’ οὔ ποτε πάμπαν ἐμέμψατο Παλλὰς Ἀθήνη δριμὺ μένος κραδίης, εὖθ’ ὅ γ’ ἀνὰ προμάχους σεύαιθ’ αἱματόεν<τος ἐν> ὑσμίνηι πολέμοιο, 117 (5) as elegias de tirteu πικρὰ βιαζόμενος δυσμενέων βέλεα· οὐ γάρ τις κείνου δηίων ἔτ’ ἀμεινότερος φὼς ἔσκεν ἐποίχεσθαι φυλόπιδος κρατερῆς ἔργον, ὅτ’ αὐγῆισιν φέρετ’ ὠκέος ἠελίοιο não é o ardor daquele homem e seu heroico ânimo o qual de meus ancestrais aprendi, que o viram romper dos cavaleiros lídios as sólidas falanges na planície do Hermo, homem porta-lança. A ele nunca de todo reprovou Palas Atena o pungente ardor do peito, enquanto à frente ele avançava no combate da sangrenta guerra repelindo aiados dardos de inimigos. Nunca os inimigos eram melhores do que ele ao atacar, na tarefa da violenta guerra, enquanto ele lançava-se com os raios do rápido sol. (10) (5) (10) Assumindo que Tirteu se refere a uma falange sem a mesma unidade estratégica que a caracterizará no período clássico, que sentido pode haver em παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες (v. 11) e προμάχους (v. 12), bem como na exortação feita nos versos 2122 (“Mas que cada um ique bem irme, ambos os pés /ixos ao chão, mordendo os lábios com os dentes”), que parecem ser admoestações aos guerreiros na falange? A hipótese de Van Wees (1994, pp. 142-143) é de que estas ordens, embora adequadas ao hoplita por conclamarem as virtudes da formação cerrada e do corpo a corpo, também não são estranhas no campo de batalha homérico. O termo πρόμαχοι pode ser utilizado para designar a primeira ileira da falange hoplítica13, não correspondendo exclusivamente 13 Anderson (1984, p. 152) sugere que o termo pode ser simplesmente um “substituto poético” para o técnico protostates, o hoplita que luta na primeira ila. 118 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra a um modo de luta homérico. Em sua visão sobre o combate na Ilíada, Latacz (1977, apud Van Wees, 1994, pp. 5, 6) demonstra que Homero sempre sugere a presença de combatentes lutando corpo a corpo e denomina-os πρόμαχοι; para ele, estes são os homens posicionados na primeira ila da formação, que dão um passo para fora da ila para engalinhar-se com os campeões adversários e depois retornam às suas posições iniciais, quando por im exortam suas tropas a começar os ataques em massa. Van Wees (1994, pp. 7-9) e Corrêa (2009, p. 78) argumentam não haver uma sequência determinada no combate arcaico: a luta em massa e a luta individual retratam uma mesma coisa sob perspectivas distintas. Isso leva a pensar que os πρόμαχοι, em Homero, representam uma formação luída: não passam de guerreiros que em dado momento da guerra engajam-se no combate corpo a corpo e retornam à turba (πλῆθος) que está atrás quando bem entendem, para descansar ou recuperar-se de ferimentos (Van Wees, 1994, p. 7). Assumindo que por πρόμαχοι Tirteu está se referindo aos seus próprios guerreiros e não à linha de frente adversária, pode-se concluir que o modo de luta descrito pelo poeta de fato é similar ao de Homero, caracterizado pela mobilidade individual e a heterogeneidade de técnicas, que se pode veriicar também na variedade de usos para os equipamentos: na guerra - descrita por Homero e Calino como um “estridor de dardos” – é comum a utilização de lanças tanto para o arremesso (vv. 28, 37) quanto para investidas. A advertência para lutar na frente, então, também sublinha o emprego de armas de luta corpo a corpo como a lança ou espada (vv. 29-30, 34) em detrimento das armas a distância. A frase παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες e os versos 21-22 (= 10.3132 W) podem signiicar uma advertência aos guerreiros para permanecerem em suas posições nas ileiras, em vista de maior 119 as elegias de tirteu eicácia tática. Para Snodgrass (1965, p. 115) as exortações de Tirteu para manter uma formação cerrada eram necessárias justamente por não haver a unicidade de táticas e equipamentos do período clássico. Van Wees (1994, p. 141), sendo da opinião de que Tirteu retrata um combate caracterizado pela mobilidade do mesmo modo que Homero, apresenta um exemplo da Ilíada para explicar παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες. No Canto 5, Eneias, embora valente, recua diante de Menelau e Antíloco, que se colocam lado a lado, παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες ( 5. 568-572): τὼ μὲν δὴ χεῖράς τε καὶ ἔγχεα ὀξυόεντα ἀντίον ἀλλήλων ἐχέτην μεμαῶτε μάχεσθαι· Ἀντίλοχος δὲ μάλ’ ἄγχι παρίστατο ποιμένι λαῶν. Αἰνείας δ’ οὐ μεῖνε θοός περ ἐὼν πολεμιστὴς ὡς εἶδεν δύο φῶτε παρ’ ἀλλήλοισι μένοντε. (570) Os dois tinham os braços e as lanças pontiagudas um contra o outro, com o propósito de lutar: mas Antíloco postou-se muito próximo ao pastor de tropas, (570) e Eneias não permaneceu, embora fosse um ágil guerreiro, quando viu os dois homens lado a lado. O autor postula que o valor do auxílio mútuo não é uma característica exclusiva da falange hoplítica, mas já está presente na Ilíada: Homero frequentemente apresenta guerreiros gregos ixos sobre o solo (μένειν), enfrentando uma investida adversária, e realça a prontidão com que os heróis gregos assistem uns aos outros na batalha, habilidade ausente nos troianos (c.f. Il. 5, 497498; 11.348; 13.150-151; 835-836; 16.312; 367-369; 405-407).14 14 Opinião com a qual não estamos plenamente de acordo. Ver, por exemplo, a organização das tropas troianas em Il.12. 80 – 107. 120 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra Assim, de acordo com Van Wees, o contexto do fragmento 11 parece revelar antes um contraste: as exortações para permanecer lado a lado (v. 11), ir ao combate corpo a corpo (v. 12) e manter-se ixo sobre o solo (vv. 28-29 = 10.31-32) opõem-se à situação da fuga e pavor descritos e condenados nos versos 1 a 10, e não contradizem necessariamente a mobilidade de cada guerreiro que o combate aberto propicia. Destarte, Tirteu não alude categoricamente a nenhuma forma de combate nesses versos: tudo que ele está dizendo é que não se deve agir covardemente e sim, permanecer na luta. (Van Wees, 1994, p. 142). Nota-se que oposição similar se desenvolve na segunda parte do fragmento 10 W (vv. 19-32). Os versos 19-20 do fragmento 10 W remetem diretamente a 10. 31-32 W, sendo intercalados por um juízo moral (αἰσχρὸν, “é torpe”,vv. 21-22) que decorre da consequência da fuga dos jovens (nesse poema, a morte hedionda dos guerreiros veteranos), uma descrição vívida da situação dos guerreiros mais velhos abandonados no campo de batalha (vv. 23-27) e a prerrogativa dos jovens na guerra (vv. 27-30). As visões de Van Wees e Snodgrass, porém, não são excludentes, mas se complementam: mesmo Homero dá mostras de reconhecer uma formação tática que se assemelha às falanges, bem como retrata os combates singulares em momentos cruciais da batalha (Corrêa, 2009, p. 78). Tirteu retrataria esse mesmo universo guerreiro de Homero, somando-lhe alterações que ocorreram gradualmente, como a introdução do escudo hoplítico, em vista de uma tática de combate mais orientada para a luta corpo a corpo. As diferenças aparentes são decorrências da estrutura de cada poema: uma vez que os poemas de Tirteu são exortações à luta que estão condensadas na forma mais breve da elegia, é natural que sejam realçados apenas os elementos que interessam 121 as elegias de tirteu ao contexto do poema – a luta corpo a corpo e a imobilidade em combate, opondo-se à fuga, enquanto a narrativa homérica pode empreender um quadro mais completo das táticas de batalha (Van Wees, 1994, p. 142). As consequências da fuga são expostas nos versos 14 a 20 e suas implicações estão de acordo com o pensamento grego tradicional (Luginbill,2002, p. 411) e o vocabulário ético de outros fragmentos de Tirteu. O verso 14 conclui a oração iniciada em 11, desenhando outro contraste, reforçado pela construção μέν (...) δέ, entre οἳ μὲν γὰρ τολμῶσι (...) ἔστ’ αὐτοσχεδίην καὶ προμάχους ἰέναι (vv. 11-12) e τρεσσάντων δ’ ἀνδρῶν. (v. 14). Esse, por sua vez, recebe destaque no verso, por conta da pausa no inal de 13 e pela sequência de sílabas longas que compõem τρεσσάντων δ’ ἀνδρῶν, que ocupa todo o primeiro hemistíquio. Tal recurso – enfatizar certas palavras com sílabas longas e colocá-las em posição inicial – é um mecanismo poético frequentemente utilizado por Tirteu (Adkins, 1977, p. 84). O procedimento parece conferir impacto à sentença e realçar ainda mais a oposição que o poeta desenvolve nos versos, sublinhando o aspecto negativo que é argumento central do poema, a fuga. O mesmo se dá com ἀνδρὸς φεύγοντος no verso 18. O homem que foge perde a sua ἀρετή. A airmação tem tom de máxima e faz parte de uma ilosoia de vida que tem papel considerável no pensamento grego (Bowra, 1938, p. 60). Tirteu utiliza uma concepção de ἀρετή comum aos poemas homéricos: o poeta não se refere a uma qualidade abstrata ou uma virtude aplicável a todas as atividades humanas, mas a qualidades excepcionais inatas (Finkelberg, 1998, p. 20), como a força ou a 122 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra beleza. Nesse sentido, a ἀρετή que Tirteu observa nesse verso é unicamente o valor militar. Campbell (1982, p. 173) observa no verso 14 um paralelo da Odisseia onde também se representa a perda da ἀρετή (Od. 17.322-323): ἥμισυ γάρ τ’ ἀρετῆς ἀποαίνυται εὐρύοπα Ζεὺς| ἀνέρος, εὖτ’ ἄν μιν κατὰ δούλιον ἦμαρ ἕλῃσιν (“Pois Zeus amplividente extrai metade da virtude/ de um varão, quando o dia da escravidão o submete”). A ἀρετή, entretanto, não possui o sentido de valor marcial nesta passagem da Odisseia: para Finkelberg (1998, p. 19), segundo o Lexicon Homericum de Ebeling, a passagem tem uma clara conotação moral e designa virtude, embora esse sentido seja raro em Homero. De acordo com o contexto do poema de Tirteu, esta ἀρετή militar consiste justamente na luta corpo a corpo nas primeiras linhas; De Falco (1941, p. 176) conta-nos uma anedota de Estobeu (4.9.11) sobre Arquidamo, que teria proferido “ἀπόλωλεν ἀνδρός ἀρετά” (“a virtude do homem está morta”) ao ter visto armas de longo alcance trazidas da Sicília, que signiicariam o im dos combates corpo a corpo. O autor ainda se vale de outro dístico de Teógnis que traz ideia similar aos dos versos 13 e 14 (vv. 867-868): ... ἀρετῆς δὲ μέγα κλέος οὔποτ’ ὀλεῖται· αἰχμητὴς γὰρ ἀνὴρ γῆν τε καὶ ἄστυ σαοῖ. ...Da virtude a grande glória nunca se perderá: um varão lanceiro salva terra e cidade. Em outras palavras, a noção de ἀρετή no poema em questão prende-se antes a uma idéia de mérito (Defradas, 1962, p. 34) que advém das habilidades na guerra, justamente aquelas que Tirteu retratará no fragmento 12 W. E essa habilidade não é outra senão 123 as elegias de tirteu a θοῦρις ἀλκή mencionada em 12.9 W, qualidade que na Ilíada deine o bom guerreiro15 e que muitas vezes aparece como um antônimo para a fuga16, mas que apenas na poesia de Tirteu é mencionada explicitamente como uma virtude. 17 Para Adrados (1990, p. 136) os versos 10 a 14 trazem outra alusão homérica, ou ao menos um argumento conim que é reutilizado no discurso de Tirteu. Trata-se do momento em que Agamênon dirige-se ao exército grego, exortando (Il. 5.529-532): ὦ φίλοι ἀνέρες ἔστε καὶ ἄλκιμον ἦτορ ἕλεσθε, ἀλλήλους τ’ αἰδεῖσθε κατὰ κρατερὰς ὑσμίνας. αἰδομένων δ’ ἀνδρῶν πλέονες σόοι ἠὲ πέφανται· φευγόντων δ’ οὔτ’ ἂρ κλέος ὄρνυται οὔτέ τις ἀλκή. Amigos, sede homens e um bravo coração retende, mostrai respeito uns aos outros nos possantes prélios: de varões que se respeitam, mais se salvam do que morrem! Dos que fogem, não advêm nem glória nem bravura! West (2011, p. 165) também cita essa passagem, deinindo-a como “um lugar-comum exortativo” e menciona outras passagens da Ilíada que parecem delimitar um contraste entre avançar para as primeiras linhas do combate ou recuar. Assim, Diomedes, em um momento desfavorável da batalha, em face de um Heitor completamente tomado pelo furor da luta – incita Odisseu a resgatar Nestor em apuros, argumentando que ir às linhas de frente 15 16 17 Como se depreende pela fórmula ἀνέρες ἔστε φίλοι, μνήσασθε δὲ θούριδος ἀλκῆς (15.322, 15.374, 17.185, etc.). Ver pp. 164-166. Pretende-se uma análise mais detalhada do conceito de ἀρετή no capítulo seguinte. 124 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra é melhor do que a vergonha de ser golpeado pelas costas (Il. 8. 93-100)18: διογενὲς Λαερτιάδη πολυμήχαν’ Ὀδυσσεῦ πῇ φεύγεις μετὰ νῶτα βαλὼν κακὸς ὣς ἐν ὁμίλῳ; μή τίς τοι φεύγοντι μεταφρένῳ ἐν δόρυ πήξῃ· ἀλλὰ μέν’ ὄφρα γέροντος ἀπώσομεν ἄγριον ἄνδρα. Ὣς ἔφατ’, οὐδ’ ἐσάκουσε πολύτλας δῖος Ὀδυσσεύς, ἀλλὰ παρήϊξεν κοίλας ἐπὶ νῆας Ἀχαιῶν. > Τυδεΐδης δ’ αὐτός περ ἐὼν προμάχοισιν ἐμίχθη, στῆ δὲ πρόσθ’ ἵππων Νηληϊάδαο γέροντος (95) (100) Laercíade divino, Odisseu de muitos engenhos, p’ra onde foges, virando as costas como um covarde, em meio à [turba!? Que uma lança não te pegue nas costas, enquanto foges! (95) Mas vamos, a im de afastar do ancião o guerreiro feroz! Assim falou; e não lhe deu atenção Odisseu divino e pertinaz, mas se apressou até os navios côncavos dos Aqueus. E o Tidida, mesmo estando sozinho, misturou-se aos da vanguarda, postou-se na frente dos corcéis do Nelida ancião. (100) A ligação entre os versos da Ilíada (5.529-532) e os versos 11-14 do fragmento 11 W está em como o guerreiro se porta nas linhas de frente do combate. Nenhum paralelo verbal é identiicado, exceto por σόοι (v. 531) e σαοῦσι (v. 13). Nesses termos, pode ser que o paralelo seja apenas fortuito, e sua similaridade se deva ao andamento da argumentação, uma vez que o tema é o mesmo: uma exortação para lutar na frente em vez de fugir. 18 Ver também Tirteu 11.17-20 W, abaixo. 125 as elegias de tirteu É interessante notar ainda o uso de ἀρετή em Tirteu no lugar de κλέος e ἀλκή do verso 532 do canto 5 da Ilíada. Tal uso porém não deve surpreender: na poesia de Tirteu (12.9 W) ἀλκή é quase um sinônimo para ἀρετή, mencionada como uma virtude indispensável para o guerreiro. Os versos 15-16 aludem às incontáveis desgraças que acometem o homem que foge, mas o poeta não se detém sobre elas tal qual faz no fragmento 10 (vv. 3-10). Εm vez disso, se ocupará de descrever uma cena de combate (Fränkel, 1975, p. 158). A maioria das edições e comentários (Klotz 1767, Francke 1816, Bach 1831, Diehl 1952, Prato 1968, Adrados 1990) traz no verso 16 a expressão “ἢν αἰσχρὰ πάθηι” (“se sofre coisas vergonhosas”, ou ainda “se passa por coisas vergonhosas”). A expressão é um eufemismo para uma conduta vergonhosa, isto é, a própria fuga, já mencionada nos versos anteriores (Campbell, 1982, p. 173). O uso de πάθηι nesse contexto, porém, é incomum na lírica grega arcaica (Prato, 1968, p. 107) e talvez tendo isso em vista, West (1974, p. 186) o substitui por μάθηι, seguindo assim um antigo questionamento de Page (1951, p. 13): “Há alguém ainda satisfeito com αἰσχρὰ πάθηι signiicando φύγῃ?” e visando um paralelo com o “guerreiro aprendiz de fortes façanhas” do verso 27. Para o editor, o verso 444 do Canto 6 da Ilíada justiicaria a sua opção por μάθηι. Trata-se da resposta de Heitor ao pedido de Andrômaca: o herói se recusa a permanecer na cidade e opta pela luta entre os dianteiros, uma vez que “aprendeu a ser sempre corajoso (ἐσθλός)”. A nosso ver, porém, é plausível manter a leitura tradicional, αἰσχρὰ πάθηι, uma vez que parece ser a sequência natural do raciocínio exposto no verso 14: não é estranho supor que o homem que “passa por coisas vergonhosas” é aquele mesmo que “fugiu do combate e perdeu toda a sua virtude”. 126 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra Os versos 15-20 compõem uma unidade: enquanto os vv. 15-16 fazem uma constatação geral e ostentam uma construção análoga aos catálogos épicos19 (De Martino e Vox, 1996, p. 565), os vv. 17-20 desenvolvem-na (observe-se, nesse sentido, a partícula explicativa γάρ conectando os dísticos), revelando alguns desses males inescapáveis numa espécie de preterição. Um, é de ordem prática: quem dá as costas para o combate pode ser atingido. O outro, de ordem moral: é vergonhosa a visão de um guerreiro morto pelas costas, pois tal tipo de morte revela covardia e é oposta à ἀρετή do guerreiro que granjeia renome e é representada por Tirteu no fragmento seguinte (12. 25-26 W: πολλὰ διὰ στέρνοιο καὶ ἀσπίδος ὀμφαλοέσσης | καὶ διὰ θώρηκος πρόσθεν ἐληλάμενος, “muitas vezes no peito, no escudo umbilicado/ e na couraça golpeado de frente”). As palavras utilizadas são comuns ao vocabulário ético de Tirteu: o termo usado aqui é novamente αἰσχρός, palavra ambivalente que sugere tanto a torpeza moral quanto física. Nesse sentido, Tirteu apela para uma motivação negativa – o sentimento de vergonha, αἰδώς - para que seus interlocutores partam para a luta, como é frequente em outros de seus fragmentos (Luginbill, 2002, p. 410). 19 Nesse sentido, Álcman parece se utilizar de um recurso retórico similar no seu Partênio (1 PMG):a beleza de Hagesícora não pode ser reproduzida em palavras. No poema em análise, são os males incontáveis que Tirteu se furta de contar. Mesmo assim,ambos fazem suas descrições: ἦ οὐχ ὁρῆις; ὁ μὲν κέλης/Ἐνετικός· ἁ δὲ χαίτα /τᾶς ἐμᾶς ἀνεψιᾶς/ Ἁγησιχόρας ἐπανθεῖ /χρυσὸς [ὡ]ς ἀκήρατος·/τότ’ ἀργύριον πρόσωπον, /διαφάδαν τί τοι λέγω; /Ἁγησιχόρα μὲν αὕτα·(“Então não vês? O corcel é| enético; mas a sedosa melena| da minha prima| Hagesícora brilhiloresce| [c]omo ouro imaculado;| e a argêntea face – | por que abertamente te falo? | Hagesícora: é esta.” – Tradução de Giuliana Ragusa, 2010). 127 as elegias de tirteu A diiculdade da passagem está no termo ἀργαλέον (v. 17). O termo é comum nas exortações de Tirteu, e utilizado para designar as vicissitudes da guerra (11.8 W, 12. 28 W), mas se crê em corrupção do manuscrito original, já que o uso de ἀργαλέον sugere exatamente o contrário do que se poderia pensar: não há nada de difícil ou grave em atingir um inimigo pelas costas. Assim Diehl conjectura ῥηίδιον (Allen, 1932, p. 87), enquanto Bergk, remetendo a um trecho de Plutarco (Vida de Licurgo, 22) sugere a lição ῥίγαλεον (desprezível), uma vez que os gregos não consideravam um ato nobre ferir alguém que foge (apud De Falco, 1941, p. 177). Allen (1932, p. 87),por outro lado, opta por ἀεργηλέον (não trabalhoso) em sinízise. Campbell (1982, p. 174) refuta a correção de Allen, alegando que a palavra é atestada apenas na poesia alexandrina e em um poema mélico anônimo (PMG 996). Ahrens (1848, pp. 223-237) propõe ἀρπαλέον (“é agradável”), e essa é a leitura mais aceita, tanto do ponto de vista paleográico quanto do contexto do poema, por deixar mais evidente o nexo entre os versos 15-16 e 17-20. Para Page (1951, p. 13), a correção não é considerada satisfatória e West (1974), da mesma opinião, mantém a leitura contida no manuscrito original, embora julgue que “certamente Tirteu não tinha aversão de ferir nas costas um adversário que foge” (2000, p. 403). Defradas (1962, p. 35) observa que, caso seja conservado o termo original, deve-se entendê-lo no sentido de “lamentável”, ou “doloroso”. 20 O sentido, porém, não é habitual. 21 20 21 Este parece ser o sentido de ἀργαλεός em 12.28: ἀργαλέωι δὲ πόθωι πᾶσα κέκηδε πόλις (“em saudade atroz a cidade toda se enluta”). A tradução de J. Willis para Fränkel (1975,p. 157), parafrástica, mantém ἀργαλεόν e o considera uma menção à guerra, como no verso 8: “Keenly 128 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra Eu diabás (vv. 21-22) Os versos 21-22 constituem um dos dísticos mais bem construídos de Tirteu. A cesura heptemímera que segue εὖ διαβὰς evidencia a exortação do poeta, a palavra μένετω, que ocupa o centro do verso. No início do verso seguinte, στηριχθείς é impactante, por ser composto apenas por sílabas longas e estar em início de verso (Adkins, 1977, pp. 83-84). Dessa maneira, Tirteu parece salientar a necessidade de os guerreiros se manterem em uma posição ixa, contrapondo-a ao outro pólo do poema, que enfatiza a fuga (v. 14, τρεσσάντων δ’ ἀνδρῶν; v. 18, ἀνδρὸς φεύγοντος) . A maioria das palavras utilizadas nesses versos é incomum em Homero; Campbell (1982, p. 174) mostra que εὖ διαβὰς ocorre apenas uma vez na Ilíada, quando se relata o feito mais sobre-humano de Heitor, romper a muralha grega (Il. 12.458). A interpretação de εὖ διαβὰς como “icar irmemente plantado” (para lutar), segundo Brown (1985, p. 4) provém de Eustácio, que glosa εὖ διαβὰς como διαστήσας τά σκέλα (“apartar as pernas”). MacQueen (1984, p. 473), contudo, visando uma tradução aproximada do sentido mais comum do verbo διαβαίνω (“atravessar”) e do contexto do poema, verte a expressão por “dar um passo largo (ou um salto)”. Sua opção apoia-se no argumento de Camerarius (1550), relegado pela tradição, e também em uma inconsistência do sentido tradicional: embora o autor note que a posição é razoável em Tirteu – manter-se em posição lateral, com o ombro esquerdo e o escudo voltado para o inimigo, o pé the enemy grasps at chance: in turning and leeing | Men are struck down from behind: bitter and ruthless is war”. 129 as elegias de tirteu esquerdo à frente e o direito atrás, de modo a obter equilíbrio e proteção máxima com o escudo – este sentido seria inaceitável na passagem da Ilíada, em que Heitor arremessa uma grande pedra contra a muralha grega e está na postura εὖ διαβὰς justamente para agregar força ao seu movimento. Assim, MacQueen conclui que a expressão signiica, também na Ilíada, que o herói está tomando impulso antes de atirar. Para comprovar seu argumento, cita outras passagens de Álcman, Aristófanes e Plutarco em que termos similares sugerem esse movimento e a estende para o poema de Tirteu, alegando que “a verdadeira ἀρετή marcial consiste em atacar, e não esperar a investida inimiga” (1984, p. 457). MacQueen parece, no entanto, se esquecer do caráter especial e sobre-humano da cena na Ilíada (ver West, 2011, p. 275). Brown (1985, p. 357) observa que a visão de MacQueen é inconciliável com o verso seguinte, que traz στηριχθεὶς ἐπὶ γῆς (“ixos ao chão”), que ampliica εὖ διαβὰς no verso anterior. O sentido tradicional de διαβὰς também é etimologicamente preciso, pois βαίνω signiica, literalmente, “dar um passo”, enquanto o preixo διά traz a ideia de separação (p. 358). A frase χεῖλος ὀδοῦσι δακών é vista por Adkins (1977, p. 94), De Martino e Vox (1996, p. 564) como uma inovação em relação ao modelo homérico. Homero utiliza três vezes na Odisseia uma expressão formular para demonstrar a surpresa dos pretendentes diante de algum discurso de Telêmaco (Od. 1.381-382 = 18.410-411 =20.268-269: ὣς ἔφαθ’, οἱ δ’ ἄρα πάντες ὀδὰξ ἐν χείλεσι φύντες / Τηλέμαχον θαύμαζον, ὃ θαρσαλέως ἀγόρευε. “assim falou; e todos eles cerraram o dente nos lábios/ surpresos com Telêmaco, que audaz arengava”). Em Tirteu, porém, a expressão tem o sentido de resistir com coragem ao impulso da fuga 130 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra e ao perigo da morte (Adkins, 1977, p. 94; De Martino e Vox, 1996, p. 564).22 Uma lição de guerra e uma cena de batalha (vv. 23-34) Um retrato vívido da batalha ocupa a terceira parte do poema (vv. 23-34) representando, de acordo com Easterling e Knox (1985,p. 132), o confronto entre ileiras hoplitas adversárias. Wilamowitz observou uma interpolação nos versos 29-34, por pensar que o modo de guerra hoplítico não existia à época de Tirteu. Lorimer (1947, p. 122), por outro lado, considerou os versos 21-28 como interpolações, provavelmente do século quarto ou quinto, por conta das armas descritas: o escudo que cobre “coxas e canelas em baixo, peito e ombros” (v. 23) não corresponde ao escudo hoplítico, utilizado no século VII a.C. Lorimer explica que o único período da história grega onde um escudo desse estilo foi utilizado remonta ao século XV e XVI. Desse modo, conclui que “a exortação, independente de sua data, não poderia ser uma convocação real a soldados contemporâneos”. Da mesma maneira, elimina os versos 24 e 25 a 28, por considerar o elmo com penacho (v. 26) equipamento antiquado e ἐκτός βελέων (“perto de dardos”) inadequado para o modo de guerra hoplítico (Campbell, 1982, p. 174). Para solucionar a questão, Campbell (1982, p. 175) foi da mesma opinião de Hammond (1950, p. 51): embora os espartanos já conhecessem a luta em formação hoplítica, teriam adotado 22 É provavelmente com essa noção em mente que Aluízio Faria de Coimbra (1941) verteu essa passagem: “As plantas, pois, cada um irme no solo, | morda os lábios e, impávido, resista” . 131 as elegias de tirteu na Segunda Guerra Messênica uma organização tática mais aberta, uma vez que os adversários desconheciam o modo de guerra dos hoplitas. Isso implicara uma alteração nos equipamentos. A análise de Van Wees sobre o modo de luta dos hoplitas à época de Tirteu (2004, pp. 166-183) fornece respostas interessantes: uma das técnicas dos hoplitas era correr com o escudo hoplítico agachados, com o ombro esquerdo voltado para frente. Desse modo, o escudo permanecia reclinado contra o ombro e sua extremidade inferior mantinha-se um pouco à frente do portador, fornecendo uma proteção bem similar àquela que Tirteu descreve nos versos 23-24. Os versos 25-30 seguem na descrição dos equipamentos deste guerreiro, e enfatizam a utilização das armas corpo a corpo. A lança (ἔγχος, δόρυ, vv. 25, 3423 ), juntamente com o escudo, compunha o equipamento característico do hoplita (Cartledge, 1977, p. 14)24, mas também era a principal arma do guerreiro homérico (Van Wees, 1994). A diferença central consiste em sua utilização: enquanto o hoplita usa sua lança apenas em investidas corpo a corpo, o herói homérico pode optar por usar a lança também como uma arma de arremesso. O fragmento exortativo de Calino, por exemplo, apresenta a lança como uma arma de arremesso (1.5: καί τις ἀποθνήσκων ὕστατ’ ἀκοντισάτω, E que um varão a morrer por im atire a lança) mas traz também uma provável alusão ao combate corpo a corpo, em um verso similar 23 24 O poeta parece buscar variedade na utilização das palavras, mas não há nenhuma diferença signiicativa nas armas descritas (Cartledge, 1977, p. 14). Cartledge (1977, p. 15) mostra que as lanças eram armas tão características para o guerreiro, que Tirteu, por vezes, costuma chamar seus guerreiros simplesmente de lanceiros (αἰχμηταί). Ver Fr. 5. 6 W. 132 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra ao que Tirteu utiliza nesse passo (Calino, 1.9-11 (...) ἀλλά τις ἰθὺς ἴτω | ἔγχος ἀνασχόμενος καὶ ὑπ’ ἀσπίδος ἄλκιμον ἦτορ | ἔλσας, τὸ πρῶτον μειγνυμένου πολέμου.“(...) Mas que se vá direto| brandindo a lança e resguardando sob o escudo| um valente peito, assim que a luta se mesclar”).25 A espada (ξίφεος, vv. 30, 34), por outro lado, era pouco utilizada em Homero e uma opção secundária para o hoplita, caso a lança se quebrasse durante o choque de combatentes. Tirteu, porém, não parece dar preferência a nenhuma das duas armas nem se ocupa de descrever a falange hoplítica nesse trecho (Bowra, 1938, p. 58), mas antes insiste no argumento de que os hoplitas devem lutar homem a homem (v. 29) em detrimento da luta à distância (v. 28, μηδ’ ἐκτὸς βελέων), que parece ser frequente na guerra e é a prerrogativa das tropas ligeiras (vv. 35-38). Tal mescla na descrição das armas e técnicas comprova, como airma Snodgrass, que Tirteu está de fato em um período de transição de equipamentos e técnicas e retrata a preferência por uma modalidade de combate mais moderna, que privilegia o corpo a corpo. Nesse sentido, Arquíloco, poeta anterior a Tirteu, faz uma constatação análoga (fr. 3 W, ver Corrêa, 2009, p. 96): οὔτοι πόλλ’ ἐπὶ τόξα τανύσσεται, οὐδὲ θαμειαὶ σφενδόναι, εὖτ’ ἂν δὴ μῶλον Ἄρης συνάγηι ἐν πεδίωι· ξιφέων δὲ πολύστονον ἔσσεται ἔργον· ταύτης γὰρ κεῖνοι δάμονές εἰσι μάχης δεσπόται Εὐβοίης δουρικλυτοί. 25 (5) Tirteu também se refere à lança como arma de arremesso no fr. 23a W. v. 12, mas não é possível dizer se esta menção está incluída em uma exortação ou mesmo se o poeta se refere a uma prerrogativa dos γυμνομάχοι do v. 14 ou, então, aos inimigos aludidos no v. 10. 133 as elegias de tirteu Não muitos arcos serão tendidos, nem frequentes fundas, quando Ares reunir a luta na planície: de espadas será a obra de muitos gemidos, pois eles são peritos nesse combate, os senhores de Eubeia, afamados lanceiros.26 (5) O poeta intercala as suas descrições do combate (vv. 2126 e vv. 29-34) com o que, segundo De Martino e Vox (1996, p. 565), é um ensinamento de guerra. Isso se evidencia no v. 27 pelo imperativo διδασκέσθω (ἔρδων δ’ ὄβριμα ἔργα διδασκέσθω πολεμίζειν, “fazendo fortes façanhas, aprenda a lutar”). ὄβριμα ἔργα remete à ὀβριμοέργος, termo de atestação épica e também adaptado ao vocabulário de outros poetas elegíacos (Defradas, 1962, p. 35), como Calino (fr. 5 W: νῦν δ’ ἐπὶ Κιμμερίων στρατὸς ἔρχεται ὀβριμοεργῶν; “Agora sobrevém o exército dos brutais Cimérios”). Contudo, Tirteu não parece se referir diretamente à ὀβριμοέργος, uma vez que em Homero e Calino a palavra assume tons negativos, seja para qualiicar atos violentos contra homens ou Deuses ou caracterizar o inimigo. Se há aqui algum paralelo a um verso homérico, seria mais factível pensar em um passo da Patrocleia, onde um termo aparentado (διδασκόμενος πολέμοιο, Il. 16.805-811) qualiica o jovem herói Euforbo, que fere Pátroclo e o deixa a mercê da morte (Defradas, 1962, p. 35): τὸν δ’ ἄτη φρένας εἷλε, λύθεν δ’ ὑπὸ φαίδιμα γυῖα, στῆ δὲ ταφών· ὄπιθεν δὲ μετάφρενον ὀξέϊ δουρὶ ὤμων μεσσηγὺς σχεδόθεν βάλε Δάρδανος ἀνὴρ Πανθοΐδης Εὔφορβος, ὃς ἡλικίην ἐκέκαστο ἔγχεΐ θ’ ἱπποσύνῃ τε πόδεσσί τε καρπαλίμοισι· 26 Tradução de Paula da Cunha Corrêa (2009). 134 (805) capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra καὶ γὰρ δὴ τότε φῶτας ἐείκοσι βῆσεν ἀφ’ ἵππων πρῶτ’ ἐλθὼν σὺν ὄχεσφι διδασκόμενος πολέμοιο· (810) A cegueira arrebatou-lhe a mente, afrouxou-lhe os radiantes [membros: (805) estava parado, pasmo. E com uma lança aiada nas costas, entre os ombros, de perto, atingiu-lhe um guerreiro dardânio, Euforbo Pantoide, que superava os de sua idade na lança, na cavalaria e nas velozes corridas: até então já vinte homens derrubara de seus corcéis, (810) tão logo chegou com seu carro, aprendiz da guerra. Fränkel (1975, p. 138) observou que esta “lição de guerra” a princípio parece se opor às exortações descritas nos vv. 7-10, onde o poeta se dirige a guerreiros experientes. Nota-se, porém, um espelhamento, já que a conclusão é a mesma: o contraponto para o temor destes e para a inexperiência daqueles é o mesmo, enfrentar o inimigo de perto (vv. 11-12, vv. 29-30) – seja porque assim menos guerreiros morrerão (v. 13) ou porque fazê-lo é uma “forte façanha” (v. 27). Assim sendo, e como Fränkel já nota, tais diferenças se diluem – uma vez que estes νέοι compõem uma mesma categoria dentro do exército espartano, a de πανόπλοι (“guerreiros de armadura completa”, v. 38). Pode-se pensar, por outro lado, que em ambos os momentos Tirteu refere-se a uma mesma e única categoria de guerreiros – homens experientes cujo medo impediria a prática de tais façanhas do corpo a corpo, que o poeta ordena que sejam aprendidas. Tradicionalmente, toma-se como paradigma para os versos 31-34 uma passagem de Homero (Il. 13.131ss. = 16.216ss.): ἀσπὶς ἄρ’ ἀσπίδ’ ἔρειδε, κόρυς κόρυν, ἀνέρα δ’ ἀνήρ· ψαῦον δ’ ἱππόκομοι κόρυθες λαμπροῖσι φάλοισι 135 as elegias de tirteu νευόντων, ὡς πυκνοὶ ἐφέστασαν ἀλλήλοισιν· ἔγχεα δ’ ἐπτύσσοντο θρασειάων ἀπὸ χειρῶν σειόμεν’· οἳ δ’ ἰθὺς φρόνεον, μέμασαν δὲ μάχεσθαι. Escudo apoiava escudo, elmo a elmo, homem a homem; os elmos equicrines com brilhantes cimeiras tocavam-se, inclinados, tão perto posicionaram-se uns dos outros: As lanças vibravam nas corajosas mãos, brandidas. Pensavam em lutar, ansiavam o combate. A leitura mais comum é que Tirteu impõe nos seus versos um sentido que está ausente na descrição da Ilíada. Para Bowra (1938, p. 158) e Fränkel (1975, p. 158) Tirteu manipula a linguagem tradicional da épica para representar o avanço das tropas em formação cerrada, enquanto na Ilíada a cena seria apenas uma representação do contato próximo entre os guerreiros na linha de frente, ávidos pelo combate. Fowler (1987, p. 24), contudo, observa que expressões como “homem a homem, escudo contra escudo” podem ter sido tradicionais em exortações marciais. A repetição formular desta passagem em dois momentos distintos da epopeia homérica (Il. 13.130ss. = 16.216ss.) sugere que a expressão já fosse tradicional na poesia épica. Campbell (1982, p. 175), pelo contrário, observa que em Homero já está retratado o avanço em formação fechada, mas Tirteu emprega os mesmos versos para descrever o confronto dos lados adversários da falange hoplítica. Como argumento para esta visão, aduz στέρνον στέρνῳ como prova do novo estilo de combate, desconhecido por Homero. Van Wees (1994, pp. 1-14) faz uma leitura detalhada das duas passagens da Ilíada que trazem reminiscências da falange, e argumenta que os vv. 130-135 do Canto 13 representam agrupamentos 136 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra momentâneos de tropas, que facilmente se rompiam ao despontar da batalha, e depois precisavam ser reagrupados. É o caso desta passagem da Ilíada, onde os guerreiros são convocados à reunir-se à volta dos dois Ajantes, em vista de conter o avanço das forças troianas (Il. 13. 83-135). Os homens, então, ávidos pela luta e animados pela exortação do comandante, empurram-se para chegar às linhas de frente. Van Wees ainda explica que no modo de guerra clássico, em que manter a formação compacta é essencial, uma dispersão poderia signiicar o im da batalha, pois seria impossível reagrupar uma formação tão fechada. Os exércitos homéricos, porém, passam por constantes reagrupamentos ao longo de uma batalha. Todavia, como já foi observado acima, é evidente que Homero não poderia se referir a uma falange similar à do período clássico, mas pode demonstrar, nessas passagens, uma espécie de falange hoplítica arcaica (Corrêa, 2009, p. 78), assinalando assim um processo gradual de alteração de técnicas (e equipamento), um processo também retratado nos versos de Tirteu. Em Homero, veriica-se que este tipo de formação, similar à falange hoplítica, parece ser adotado quando as tropas estão sob pressão inimiga (Il. 12.105). Por que não poderíamos pensar em condições similares para os versos de Tirteu? Van Wees (2004, p. 168) infere que Tirteu retrata aqui27 o escudo como uma arma ofensiva: nesses termos, não são os guerreiros aliados em agrupamento que Tirteu está representando, mas o esbatimento de combatentes adversários, que projetam seus escudos contra o inimigo, visando desequilibrá-los. 27 E também no fragmento 19 W. 14-15 δεινὸς δ’ ἀμφοτέρων ἔσται κτύποσ̣[ | ἀ̣σ̣πίδα̣ς̣ εὐκύκλους ἀσπίσι τυπτ[ Mas de ambos serão terríveis [ | os escudos, circulares, contra escudos esbatendo-se. 137 as elegias de tirteu A descrição do combate apresentada nos v.v 23-34 expande em imagens vivas e concretas o curso de ação que o poeta deseja ver em seus interlocutores. Tais descrições enfatizam as armas desses hoplitas, orientadas para o combate corpo a corpo, com as quais eles empreenderão suas fortes obras: o escudo, que confronta os projéteis (v. 28), a lança longa e a espada. Uma pausa na descrição (v. 27), em tom sentencioso, mantém o caráter didático do poema. Gumnétes e panóploi (vv. 35-38) Tão desconectados de seu contexto original pareceram ser os versos 35-38 para a crítica, que Fränkel (1975, p. 138) postulou que se tratasse de um excurso que aplicaria a conduta desenvolvida nos vv. 1-34 às tropas ligeiras. Nota-se, assim, a tendência de equacionar os assim denominados γυμνήτες ao termo militar ψῖλος, utilizado primeiramente por Heródoto (7.158) e amiúde por Tucídides (3.27, 4.125, etc.) para denominar os soldados desprovidos de armaduras pesadas, notadamente, os arqueiros, e que tinham uma função destacada dos hoplitas na falange clássica. Irwin (2005, p. 291), porém, questionou se é válida essa relação, uma vez que pode induzir a uma leitura teleológica que se pautaria no ideário da falange clássica e assim icaria distante de contexto apresentado no poema. Segundo sua leitura, a observação do contexto parece remeter a uma representação que revela a estratiicação na elegia marcial e engendra um aparato heróico de modo a caracterizar e distinguir uma elite (Irwin, 2005, pp. 35-39). Para a autora, os γυμνήτες não podem ser diretamente comparados aos ψῖλοι. Embora a atuação destes seja muito 138 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra similar a das tropas leves do período clássico, “lançar grandes pedras” (μεγάλοις βάλλετε χερμαδίοις, v. 36) e “arremessar as polidas lanças” (δούρασί τε ξεστοῖσιν ἀκοντίζοντες, v. 37) são ações conins também ao herói homérico e não qualiicam ação reprochável nem mesmo no gênero elegíaco (Calino 1.5 W). A descrição dos gúmnetes nos dois dísticos inais constitui uma ruptura que tem por função principal oferecer um contraponto aos guerreiros descritos nos versos anteriores, “a estirpe do invencível Héracles” (v. 2), e assim elevar o estatuto desses últimos. De que maneira o poeta faz isso? O vocabulário utilizado é fundamental para operar a separação entre as duas classes de combatentes: de acordo com Irwin (2005, p. 38), que aduz como argumento Sólon 4 W, ὑμεῖς δ’ (v. 35) não demarca na poesia elegíaca apenas a segunda pessoa do plural, mas parece também impor uma nítida separação do enunciador em relação aos seus interlocutores. πτώσσοντες ( v. 36, “agachar-se” ) é também termo derrogatório: nota-se a cuidadosa escolha do poeta por esta palavra em vez do correlato εἴλω, presente em Calino de Éfeso para designar postura similar (1. 10-11 W). Embora seja uma imagem homérica, πτώσσω é usado com frequência nas epopeias para sugerir uma ação covarde (Il. 4.371, 5.634, 7.129, 20.427), ou um comportamento humilde (Od. 17.227, 18.363). Tirteu coloca ainda o termo em início de verso e composto por sílabas longas, recurso tradicional de sua poesia quando se deseja chamar a atenção para um vocábulo especíico. Irwin (2005, p. 293) observa ainda que o uso de πτώσσω com preposição é raro em Homero, o que induz a pensar que Tirteu quer dar força à expressão ὑπ’ ἀσπίδος (v. 35). Seguido desse termo, uma 139 as elegias de tirteu sentença de força meramente descritiva (ἄλλοθεν ἄλλος) torna ainda mais impactante o verbo no início do verso 36.28 No entanto, embora exista o tom derrogatório da passagem, as tropas ligeiras não são desprezadas pelo poeta (Corrêa, 2009, p. 178) e também participavam da luta. Tirteu pode clamar pelos valores do combate corpo a corpo, mas como se vê, tais técnicas ainda estavam indiscriminadamente mescladas a outras, como o combate à distância29. Para entender se há uma crítica implícita na expressão ὑπ’ ἀσπίδος, deve-se primeiro observar outras questões que norteiam a prática de guerra das tropas ligeiras, e assim, determinar o sentido dos escudos nessa passagem. A crítica divide-se entre questionar se os escudos são uma propriedade dos γυμνῆτες ou não, e que implicações isso teria. Defradas (1962, p. 53) assinala que os γυμνῆτες, por empregarem somente armas de ataque à distância, não teriam muitos equipamentos defensivos (pois talvez assim obtivessem maior mobilidade) exceto o escudo leve que Tirteu menciona. Irwin (2005, p. 293), desenvolvendo esta leitura, conclui que a menção ao escudo é uma ênfase no elemento que marcou a transição das técnicas militares no período arcaico. As consequências da adoção do escudo hoplítico foram a redução do emprego de armaduras mais pesadas e uma valorização das técnicas de combate corpo a corpo.30 Desse modo, o γυμνῆς possuía apenas o escudo, única 28 29 30 À maneira do que parece acontecer em 11.21-22 W = 10.31-32W, conforme sugere Adkins (1977,p. 85). Tirteu fala do uso de projéteis e pedras na guerra em outros momentos (19.2 W, 19.19-20 W, 23a 10-14 W). Alceu menciona que “as grevas são anteparo ao dardo” (357 PMG, v. 10). Ver Van Wees, 2004, p. 170. Que já se nota neste mesmo poema: “... sustendo o escudo, não ique longe dos dardos” (v. 28). 140 capítulo 2 – o fragmento 11 w e o modo de guerra arma realmente necessária para o ofício de hoplita na falange arcaica (Osborne, 1996, p. 83) e a ausência de armaduras pesadas ou armas mais elaboradas seria um indício de status que os distinguiria dos πανόπλοι, os aristocratas que podiam pagar pela panóplia completa. Van Wees (2004, p. 170), por outro lado, observa a iconograia a partir do século VII, que passa a representar os guerreiros de armamento leve não como guerreiros individuais, mas homens desarmados agachados atrás de hoplitas. Van Wees explica a cooperação entre estes guerreiros e os hoplitas recorrendo à Ilíada: é comum arqueiros permanecerem sob os escudos de outros heróis, saindo apenas para atirar, depois de observar se podiam ferir alguém na multidão. Logo em seguida, voltavam para debaixo do escudo “como uma criança à sua mãe” (Il. 8.271). Assim, Van Wees de certo modo recupera a leitura de Wilamowitz (1900, apud Irwin, 2005, p. 38) que traçava uma analogia entre os γυμνῆτες e o herói Teucro (Il. 8.266-272): Τεῦκρος δ’ εἴνατος ἦλθε παλίντονα τόξα τιταίνων, στῆ δ’ ἄρ’ ὑπ’ Αἴαντος σάκεϊ Τελαμωνιάδαο. ἔνθ’ Αἴας μὲν ὑπεξέφερεν σάκος· αὐτὰρ ὅ γ’ ἥρως παπτήνας, ἐπεὶ ἄρ τιν’ ὀϊστεύσας ἐν ὁμίλῳ βεβλήκοι, ὃ μὲν αὖθι πεσὼν ἀπὸ θυμὸν ὄλεσσεν, αὐτὰρ ὃ αὖτις ἰὼν πάϊς ὣς ὑπὸ μητέρα δύσκεν εἰς Αἴανθ’· ὃ δέ μιν σάκεϊ κρύπτασκε φαεινῷ. Teucro foi o nono, e retesando o léxil arco, posicionou-se sob o escudo de Ájax Telamônio. Daí Ájax pôs de lado o seu escudo, e o herói, mirando, assim que asseteasse um alvo na turba, o feriria. Quando o inimigo cai e perde a vida, 141 (270) (270) as elegias de tirteu Teucro então de pronto voltava, como criança junto à mãe, para Ájax: escondia-se sob o reluzente escudo. Independente de qual seja a leitura adotada, é a fragilidade dos γυμνῆτες e sua dependência dos hoplitas no combate que está sublinhada nesses versos. A descrição das atividades das tropas ligeiras eleva o já magniicente estatuto dos πανόπλοι, termo superlativo no período clássico e provavelmente no período arcaico para designar circunstâncias elevadas (Irwin, 2005, p. 294, n.6). A conduta dos γυμνῆτες na guerra é absolutamente oposta àquela que o poeta reclama para os ilhos de Héracles dos versos anteriores: em vez de avançar contra o inimigo e icar irme sobre o solo, os γυμνῆτες se escondem debaixo de escudos e parecem sempre estar em movimento pelo campo de batalha, “aqui e ali” (ἄλλοθεν ἄλλος), buscando talvez uma proteção que não têm, ou uma melhor posição para atacar de longe. Visto que a dependência dos γυμνῆτες em relação aos hoplitas e seu modo próprio de luta – oposto àquele que Tirteu exige nos versos anteriores – está condicionada à questão da panóplia, Irwin (2005, p. 293) conclui que o poeta engendra uma representação que tende a interligar a ἀρετή marcial, apresentada como as virtudes do “homem bom na guerra” e veriicada principalmente em sua coragem de ir à frente e não ter medo, à aristocracia, que possuía de fato os melhores armamentos e compunha a audiência principal deste tipo de poesia que se realizava no ambiente do simpósio. 142 cApíTulo 3 o frAgmEnTo 12 W: simpósio E ArETê Em TirTEu O fragmento 12 W é considerado pela crítica como único no corpus tirtaico sobrevivente (Luginbill, 2002, p. 405). Esta airmação apoia-se na estrutura empregada por Tirteu na composição do poema, que enfatiza a exposição e desenvolvimento de uma ideia – a saber, a virtude (ἀρετή) que um bom guerreiro deve ter na guerra – e relega a exortação propriamente dita aos últimos versos (Luginbill, 2002, p. 406): οὔτ’ ἂν μνησαίμην οὔτ’ ἐν λόγωι ἄνδρα τιθείην οὔτε ποδῶν ἀρετῆς οὔτε παλαιμοσύνης, οὐδ’ εἰ Κυκλώπων μὲν ἔχοι μέγεθός τε βίην τε, νικώιη δὲ θέων Θρηΐκιον Βορέην, οὐδ’ εἰ Τιθωνοῖο φυὴν χαριέστερος εἴη, πλουτοίη δὲ Μίδ<εω> καὶ Κινύρ<εω> μάλιον, οὐδ’ εἰ Τανταλίδ<εω> Πέλοπος βασιλεύτερος εἴη, γλῶσσαν δ’ Ἀδρήστου μειλιχόγηρυν ἔχοι, οὐδ’ εἰ πᾶσαν ἔχοι δόξαν πλὴν θούριδος ἀλκῆς· οὐ γὰρ ἀνὴρ ἀγαθὸς γίνεται ἐν πολέμωι εἰ μὴ τετλαίη μὲν ὁρῶν φόνον αἱματόεντα, καὶ δηίων ὀρέγοιτ’ ἐγγύθεν ἱστάμενος. ἥδ’ ἀρετή, τόδ’ ἄεθλον ἐν ἀνθρώποισιν ἄριστον κάλλιστόν τε φέρειν γίνεται ἀνδρὶ νέωι. (5) (10) as elegias de tirteu ξυνὸν δ’ ἐσθλὸν τοῦτο πόληΐ τε παντί τε δήμωι, ὅστις ἀνὴρ διαβὰς ἐν προμάχοισι μένηι νωλεμέως, αἰσχρῆς δὲ φυγῆς ἐπὶ πάγχυ λάθηται, ψυχὴν καὶ θυμὸν τλήμονα παρθέμενος, θαρσύνηι δ’ ἔπεσιν τὸν πλησίον ἄνδρα παρεστώς· οὗτος ἀνὴρ ἀγαθὸς γίνεται ἐν πολέμωι. αἶψα δὲ δυσμενέων ἀνδρῶν ἔτρεψε φάλαγγας τρηχείας· σπουδῆι δ’ ἔσχεθε κῦμα μάχης, αὐτὸς δ’ ἐν προμάχοισι πεσὼν φίλον ὤλεσε θυμόν, ἄστυ τε καὶ λαοὺς καὶ πατέρ’ εὐκλεΐσας, πολλὰ διὰ στέρνοιο καὶ ἀσπίδος ὀμφαλοέσσης καὶ διὰ θώρηκος πρόσθεν ἐληλάμενος. τὸν δ’ ὀλοφύρονται μὲν ὁμῶς νέοι ἠδὲ γέροντες, ἀργαλέωι δὲ πόθωι πᾶσα κέκηδε πόλις, καὶ τύμβος καὶ παῖδες ἐν ἀνθρώποις ἀρίσημοι καὶ παίδων παῖδες καὶ γένος ἐξοπίσω· οὐδέ ποτε κλέος ἐσθλὸν ἀπόλλυται οὐδ’ ὄνομ’ αὐτοῦ, ἀλλ’ ὑπὸ γῆς περ ἐὼν γίνεται ἀθάνατος, ὅντιν’ ἀριστεύοντα μένοντά τε μαρνάμενόν τε γῆς πέρι καὶ παίδων θοῦρος Ἄρης ὀλέσηι. εἰ δὲ φύγηι μὲν κῆρα τανηλεγέος θανάτοιο, νικήσας δ’ αἰχμῆς ἀγλαὸν εὖχος ἕληι, πάντες μιν τιμῶσιν, ὁμῶς νέοι ἠδὲ παλαιοί, πολλὰ δὲ τερπνὰ παθὼν ἔρχεται εἰς Ἀΐδην, γηράσκων δ’ ἀστοῖσι μεταπρέπει, οὐδέ τις αὐτὸν βλάπτειν οὔτ’ αἰδοῦς οὔτε δίκης ἐθέλει, πάντες δ’ ἐν θώκοισιν ὁμῶς νέοι οἵ τε κατ’ αὐτὸν εἴκουσ’ ἐκ χώρης οἵ τε παλαιότεροι. ταύτης νῦν τις ἀνὴρ ἀρετῆς εἰς ἄκρον ἱκέσθαι 144 (15) (20) (25) (30) (35) (40) capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu πειράσθω θυμῶι μὴ μεθιεὶς πολέμου. Não me lembraria e em verbo um varão não poria, pela virtude de seus pés ou de sua luta, nem se tivesse altura e força de Ciclopes e em corrida vencesse o trácio Bóreas, nem se tivesse porte mais grácil que Títono, e mais riquezas do que Midas e Cíniras, nem se fosse mais rei que Pélope Tantálida, e tivesse a língua de mel de Adrasto, ou toda a fama, senão a bravura impetuosa; pois um varão não se torna valoroso na guerra se não ousar olhar a matança sanguinária, e postando-se perto, atingir inimigos. Tal virtude, tal prêmio, entre homens é o melhor e mais belo que há para um jovem varão receber. É esse um bem comum à cidade e ao povo todo, que um varão irme na vanguarda se mantenha, sem trégua, de todo se esqueça da torpe fuga arriscando a vida e o coração tenaz, e próximo encoraje o varão ao seu lado com palavras: eis o varão que se torna valoroso na guerra. Súbito, dispersa de varões hostis as falanges brutais, com zelo detém a onda da luta. Caído na vanguarda, ele próprio perde a sua vida, mas gloriica a cidade, as tropas e seu pai, muitas vezes no peito, no escudo umbilicado e na couraça golpeado de frente. A ele pranteiam por igual jovens e anciãos, 145 (5) (10) (15) (20) (25) as elegias de tirteu e com dolorosa saudade, a cidade toda se enluta. Seu túmulo e ilhos são insignes entre os homens e os ilhos dos ilhos, e a geração no porvir, e jamais nobre glória ou o nome dele perecem, mas, mesmo sob a terra, se torna imortal aquele que, primando por manter-se em combate pela terra e pelos ilhos, o impetuoso Ares mata. Mas se escapa à sina da morte de prolongada dor, e, ao vencer, conquista o triunfo ilustre da lança, todos o honram, por igual os jovens e anciãos, e vive muitas alegrias antes de ir ao Hades. Envelhecendo, distingue-se entre os cidadãos e ninguém quer faltar-lhe com respeito e justiça; (30) (35) (40) todos, os jovens e seus coetâneos, cedem-lhe lugar em conselho, e também os mais velhos. Tente hoje cada varão ao ápice dessa virtude chegar com ânimo sem descuidar da guerra! Embora o desfecho do poema ainda contenha a admoestação aos concidadãos, este fragmento apresenta um tom aparentemente mais relexivo, que o difere dos demais onde relexões sobre a guerra alternam-se com instrução e exortação para dirigir-se à linha de frente do combate. Assim, ao analisar a estrutura singular do fragmento 12, pretende-se veriicar nesse texto de que modo se dão as relexões ali contidas, o emprego da ideia de ἀρετή e em que medida esta se adequa ao universo ético grego e ao contexto marcial apresentado na poesia de Tirteu. 146 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu As fontes e a fortuna crítica Deve-se a sobrevivência deste fragmento a Estobeu, que o inseriu em sua antologia sob o título de Elogio da coragem (ἐπαινός τολμής). Campbell (1982, p. 176) salienta que o poema, já na antologia de Estobeu, aparece dividido em duas seções: a primeira dos versos 1-14 e a segunda parte dos versos 15-44, esses últimos atribuídos pela primeira vez a Tirteu apenas à época da edição princeps de Estobeu em 1535. Todavia, o fragmento deve ter adquirido certa popularidade já no período clássico, e é referido por Platão, que o conhecia e atribuía a sua autoria a Tirteu. Para Jäger (1995, p. 121), Platão trata a produção poética de Tirteu como representativa do espírito marcial e político da Esparta arcaica, estabelecendo assim o lugar que esta ocuparia em toda a cultura posterior (1995, p. 117). Nas Leis (629a), o Ateniense cita passagens e faz paráfrases do fr. 12 W visando questionar se as instituições são orientadas para a guerra ou para a paz, a partir do estabelecimento do contraponto entre os conlitos externos e os civis: προστησώμεθα γοῦν Τύρταιον, τὸν φύσει μὲν Ἀθηναῖον, τῶνδε δὲ πολίτην γενόμενον, ὃς δὴ μάλιστα ἀνθρώπων περὶ ταῦτα ἐσπούδακεν εἰπὼν ὅτι “οὔτ’ ἂν μνησαίμην οὔτ’ ἐν λόγῳ ἄνδρα τιθείμην” 1,οὔτ’ εἴ τις πλουσιώτατος ἀνθρώπων εἴη, φησίν, οὔτ’ εἰ πολλὰ ἀγαθὰ κεκτημένος, εἰπὼν σχεδὸν ἅπαντα, ὃς μὴ περὶ 1 A citação de Estobeu para este verso dá τιθείην, presente optativo ativo, ao passo que Platão tem, em suas paráfrases, τιθείμην, presente optativo na voz média. Campbell (1982, p. 178) menciona que Heródoto utiliza a voz média em expressões similares (3.32: έν τιμῃ τίθεσθαι). Mas West opta por τιθείην, por ser a tradição direta mais coniável do que uma citação, especialmente de Platão (1974, p. 187). 147 as elegias de tirteu τὸν πόλεμον ἄριστος γίγνοιτ’ ἀεί. ταῦτα γὰρ ἀκήκοάς που καὶ σὺ τὰ ποιήματα· ὅδε μὲν γὰρ οἶμαι διακορὴς αὐτῶν ἐστι. Apresentemos, por exemplo, Tirteu: embora de natureza ateniense, ao ter se tornado cidadão destes (scil. dos lacedemônios), [foi] quem melhor do que [todos] os homens se empenhou em tais questões, ao dizer: “Não me lembraria e em verbo um varão não poria”, “nem se um desses homens fosse o mais rico” – disse – “nem se obtivesse muitas virtudes” – e depois de dizer quase todas, [diz]: “se ele não for sempre o melhor da guerra” . Você também ouviu por aí esses poemas, e ele aqui [scil. Megilo, de Esparta], imagino, já está farto deles. O poeta da Teognideia repete os versos 13-16 desta elegia com pouca alteração – a substituição do adjetivo νέωι por σοφῶι (vv. 1003-1006): ἣδ’ ἀρετή, τόδ’ ἄεθλον ἐν ἀνθρώποισιν ἄριστον κάλλιστόν τε φέρειν γίνεται ἀνδρὶ σοφῶι. ’ξυνὸν δ’ ἐσθλὸν τοῦτο πόληί τε παντί τε δήμωι, ὅστις ἀνὴρ διαβὰς ἐν προμάχοισι μένει.’ Tal virtude, tal prêmio, entre homens é o melhor e mais belo que há para um sábio varão receber. É este um bem comum à cidade e ao povo todo: que um varão irme na vanguarda se mantenha. (1005) (1005) Smyth (1903, p. 354) já salientava nessas passagens um traço da composição oral, onde se substitui um termo por outro equivalente em metro. Highbarger (1929, p. 344), por outro lado, indica que a Teognideia frequentemente se apropriava de excertos de poetas 148 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu que o precederam e adaptava-os para uma ocasião particular que estivesse em voga no momento, dando assim um novo ambiente para os versos de seus antecessores. Desse modo, o poema de seu predecessor era trazido para as necessidades do momento atual e assim - talvez se possa considerar – o adequaria a um momento de performance especíica. A hipótese de Highbager (1929, p. 352) é a de que Teógnis amplia o conceito de virtude que está delineado em Tirteu: em outro passo (865-868) o poeta de Megara declara que mesmo homens inúteis (ἄχρηστος) podem obter riquezas, mas a “grande glória da virtude” pertence apenas ao homem que salva sua terra e cidade.2 Nesse sentido, todo o homem, seja um jovem (νέος) ou não, será sábio, se lutar por sua terra natal. Highbarger (1929, p. 353) ainda equaliza o ἀνήρ σόφος destes versos ao πιστὸς ἀνὴρ dos versos 77-78 : Πιστὸς ἀνὴρ χρυσοῦ τε καὶ ἀργύρου ἀντερύσασθαι ἄξιος ἐν χαλεπῆι, Κύρνε, διχοστασίηι. Em dura sedição, Cirno, o homem iel equivale seu peso a ouro e prata. Nesse sentido, esses fragmentos da Teognideia são comparados com excertos do fragmento 12 W de Tirteu por Platão: o ilósofo argumenta que o homem que toma parte de uma dissensão civil (διχοστασία) é superior àquele que participa de conlitos externos (πόλεμος), e o faz estabelecendo um contraste entre as noções de virtude apresentadas pelos dois poetas. Para o estrangeiro ateniense das Leis (627e-632b), Tirteu não se referia a todas 2 Ver p. 123. 149 as elegias de tirteu as virtudes, mas somente à bravura (ἀνδρεία), que é a menos importante dentre quatro virtudes que Platão delineia, que consistem também de justiça (δικαιοσύνη), moderação (σωφροσύνη) e sensatez (φρονήσις) – todas elas possuídas pelo “homem iel” (e sábio, como quer Highbarger) de Teógnis, enquanto os guerreiros de Tirteu – grande parte deles mercenários – embora detentores de άνδρεία, podiam ser, em sua maioria, os mais insolentes (ὑβρισταί) e insensatos (ἀφρονέστατοι) dos homens (Leg.630b). Platão faz outra paráfrase do mesmo fragmento (vv. 1-12) no Livro II das Leis, adaptando-o às circunstâncias do seu diálogo. Ao tratar das qualidades necessárias para o “homem justo”, o ilósofo traça um paralelo com as ἀρεταί descritas por Tirteu no início do fr. 12 W. Platão trata a única qualidade que merece o canto de Tirteu – a impetuosa coragem que faz o guerreiro postar-se perto do inimigo – como uma qualidade do homem justo (Leg. 660e-661b): ὑμῖν ἐν πάσῃ παιδείᾳ καὶ μουσικῇ τὰ λεγόμενά ἐστι τάδε · τοὺς ποιητὰς ἀναγκάζετε λέγειν ὡς ὁ μὲν ἀγαθὸς ἀνὴρ σώφρων ὢν καὶ δίκαιος εὐδαίμων ἐστὶ καὶ μακάριος, ἐάν τε μέγας καὶ ἰσχυρὸς ἐάν τε μικρὸς καὶ ἀσθενὴς ᾖ, καὶ ἐὰν πλουτῇ καὶ μή· ἐὰν δὲ ἄρα πλουτῇ μὲν Κινύρα τε καὶ Μίδα μᾶλλον, ᾖ δὲ ἄδικος, ἄθλιός τ’ ἐστὶ καὶ ἀνιαρῶς ζῇ . καὶ “Οὔτ’ ἂν μνησαίμην”, φησὶν ὑμῖν ὁ ποιητής, εἴπερ ὀρθῶς λέγει, “οὔτ’ ἐν λόγῳ ἄνδρα τιθείμην,” ὃς μὴ πάντα τὰ λεγόμενα καλὰ μετὰ δικαιοσύνης πράττοι καὶ κτῷτο, καὶ δὴ “καὶ δηΐων” τοιοῦτος ὢν “ὀρέγοιτο ἐγγύθεν ἱστάμενος,” ἄδικος δὲ ὢν μήτε τολμῷ “ὁρῶν φόνον αἱματόεντα” μήτε νικῷ θέων “Θρηίκιον Βορέην,” μήτε ἄλλο αὐτῷ μηδὲν τῶν λεγομένων ἀγαθῶν γίγνοιτό ποτε. 150 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu Em todo o ensino e música de vocês, o que se diz é o seguinte: vocês compelem os poetas a dizer que o varão de valor, por ser prudente e justo, é feliz e bem-aventurado, seja ele rico e poderoso, seja pobre e fraco, ainda que não tenha qualquer riqueza. Mesmo se tivesse mais riquezas do que Midas e Cíniras, caso seja injusto, é um homem miserável e vai viver em desgraça. Diz o poeta de vocês (se é que ele fala corretamente): “Não me lembraria e em verbo um varão não poria”, o qual não pratica ou obtém com justiça todas as coisas consideradas belas, e, além disso, como tal, posta-se perto e atinge o inimigo. Mas o homem que é injusto não ousaria nem olhar o sanguinário massacre nem venceria na corrida o Trácio Bóreas, e jamais poderia ter para si qualquer outra coisa das que são chamadas de boas. Jäger (1966) chega a supor que essa elegia fora conhecida por Sólon e Píndaro, e que Xenófanes a imitara. Para este, não é mais a coragem na guerra a mais importante das virtudes para a polis, mas a σοφία (sophía, a sabedoria, ou a poesia), que “enche os cofres da cidade” (fr. 2 W, vv. 1-12): ἀλλ’ εἰ μὲν ταχυτῆτι ποδῶν νίκην τις ἄροιτο ἢ πενταθλεύων, ἔνθα Διὸς τέμενος πὰρ Πίσαο ῥοῆις ἐν Ὀλυμπίηι, εἴτε παλαίων ἢ καὶ πυκτοσύνην ἀλγινόεσσαν ἔχων εἴτε τὸ δεινὸν ἄεθλον ὃ παγκράτιον καλέουσιν, ἀστοῖσίν κ’ εἴη κυδρότερος προσορᾶν, καί κε προεδρίην φανερὴν ἐν ἀγῶσιν ἄροιτο, καί κεν σῖτ’ εἴη δημοσίων κτεάνων ἐκ πόλεως, καὶ δῶρον ὅ οἱ κειμήλιον εἴη – εἴτε καὶ ἵπποισιν· ταῦτά κε πάντα λάχοι, οὐκ ἐὼν ἄξιος ὥσπερ ἐγώ· ῥώμης γὰρ ἀμείνων ἀνδρῶν ἠδ’ ἵππων ἡμετέρη σοφίη.(...) 151 (5) (10) as elegias de tirteu Mas se alguém vencesse por presteza nos pés ou no pentatlo, onde está o templo de Zeus, às margens do Pisa, em Olímpia, ou na luta, ou por dominar a dolorosa arte do pugilato, ou aquele torneio terrível que chamam de o pancrácio, seria visto pelos cidadãos como mais renomado, teria um ilustre primeiro assento nos concursos, alimentos vindos dos bens públicos da cidade, e dádiva que lhe serviria de herança; mesmo se [vencesse] com seus corcéis, obteria tudo isso sem ser digno, como eu: Pois melhor que a força de homens e corcéis é minha sabedoria. (...) (5) (10) Assim como Tirteu, Xenófanes arrola em sua elegia uma série de virtudes (ἀρεταί) atléticas que são louvadas pelo povo, mas coloca acima de todas elas uma virtude política, a sua própria sabedoria (σοφία)3. Nesse sentido, de acordo com Adkins (1960, p. 74), ambos os poetas estão preocupados com a εὐνομία, isto é, o bom governo da pólis: enquanto Tirteu busca louvar a ἀρετή necessária para conter as ameaças externas, Xenófanes ocupa-se de realçar o atributo necessário para o bem estar de sua cidade. Desse modo, a preocupação com a eunomia poderia antes constituir um motivo frequente nos poemas elegíacos gregos arcaicos, como parece demonstrar a obra posterior de Sólon e Teógnis (Adkins, 1960, p. 75), do que uma emulação de Xenófanes ao fragmento 12 W. 3 Adkins (1960, p. 74) lança a hipótese de que Xenófanes não menciona explicitamente a sabedoria como a mais importante das virtudes porque, assim como nos tempos homéricos, a ἀρετή do guerreiro é ainda de fundamental importância para o bem estar de uma comunidade. 152 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu Wilamowitz (apud De Falco, 1941, pp. 179-180) foi o primeiro a julgar duvidosa a autenticidade deste fragmento. O autor situa a autoria do poema no início do século V, levando em conta questões estilísticas, como a ausência de uma fraseologia tipicamente arcaica e o tom fortemente retórico dos doze primeiros versos (Fowler, 1987, p. 82; Luginbill, 2002, p. 405). O modo de guerra retratado no fragmento também foi motivo para dúvidas acerca da autoria de Tirteu. Wilamowitz (apud Luginbill, 2002, p. 406) julgou que a menção à falange (12.21) remete a práticas de combate inexistentes no tempo do poeta. Fränkel (1975, p. 337) considerou que o poema pertencesse à época de Xenófanes. Diferente do que se poderia esperar de Tirteu, não ocorre aqui uma vívida descrição da batalha e não há a preocupação em condenar o medo ou a covardia (1975, p. 338). A longa introdução (vv. 1-12) que se assemelha ao início de Xenófanes 2 W (vv. 1-11) e o equilíbrio entre as partes do poema4 colocariam o poema no inal da era arcaica, segundo Fränkel (1975, p. 338, n.8). Jäger (1966, p. 112) rebateu essas considerações a respeito da inautenticidade do poema: o tom oratório dos primeiros versos é uma característica tipicamente elegíaca e comum nas composições arcaicas. Ainda, o uso do pronome τις em sentido impessoal juntamente com a terceira pessoa do imperativo (vv. 43-44) é comum na elegia exortativa, já empregado pelo próprio Tirteu (10. 31 W) e também por Calino (1.5 W, 1.9 W), e pode ser um indício para a datação do poema ainda no período arcaico (Luginbill, 2002, p. 406, n.8). Jäger também demonstrou que as táticas e os equipamentos apresentados em 12 W estão de acordo com aqueles descritos em outras elegias tirtaicas (1966, pp. 108-111). 4 Ver à frente comentários sobre a estruturação do poema. 153 as elegias de tirteu Fowler (1987, p. 82) atesta que muitos dos artifícios verbais utilizados por oradores antigos já podiam ser encontrados na poesia. A conclusão do fragmento 4 W de Sólon, por exemplo, embora se utilize de procedimentos notadamente retóricos, não tem sua autoria contestada. Em relação à autenticidade d fragmento 12 W colocada em questão pela crítica, Luginbill (2002, p. 406) conclui que as diferenças de temática devem-se antes ao fato de Tirteu utilizar-se de um estilo diferenciado do apresentado nos outros excertos (que talvez, diga-se, pudesse estar presente em outras de suas elegias que foram perdidas) e que nenhum dos argumentos contrários é conclusivo, revelando antes certa relutância em conferir a autenticidade da elegia à Tirteu (2002, p. 407). A glória do canto e a maior virtude (vv. 1-12) Como airma Nagy (1999, p. 16), o poeta grego é um mestre do κλέος, capaz de eternizar aquele que é celebrado em seu canto e garantir-lhe glória eterna sobre o poder anulador da morte. É esse privilégio, “lugar comuníssimo” (Ver Achcar, 1994, p. 153) da literatura grega, que Tirteu promete para aquele que detém a virtude necessária para a guerra. No âmbito essencialmente discursivo e circunstancial da poesia arcaica, onde uma audiência – um “tu” ou um “vós” – algumas vezes configura-se explicitamente (Goldhill, 1991, p. 110), há também espaço para a manifestação de um “eu” cuja personalidade poética por vezes se mostra com clareza (Martino e Vox, 1996, p. 568) e, distante de convenções genéricas como as da poesia épica, arroga somente para si a capacidade de cantar os κλέα ἀνδρῶν (kléa andrôn). 154 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu O que impediria o canto deste Eu elegíaco é, assim, a insuiciência de seu próprio repertório e a ausência da virtude heroica nos seus interlocutores, não a incapacidade de relembrar os grandes nomes sem o auxílio dos Deuses (Martino e Vox, 1996, p. 569). A dependência do poeta ante a Musa, propiciada pela sua distância dos grandes acontecimentos ou por sua própria incapacidade mental, constitui um traço do gênero épico que Homero evidencia no canto 2 da Ilíada (vv. 484-494). O aedo, incapaz de relembrar todos os guerreiros que assediaram Tróia, pede auxílio às Deusas para enunciar os comandantes e a quantidade de naus de cada segmento do exército: Ἔσπετε νῦν μοι Μοῦσαι Ὀλύμπια δώματ’ ἔχουσαι· ὑμεῖς γὰρ θεαί ἐστε πάρεστέ τε ἴστέ τε πάντα, ἡμεῖς δὲ κλέος οἶον ἀκούομεν οὐδέ τι ἴδμεν· οἵ τινες ἡγεμόνες Δαναῶν καὶ κοίρανοι ἦσαν· πληθὺν δ’ οὐκ ἂν ἐγὼ μυθήσομαι οὐδ’ ὀνομήνω, οὐδ’ εἴ μοι δέκα μὲν γλῶσσαι, δέκα δὲ στόματ’ εἶεν, φωνὴ δ’ ἄρρηκτος, χάλκεον δέ μοι ἦτορ ἐνείη, εἰ μὴ Ὀλυμπιάδες Μοῦσαι Διὸς αἰγιόχοιο θυγατέρες μνησαίαθ’ ὅσοι ὑπὸ Ἴλιον ἦλθον· ἀρχοὺς αὖ νηῶν ἐρέω νῆάς τε προπάσας. Dizei-me agora, Musas que habitam a Olímpia morada, pois vós sois Deusas, vós estais presentes e tudo sabeis, mas nós, ouvimos apenas a fama e nada sabemos: quais eram os líderes dos Dânaos e os seus senhores. A multidão eu não conseguiria narrar ou nomear nem mesmo se dez línguas, dez bocas eu tivesse, uma voz inquebrável e um peito brônzeo em mim, se vós, Olímpiades Musas ilhas de Zeus egífero 155 (485) (490) (485) (490) as elegias de tirteu não lembrásseis quantos chegaram ao pé de Ílion. Em seguida, direi o número de navios e seus comandantes. De Martino e Vox (1996, p. 569) creem que o início deste poema de Tirteu (vv. 1-12) alude à estrutura dos versos de Homero citados acima: a sequência anafórica da expressão “οὐδ’ εἴ” no início de cada dístico (vv. 3, 5, 7, 9) e a condicional “εἰ μὴ” no verso 11 remetem ao apelo feito pelo poeta da Ilíada às Musas, no entanto reforçam a autonomia do poeta elegíaco – se o aedo compõe apenas se as musas derem ajuda à memória, Tirteu depende exclusivamente de seu repertório poético. No caso, o homem não é digno de canto “se não ousar olhar o sanguinário massacre” (vv. 11) e “enfrentar o inimigo de perto” (vv. 12). É disso que se constitui a coragem, a ἀρετή militar louvada pelo poeta. Entretanto em vez de uma alusão direta, estaremos mais de acordo com a leitura de R.L. Fowler em The Nature of Greek Lyric: Three Preliminary Studies (1987, p. 82), que já havia notado que a repetição de negativas é um recurso comumente utilizado na poesia arcaica quando se deseja obter ênfase. Os versos 1-12 trazem somente esse procedimento tradicional levado ao extremo. Faraone (2008, p. 31), indo além, observa o que pode ser um traço característico da elegia arcaica. O autor demonstra que poetas elegíacos frequentemente utilizam-se de uma unidade de cinco dísticos como recurso formal para a composição de catálogos, que são característicos nos fragmentos mais extensos da elegia arcaica. Tais unidades seriam delimitadas por meio de repetições de sintagmas a cada verso. 5 5 Faraone (2008, pp. 31-43) cita como exemplo dos catálogos elegíacos Sólon 13 W, o priamel em Sólon 27 W e Tirteu 12 W. 156 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu A partir de Race (1982, p. 30) e Faraone (2008, p. 34) pode-se dizer que os versos 1-10 de Tirteu constituem uma forma denominada priamel, que consiste de uma enumeração de itens em sequência paratática, de modo a adicionar expectativa quanto à revelação do último item e colocá-lo em posição superior aos arrolados anteriormente, que são refutados pelo poeta. A principal característica do priamel é, portanto, a multiplicidade de itens utilizada para realçar aquele que é considerado mais importante ou para introduzir alguma relexão ou posicionamento moral. O recurso é frequente também em Píndaro (Pítica. 1.75-80, 99-100, Ístmicas 5.30-35, ver Race, 1982, p. 2). Por se tratar de uma prática discursiva comum entre os soistas, também empregada pelo Sócrates platônico6, julgou-se que o poema pertencesse a essa época ou ao início do século IV (Willamowitz 1908, apud De Falco, 1941). No entanto, Safo 16. 1-4 V, um exemplo clássico de priamel, já atesta a antiguidade da forma: ο]ἰ μὲν ἰππήων στρότον οἰ δὲ πέσδων οἰ δὲ νάων φαῖσ’ ἐπ[ὶ] γᾶν μέλαι[ν]αν ἔ]μμεναι κάλλιστον, ἔγω δὲ κῆν’ ὄτ[⸏]τω τις ἔραται· U]ns, renque de cavalos, outros, de soldados, outros, de naus, dizem ser sobre a terra neg[r]a 6 Kirby (1984, p. 142) refere-se ao priamel como uma forma essencialmente retórica. Apoiando-se na teoria clássica da retórica aristotélica, Kirby veriica que o priamel consiste de uma função retórica que pode corresponder ao exemplo (o aspecto indutivo da argumentação)e cujo par oposto é o topos do maior e do menor, – exemplo de argumento dedutivo (entimema). Kirby ainda salienta que o uso do priamel em lugar do argumento entimemático é forma apropriada para inícios de poemas e gera efeitos mais adequados à poesia do que à prosa (1984, p. 143). 157 as elegias de tirteu a coisa mais bela, mas eu (digo): o que quer que se ame.7 Pietro Pucci em “Il testo de Tirteo nel tessuto homerico” (2006, p. 35) observou que a recusatio e a propositio, a conferir aos versos 1-12 uma natureza retórica, e a riqueza de exemplos míticos dados pelo poeta coniguram o poema como adequado à ocasião de performance do simpósio. Ainda nesse sentido, não seria estranho imaginar que um poema que menciona diversas virtudes de modo a eleger uma única, seja apropriado a um simpósio onde outras formas de virtude já tivessem sido louvadas. De fato, o fragmento 12 W de Tirteu aponta para um jogo verbal e ilosóico que a tradição crítica denominou κάλλιστον τὸ δεινά.8 Neste jogo, típico do simpósio, cada participante é convidado a declarar, sucessivamente, aquilo que considera melhor (ἄριστον), mais belo (κάλλιστον), ou pior (κάκιστον) para os mortais. A Teognideia possui um dístico (255-256) que demonstra exemplarmente o mecanismo que constituía o κάλλιστον τὸ δεινά; os versos apresentam um simposiasta, que, ao mesmo tempo em que se mostra justo, também aprecia o prazer (e parece pô-lo em primeiro plano – dando destaque a ele no segundo verso): κάλλιστον τὸ δικαιότατον· λῶιστον δ’ ὑγιαίνειν· πρᾶγμα δὲ τερπνότατον, τοῦ τις ἐρᾶι, τὸ τυχεῖν. (255) O mais belo é o mais justo; o melhor, ter saúde; e a coisa mais doce, conquistar o que se ama. (255) 7 Tradução de Giuliana Ragusa (2005). 8 Ver Ford (1999, p. 116) 158 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu Tirteu também se vale deste jogo: para o poeta espartano a melhor virtude não é a excelência nos jogos atléticos, beleza, riquezas, a realeza, a eloquência ou uma boa reputação (vv. 1-9). Acima de todas essas virtudes, Tirteu coloca a coragem de olhar a chacina no campo de batalha e enfrentar seus inimigos em combate corpo-a-corpo (vv. 9-12). O verso 1 constitui um início impactante, frequente em Tirteu. Os pés do primeiro hemistíquio (“οὔτ’ ἂν μνησαίμην”) são todos espondeus e coniguram certa solenidade ao começo9. Ambos os termos que indicam o ofício poético recebem destaque: a cesura do hexâmetro situa-se imediatamente após μνησαίμην e o verbo τιθείην é realçado por sua posição métrica privilegiada (im de verso). Desse modo, o poeta coloca-se em evidência e confere gravidade à sua própria atividade poética. Para De Martino e Vox (1996, p. 568) os versos 1-9 apresentam o programa poético de Tirteu: nesse sentido, o fr. 12 W de Tirteu poderia conigurar-se como uma introdução aos temas que Tirteu trata em sua poesia, isto é, apresentam aquilo que o poeta se propõe ou se recusa a cantar. 10 O modo como Tirteu denomina os seus versos, λογῳ (v. 1), é fundamentalmente técnico; a expressão já é empregada por Hesíodo para qualiicar sua poesia (Tr. v. 106: Εἰ δ’ ἐθέλεις, ἕτερόν τοι ἐγὼ λόγον ἐκκορυφώσω, “Se queres, com outra história esta 9 10 Pode-se pensar, tomando como modelo o estudo de Adkins (1977, pp. 6364) para o Fr. 1W de Calino, que o verso 1 do Fr. 12 W de Tirteu corresponderia provavelmente ao começo do poema, por conta da ausência de partículas conectivas e da eicácia de um verso como este em início de poema, o qual anuncia uma espécie de “programa poético”. Ver também Prato, 1968, pp. 119-126. 159 as elegias de tirteu encimarei” 11), mas é o Fragmento S 151 de Íbico (vv. 23-26) que atesta um uso em contexto similar ao de Tirteu (Martino & Vox, 1996, p. 573). O poeta interrompe a narração de episódios concernentes ao ciclo troiano e diz-se incapaz de colocá-los em discurso, engendrando uma preterição: καὶ τὰ μὲ[ν ἂν] Μ̣οίσαι σε̣σοφι̣[σ]μ̣έναι εὖ Ἑλικων̣ίδ[ες] ἐ̣μβαίεν †λόγω[ι†, θνατ[ὸ]ς δ’ ο̣ὔ̣ κ̣[ε]ν̣ ἀνὴρ ⸏διερὸς τὰ ἕκαστα εἴποι (...) Mesmo essas coisas [as] Musas habil[i]dosas Heliconíad[es] bem poderiam perfazer em narrativa, mas um m[o]rtal, um homem vivo, não poderia dizê-las cada uma – (...) 12 (25) (25) Ainda, segundo os autores (1996, p. 568), ἄνδρα, μνησαίμην e τιθείην são todos termos técnicos signiicativos: o primeiro delimita a matéria do canto e tem como exemplo célebre o verso inicial da Odisseia. Os outros dois são verbos por excelência do fazer poético. O primeiro é típico da poesia épica e denota a relação entre o cantor e o seu repertório, como o demonstram os versos iliádicos mencionados acima. O segundo é menos comum, mas adequado ao contexto programático, como demonstram outros fragmentos elegíacos (Sólon, fr. 1 W, v. 2: κόσμον ἐπέων ὠιδὴν ἀντ’ ἀγορῆς θέμενος: “e um adorno da palavra, o canto, anteponho à fala”). 11 Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer (1989). 12 Tradução de Giuliana Ragusa (2010) 160 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu O pentâmetro que sucede o verso inicial (v. 2) contrapõe com a ágil e constante dicção do metro datílico a forte sequência de espondeus do verso anterior. O dístico forma uma unidade de sentido completa13, à qual se seguirá uma série de orações condicionais a cada verso. No verso 2, ποδῶν ἀρετῆς e παλαιμοσύνες atuam como genitivos causais que limitam a oração anterior: o poeta especiica qual é o homem que ele não lembrará nem colocará em seu discurso (Defradas, 1962, p. 37). Nesse sentido, os dois termos já fornecem a primeira instância que o poeta recusará no verso 9. Ambos tratam de atividades do mundo atlético (Bowra, 1938, p. 64) e denotam excelência (ἀρετή) em sua prática. Bowra (1938, p. 65) acredita que as vitórias espartanas em Olímpia no século anterior foram provavelmente importantes para a menção de Tirteu às aptidões atléticas. De Martino e Vox (1996, p. 568), contudo, remetem a uma passagem da Odisseia em que ocorre uma relexão sobre o esporte em termos similares aos de Tirteu, que induz pensar que se tratam de referências comuns na poesia grega (Od. 8. 145-148)14: δεῦρ’ ἄγε καὶ σύ, ξεῖνε πάτερ, πείρησαι ἀέθλων, εἴ τινά που δεδάηκας· ἔοικε δέ σ’ ἴδμεν ἀέθλους. οὐ μὲν γὰρ μεῖζον κλέος ἀνέρος, ὄφρα κεν ᾖσιν, ἢ ὅ τι ποσσίν τε ῥέξῃ καὶ χερσὶν ἑῇσιν. 13 14 (145) Embora a correspondência entre o dístico elegíaco e uma oração de sentido completo de modo a formar uma unidade seja uma regra de composição tradicional para a poesia elegíaca latina, o mesmo nem sempre era válido na produção elegíaca grega (Adkins, 1985, p. 7). É significativo também o fato de que Odisseu, ele mesmo um ἀνήρ, tecerá relexões similares à frente Ver Od.8.167, 172, 206. 161 as elegias de tirteu Eia, tu também, senhor hóspede, vem pôr-te à prova nos jogos, (145) se é que aprendeste algum... pois parece que os conhece! Pois não há maior glória para um varão, enquanto vive, do que a que se realiza com os seus pés e as suas próprias mãos. Nesse sentido, há de se notar o uso particularizante de ἀρετή, associado à ποδῶν,e o suixo –σύνη, que denota uma qualidade ou aptidão eminente (Defradas, 1962, p. 37). Seguindo-se à formulação geral do verso 1 e ampliando o contexto apresentado no início, os versos 3-9 expõem em sequência cinco exemplos míticos de outras virtudes inferiores ao ímpeto na guerra: força física (v. 3), agilidade (v. 4), – essas duas estreitamente relacionados às aptidões citadas no verso 2 – beleza (v. 5), riqueza (v. 6), poder (v. 7) e eloquência (v. 8). O acúmulo de virtudes e o caráter hiperbólico das comparações, que recorre a heróis ou a divindades, reforçará a grandiosidade da virtude enunciada no verso 9. Uma sequência de orações coordenadas em que cada verso corresponde a uma unidade de sentido completa (Adkins, 1985, p. 7), e a anáfora de οὐδ’ εἴ (vv. 3, 5, 7) no início de cada dístico imprimem uma ordem regular e uniforme (Faraone, 2008, p. 33). Do mesmo modo, Faraone também observou regularidade na organização de cada verso, que oferece sempre uma virtude natural e um exemplo mitológico correspondente (2008, p. 33). Não raro o poeta se vale da estruturação do hexâmetro e do pentâmetro para enfatizar a regularidade: é o caso do terceiro dístico (vv. 5-6), por exemplo, onde os elementos da comparação situam-se cada qual em um hemistíquio, separados pela cesura. O último dístico que compõe o priamel, embora seja introduzido por οὐδ’ εἴ, rompe o padrão regular dos versos anteriores. Faraone (2008, p. 34) observa que no verso 9 o poeta muda o tom 162 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu ao fazer uma declaração sumária, que resume todas as anteriores: “οὐδ’ εἰ πᾶσαν ἔχοι δόξαν” (“nem se tivesse toda a reputação”). Por δόξα, entende-se a expressão objetiva da ἀρετή diante da sociedade e da pólis, um termo que, para Jäger (1966, p. 119) é virtualmente um sinônimo de ἀρετή.15 O aspecto de síntese é reforçado pelo uso de πᾶσαν δόξαν, que se refere de maneira breve, a todas as ἀρεταί anteriormente descritas. O recurso é enfático e acrescenta à enumeração constante dos versos anteriores um índice de multiplicidade (πᾶσαν), que sugere serem diversas as virtudes que são superadas pela virtude guerreira exaltada por Tirteu. Race (1982, p. 16) observa que dois são os modos para sugerir quantidade/diversidade no priamel: por meio de exemplos particulares ou por meio de uma forma sumária, que indica a multiplicidade, com um termo que de certa maneira remeta a uma lista (como é o caso de ἄλλος, πᾶς, etc) . Os dois procedimentos são empregados por Tirteu no fragmento 12, de modo a colocar em posição de destaque a última das virtudes relatada. A enunciação dessa virtude conclui o priamel e abre o poema para uma declaração dos talentos e habilidades do homem eicaz na guerra, ἀνὴρ ἀγαθὸς ἐν πολέμωι (v. 10), retomando assim o ἄνδρα do verso 1 (Faraone, 2008, p. 34). Contra virtudes atléticas, plutocráticas e estéticas Tirteu anuncia a primazia da virtude guerreira, isto é, “a bravura impetuosa” (v. 10). Mas de que é constituída esta maior virtude? Tirteu descreve o homem detentor da ἀρετή marcial como capaz de suportar olhar o sanguinário massacre (φόνον ἁιματοέντα, phónon haimatoénta, v. 11) e enfrentar os inimigos de perto (v. 12). É essa, 15 Ver por exemplo Sólon 13.4W: ἀνθρώπων αἰεὶ δόξαν ἔχειν ἀγαθήν (“entre os homens sempre ter a boa reputação”) 163 as elegias de tirteu de certo modo, também a maior exigência do poeta aos soldados em outros de seus fragmentos exortatórios16. No entanto, o valor marcial que ele airma que os jovens podem conquistar, caso iquem irmes na guerra, é o mesmo valor que em outros fragmentos é perdido pelos guerreiros que ousam fugir (ver fr. 11.14 W). Nesses termos, Luginbill (2002, p. 407) observou que a ἀρετή exigida por Tirteu apenas pode ser conquistada na guerra, obtida no esforço do combate. A virtude conquistada por esforço é retratada por Hesíodo nos Trabalhos e Dias (vv. 286-92). Segundo a concepção hesiódica, reminiscente nos versos 43-44 do fragmento, os Deuses interpõem uma íngreme e difícil via para a obtenção da virtude, mas uma vez que se alcança o topo dessa via, tudo se torna fácil (vv. 286-292): Σοὶ δ’ ἐγὼ ἐσθλὰ νοέων ἐρέω, μέγα νήπιε Πέρση· τὴν μέν τοι κακότητα καὶ ἰλαδὸν ἔστιν ἑλέσθαι ῥηιδίως· λείη μὲν ὁδός, μάλα δ’ ἐγγύθι ναίει· τῆς δ’ ἀρετῆς ἱδρῶτα θεοὶ προπάροιθεν ἔθηκαν ἀθάνατοι· μακρὸς δὲ καὶ ὄρθιος οἶμος ἐς αὐτὴν καὶ τρηχὺς τὸ πρῶτον· ἐπὴν δ’ εἰς ἄκρον ἵκηται, ῥηιδίη δὴ ἔπειτα πέλει, χαλεπή περ ἐοῦσα. A ti boas coisas falarei, ó Perses, grande tolo! Adquirir a miséria, mesmo que seja em abundância é fácil: plana é a rota e perto ela reside. Mas diante da excelência, suor puseram os deuses imortais, longa e íngreme é a via até ela, áspera de início, mas depois que atinges o topo fácil desde então é, embora difícil seja. 17 16 Ver 10. 15-18 W, 10. 31-32 W, 11.7-8 W, 11.11-12 W, 11.21-22 W. 17 Tradução de Mary de Camargo Macedo Lafer. 164 (290) (290) capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu Hesíodo, porém, não elege uma virtude especíica como faz Tirteu, e claramente não se refere a um contexto marcial como ele: o homem excelente (πανάριστος, vv. 293) é aquele que pensa todas as coisas por si mesmo e bom (ἔσθλος, v. 295) é aquele que ouve o bom conselheiro. Contudo, embora não seja o valor militar que esteja em jogo para Hesíodo, como é para Homero e Tirteu, a ideia de virtude como habilidades e conhecimentos necessários para se obter o sucesso é compartilhada pelos três autores. Nesse sentido, a única virtude que pode ser eleita por Tirteu é a coragem, visto que é essa que pode garantir o sucesso na guerra. No verso 9, θοῦρις ἀλκή é colocada acima das virtudes atléticas mencionadas anteriormente. Esta expressão é recorrente na Ilíada, e como já observamos antes18, é utilizada em exortações como uma característica deinidora do varão: clamar para que um guerreiro seja um ἀνήρ equivale a pedir que ele demonstre θοῦρις ἀλκή. Em muitas passagens θοῦρις ἀλκή conigura-se como um antônimo para a fuga ou o medo, como se pode depreender em 11.566-568, onde uma oposição entre θούριδος ἀλκῆς (v. 566) e φεύγειν (v. 568) é traçada: Αἴας δ’ ἄλλοτε μὲν μνησάσκετο θούριδος ἀλκῆς αὖτις ὑποστρεφθείς, καὶ ἐρητύσασκε φάλαγγας Τρώων ἱπποδάμων· ὁτὲ δὲ τρωπάσκετο φεύγειν. Ájax ora se lembrava de sua impetuosa bravura, e ao se virar para trás tentava refrear as falanges dos Troianos domadores de corcéis. Ora, virava-se para fugir.19 18 19 Ver comentários ao fragmento 11, p. 123-124. Outros exemplos: em Il.15. 318-327, o agitar da égide de Apolo “enfeitiçava o peito” dos Dânaos e os “fazia esquecer-se da impetuosa fortitude” (322: 165 as elegias de tirteu Apenas no fragmento 12 esta qualidade do guerreiro supera as outras virtudes atléticas: desse modo, Tirteu coloca no lugar do atleta dos jogos o jovem guerreiro que, assim, obterá prêmios similares aos que seriam destinados a ele (Luginbill, 2002, p. 411). De fato, assim como no fragmento 2 W de Xenófanes acima citado, o guerreiro de Tirteu obtém status eminente em sua sociedade (12.41 W) do mesmo modo que o atleta vencedor de Xenófanes (2.7 W). O oferecimento de um prêmio (12.13 W: ἄεθλον, termo frequentemente utilizado para designar o prêmio obtido com a vitória nos jogos) e o alto apreço dado a ele (12.14 W) podem também remeter a esse contexto. A relação entre os jogos atléticos e a atividade militar pode ter sido frequente na poesia de Tirteu. Além do símile da corrida de cavalos no fragmento 20 W20, o fragmento 14 W pode trazer uma associação similar: ‘πρὶν ἀρετῆς πελάσαι τέρμασιν ἢ θανάτου’ Antes de alcançar os limites da virtude ou da morte. A expressão ἀρετῆς (...) τέρμασιν remete ao verso 43 fragmento 12 W, e ambas parecem tratar de um contexto atlético: para Jäger (1966, p. 116) a palavra τέρμα invocaria imediatamente na audiência a imagem das corridas em Olímpia. No entanto, o termo da corrida de Tirteu apenas se encontra em batalha. E no im desta corrida, restam apenas duas opções: ou a virtude, ou a morte. ἐν στήθεσσιν ἔθελξε, λάθοντο δὲ θούριδος ἀλκῆς) levando-os a uma fuga pânica (Il.15.326: ὣς ἐφόβηθεν Ἀχαιοὶ ἀνάλκιδες) 20 Ver comentários aos fragmentos 6 e 7, pp. 266-280. 166 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu Pucci (2006, p. 36), contrário às leituras tradicionais do poema, considerou que o priamel refere-se não às virtudes celebradas nos jogos, mas alude diretamente àquelas louvadas na Ilíada. Assim, Tirteu conigura uma polêmica com o texto homérico: o poeta recusa as virtudes próprias dos heróis homéricos, de modo a gloriar não o nobre de ascendência divina, mas o soldado comum. Por outro lado, caso se pense na ocasião de performance do poema como o simpósio, espaço eminentemente aristocrático, veriica-se que a identiicação dos participantes nesse ambiente com heróis de investidura épica é corriqueiro e um dos traços característicos da elegia marcial (Irwin, 2005, p. 36). Jäger pensou que o poema engendrava uma transvaloração (umwertung) da palavra ἀρετή em relação aos poemas homéricos (1966, p. 120). Para ele, o ideal heróico da ἀρετή homérica transforma-se no heroísmo do amor à pátria, recebendo expressão artística pela primeira vez neste poema em termos absolutos (1995, p. 119). Campbell (1982, p. 177) ofereceu outro ponto de vista para a compreensão da ἀρετή no poema, e foi seguido por Luginbill (2002, pp. 407-409): segundo o autor, o uso da palavra ἀρετή associado a ποδῶν já é um indicativo de que Tirteu trata a noção de virtude nos mesmos termos que Homero, como diversas formas particulares de excelência. Há outras virtudes, mas para o poeta, todas são inferiores à coragem. O uso de ἡδ’ ἀρετή no verso 13 é outro indicativo da especiicidade desse termo na poesia de Tirteu. A expressão consagra a ἀρετή marcial como suprema, em vez de propor uma deinição geral sobre o que é a virtude, como pretendera Bowra (1938, p. 70). 167 as elegias de tirteu Para Bowra, Tirteu tenta deinir o ἀνήρ ἀγαθός, explicando-lhe seu lugar na sociedade a partir de uma deinição geral de sua ἀρετή. Gerber (1970, apud Luginbill, p. 407, n. 21) nota o paralelismo nas posições dos pronomes em ἡδ’ ἀρετή e τόδ’ ἄεθλον, de maneira a pensar que as duas expressões devem ser sintaticamente entendidas da mesma forma. Sendo assim, Gerber observa que tanto “Isso é ἀρετή” quanto “esta ἀρετή” são interpretações possíveis, no entanto o contexto do poema favorece a segunda.21 Observando este contexto, mantém-se aqui posição similar a de Luginbill (2002, pp. 407-409): o poeta refere-se às diversas ἀρεταί – todas ains ao universo ético e aristocrático grego – de modo a eleger aquela que lhe é mais conveniente em seus poemas, a coragem que deve ser demonstrada em guerra. Elegendo esta virtude, o poeta agora deine o homem que a possui, o herói que participa da guerra por sua terra e seus familiares. O homem bom na guerra (vv. 15-22) O ideal do soldado valente, o homem bom (ἀνήρ ἀγαθός) na guerra, engendra boa parte das relexões morais da obra poética de Tirteu (Bowra, 1938, p. 59). Questão que recebe uma de suas maiores expressões no fragmento 10. 1-2 W (Bowra, 1960, p. 60)22. Também no fragmento 12 W, o valor marcial é associado à defesa da terra pátria: o homem bom é considerado um bem comum a toda a cidade e ao seu povo (v. 15). Jäger (1966, p. 120) 21 22 A tradução de Aluízio Faria de Coimbra (1941) mantém a correlação sintática vertendo a passagem por “Mais alta esta é dos homens a virtude/ e lorão (...) Ver os comentários ao fr. 10 W, pp. 80-94. 168 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu equaciona o termo ξυνὸν ἐσθλὸν ao conceito tardio de κοινόν ἀγαθόν, e assinala que o único valor que deine o herói no tempo de Tirteu é o seu zelo em lutar pela terra pátria, ao passo que o herói homérico tem unicamente propósitos pessoais. Bowra (1938, p. 65), seguindo leitura similar, pontua que não há no poema de Homero um homem que possa ser chamado de ἀγαθός no sentido dado por Tirteu, entretanto reconhece em Heitor um homem próximo desse ideal. Já foi visto anteriormente que o sentimento patriótico ou de coletividade existe tanto na poesia de Homero quanto na de Tirteu, e as diferenças existentes restringem-se ao gênero e às circunstâncias de cada poema, não sinalizando propriamente um desenvolvimento histórico23. Adkins (1960, p. 33) sugeriu que os heróis homéricos são caracterizados como ἀγαθοί não somente pela nobreza de seu nascimento, mas também por (deverem) apresentar as qualidades que permitem o bom regimento de uma sociedade, seja na guerra ou na paz. Assim, aquele que possui a ἀρετή é também tido como capaz de defender a coletividade, e deve conjugar atributos como força e coragem. Uma vez que estes atributos são os que uma sociedade em tempo de guerra mais necessita, é natural que aqueles que os possuem sejam denominados ἀγαθός (Adkins, 1971, p. 13). Desse modo, a ἀρετή considerada um bem comum a todo o grupo não é ideia exclusiva da elegia de Tirteu. Luginbill (2002, p. 408) relembra o fragmento 2 W de Xenófanes que deine a sabedoria como ἀρετή mais importante em vista do benefício que ela pode proporcionar à pólis (σμικρὸν δ’ ἄν τι πόλει χάρμα 23 Ver Introdução, pp. 59-60. 169 as elegias de tirteu γένοιτ’ ἐπὶ τῶι, /εἴ τις ἀεθλεύων νικῶι Πίσαο παρ’ ὄχθας : pouco seria p’ra cidade/ se conquistassem vitória às margens do Pisa). No canto 19 da Odisseia (vv. 106-114) compartilha-se de um ideal similar quando Odisseu menciona que o povo prospera (ἀρετᾶν) quando está sob o governo de um rei excelente: “ὦ γύναι, οὐκ ἄν τίς σε βροτῶν ἐπ’ ἀπείρονα γαῖαν νεικέοι· ἦ γάρ σευ κλέος οὐρανὸν εὐρὺν ἱκάνει, ὥς τέ τευ ἦ βασιλῆος ἀμύμονος, ὅς τε θεουδὴς [ἀνδράσιν ἐν πολλοῖσι καὶ ἰφθίμοισιν ἀνάσσων] εὐδικίας ἀνέχῃσι, φέρῃσι δὲ γαῖα μέλαινα πυροὺς καὶ κριθάς, βρίθῃσι δὲ δένδρεα καρπῷ, τίκτῃ δ’ ἔμπεδα μῆλα, θάλασσα δὲ παρέχῃ ἰχθῦς ἐξ εὐηγεσίης, ἀρετῶσι δὲ λαοὶ ὑπ’ αὐτοῦ. ” Mulher, nenhum mortal sobre a terra ininita poderia repreendê-la, pois a glória tua alcançou o céu vasto, como se fosses um rei irreprochável, que piedoso [entre muitos e poderosos varões reinando] sustenta boas decisões. e a terra negra produz-lhe trigo e cevada, as árvores se vergam de fruto, as ovelhas parem sempre e o mar fornece peixe, graças ao bom governo. Sob ele o povo prima. (110) (110) Ao estudar os conceitos de τιμή e ἀρετή em Homero e especialmente na Ilíada, Margalit Filkenberg em “Time and Arete in Homer” (1998, p. 21) nota que a ἀρετή deixa de existir quando não colocada a serviço de propósitos públicos. Nesse sentido, Heitor não seria o único que serviria como exemplo de algo próximo ao ideal de ἀνήρ ἀγαθός de Tirteu, mas conforme o exemplo de Finkelberg, também em menor 170 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu evidência, Aquiles, visto que ica implícito que a ἀρετή do herói grego deixará de existir se ele continuar abstendo-se da guerra (Finkelberg, 1998 pp. 21-23) e permitir a morte dos seus aliados aqueus. No canto 11 da Ilíada, Nestor conta a Pátroclo como, ainda jovem, tomou parte do confronto contra os Epeios em favor de Pilos e sobressaiu-se no combate. Em seguida, compara-se a Aquiles (Il. 11. 762-764): ὣς ἔον, εἴ ποτ’ ἔον γε, μετ’ ἀνδράσιν. αὐτὰρ Ἀχιλλεὺς οἶος τῆς ἀρετῆς ἀπονήσεται·ἦ τέ μιν οἴω πολλὰ μετακλαύσεσθαι ἐπείκ’ ἀπὸ λαὸς ὄληται. Assim eu fui, se o fui um dia, entre os varões. Mas apenas Aquiles aproveitará seu valor; Sim, creio que ele muito chorará, depois que a tropa for destruída. A cena continua no Canto 16, quando Pátroclo dirige-se a Aquiles, reproduzindo a reprimenda de Nestor (16. 29-33): σὺ δ’ ἀμήχανος ἔπλευ Ἀχιλλεῦ. μὴ ἐμέ γ’ οὖν οὗτός γε λάβοι χόλος, ὃν σὺ φυλάσσεις αἰναρέτη· τί σευ ἄλλος ὀνήσεται ὀψίγονός περ αἴ κε μὴ Ἀργείοισιν ἀεικέα λοιγὸν ἀμύνῃς; Tu és impossível, Aquiles. Que não se apodere de mim essa cólera que tu guardas, terrível virtude! Quem no futuro se beneiciará de ti, se não repelires a vexatória ruína dos Argivos? (30) (30) Segundo Finkelberg (1998, p. 22), embora a expressão ἀρετή não conste nas palavras ditas por Pátroclo, ele reproduz quase que fielmente o que diz Nestor no canto 11, insinuando que se abster da luta implica perder a sua virtude, e por extensão, a sua própria 171 as elegias de tirteu razão de ser, uma vez que tal atitude nada lega aos outros homens (pósteros ou não). Deste mesmo modo é que pode se dar na poesia de Tirteu a associação entre ἀρετή individual possuída pelo guerreiro e a sua comunidade: o guerreiro receberá os benefícios de sua ἀρετή apenas quando esta for signiicativa para seu povo, isto é, um bem comum a todos (ξυνὸν ἔσθλον). Os versos 16-20 compõem o caráter do ἀνήρ ἀγαθός que garante o sucesso na guerra. Há de se notar que o verso 20 termina com a mesma declaração que conclui o verso 10 (“ἀνήρ ἀγαθός ἐν πολέμωι”) e que retoma, ainda, o ἄνδρα mencionado no verso 1. Deste modo, Tirteu separa seu poema em duas partes distintas cujas estruturas são equivalentes: os primeiros cinco dísticos expõem aquilo que não tem lugar na elegia marcial e os cinco dísticos que se seguem apresentam a matéria digna de canto: a virtude guerreira (vv. 11-12), os benefícios que dela provêm (vv. 13-15) e os principais elementos que caracterizam seu detentor (vv. 16-20). Tirteu engendra assim dois pólos opostos, um negativo nos vv. 1-10, e outro positivo em 11-20, mas correspondentes em estrutura, visto que são enquadrados claramente por uma mesma oração ao término de cada um dos cinco dísticos (Fränkel, 1975, p. 339, n. 8). Fränkel considerou, por outro lado, que este equilíbrio entre as partes do poema denunciava-o como próprio do período clássico. Entretanto, considera-se que este tipo de construção pode ser um traço comum na poesia elegíaca: a teoria de Faraone (2008, pp. 49-50) é a de que este tipo de construção em blocos é recorrente na elegia grega arcaica, e pode até mesmo ser rastreada em outros fragmentos de Tirteu. 172 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu No fragmento 10 W de Tirteu, por exemplo, o verso 21 ecoa o primeiro verso do poema e há um padrão retórico alternado, que conjuga relexão e exortação: a cada cinco dísticos de relexão, marcados pelo emprego de uma terceira pessoa do singular, seguem-se outros cinco de exortação, denotados pela segunda pessoa do plural e pelo subjuntivo exortativo. Coincidentemente, o fragmento 11 W também se inicia com uma exortação (vv. 1-10) e parte para a relexão (vv. 11-20) antes de seguir para a descrição da batalha (vv. 21 ss.). Mas que características são essas, as do ἀνήρ ἀγαθός? Tirteu refere-se novamente 24 à necessidade do homem permanecer em uma posição ixa (διαβάς) condição oposta à fuga, do mesmo modo que em 10.16 W. νωλεμέως (“sem trégua”, vv. 17) segue em enjambement, recebendo destaque por estar em início de verso e ser o único termo que antecede à cesura. O procedimento reforça todo o verso anterior, que retrata uma posição de combate cara a Tirteu (...διαβὰς ἐν προμάχοισι μένηι , irme na vanguarda se mantenha). Nesse trecho, a menção à fuga serve apenas para recrudescer o valor do herói objeto de louvor: o homem bom elimina por completo de sua mente o desejo de fuga. Situação bem diferente se lê em outros fragmentos: no fragmento 10 W supramencionado, também há a condenação da fuga em termos similares (fr. 10.16 W), mas esta é condenável sobretudo porque acarreta um destino funesto para os anciãos (10.21-30 W)25; no fragmento 11 W, a fuga e a derrota são situações aceitáveis e talvez até mes24 25 Ver Tirteu 10 W. 31-32; Tirteu 11 W 21-22. c.f. análise do fragmento 11 W. O guerreiro enquanto um objeto de louvor é mencionado apenas brevemente (10.29-30), não ocupando o argumento central do poeta como no fragmento 12 W. 173 as elegias de tirteu mo corriqueiras (11.9: μετά φευγόντων...ἐγένεσθε, “estivestes entre os que fogem...”). Para lutar irme nas primeiras linhas do combate, o guerreiro deve arriscar a sua vida (ψυχή) e coração (θυμόν). O sentido é inequívoco e a ideia, recorrente26. Os dois termos são representativos de princípios vitais humanos. Postos lado a lado e ocupando todo o primeiro hemistíquio do verso 18 na forma de espondeus, o poeta destaca a oposição marcante entre a vida e a necessidade eminente do combate, que a põe em jogo (παρθέμενος). A representação de Tirteu para cada um destes elementos é comum, também, a Homero.27 O θυμός pode ser entendido como um princípio vital, uma vez que ao abandonar o corpo faz cessar a respiração e a consciência. É, no entanto, ativo durante a vida e considerado sede dos pensamentos e sentimentos (Corrêa, 2009, p. 36), dentre os quais a coragem e a cólera. A ψυχή, por outro lado, diz respeito frequentemente ao último sopro vital, que abandona o corpo do individuo juntamente com o θυμός. Difere do θυμός por não ter nenhuma participação ativa na consciência ou pensamento (Corrêa, 2009, p. 36), e por poder designar, portanto, a alma dos mortos. Por extensão, Homero, como Tirteu, já representa a ψυχή como a própria vida que é colocada em jogo no combate (Corrêa, 2009, p. 38). Por im, Tirteu salienta o valor da cooperação como uma característica essencial na guerra. Assim como em outros poemas ele admoesta os guerreiros a permanecerem lado a lado 26 27 Ver Tirteu 10. 18 W, 11. 5-6 W Defradas (1962, p. 38) observa que o verso é composto a partir da junção de duas fórmulas homéricas: ψυχάς παρθεμενοί e θυμόν τλήμονα ἔχων. 174 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu (παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες)28. Nesse sentido, uma característica do bom guerreiro é manter-se ao lado de outro homem e o encorajá-lo à luta, não só com exemplos, mas também com o discurso (Pucci, 2006, p. 31). O poeta reforça a noção de cooperação empregando dois termos que indicam esta proximidade: πλήσιον e παρεστώς. Pucci (2006, p. 31) viu nesse verso um elemento metapoético: para o autor, o discurso que o guerreiro faz para outro no ambiente da guerra se identiica com o próprio discurso que a elegia realiza. Em outras palavras, a própria elegia torna-se uma ação bélica. A hipótese é interessante, pois, se considerarmos dessa maneira, a elegia exortativa marcial realiza-se antes em performance, mimetizando em forma poética o discurso guerreiro que o poeta espera de seus interlocutores. Nesse sentido, ao emular um contexto bélico, podemos supor que essa performance provavelmente se inseriria num ambiente propício à iccionalização de papéis como o simpósio. Os versos 20-21 descrevem as habilidades físicas do herói de Tirteu, e demonstram que a ἀρετή do homem bom provoca efeitos tangíveis no campo de batalha (Luginbill, 2002, p. 408). Do mesmo modo que a caracterização do guerreiro privilegia o indivíduo, e não o γένος (como em 11.1 W) e tampouco há referências ao coletivo, como há no uso da primeira e segunda pessoa do plural nos fragmentos 10, 11 e 19, também pode se pensar que os feitos de força descritos nos versos 20-21 são estritamente individuais (Luginbill, 2002, p. 411) e aludem a um mundo tipicamente 28 Ver estudo do fragmento 11 para uma análise mais detalhada do valor do auxílio mútuo na poesia de Tirteu. 175 as elegias de tirteu iliádico – onde um herói destaca-se da massa por suas habilidades sobre-humanas. Contudo, tal visão idealizada (Luginbill, 2002, p. 410) não é exclusiva da épica, mas também ocorre no mais extenso fragmento militar de Calino, onde surge, enfatizada, a individualidade do guerreiro (μοῦνος ἐών, v. 21). Cabe lembrar, ainda, que a recompensa do interlocutor de Calino por seus feitos épicos, a lembrança de todos, será a mesma que Tirteu concederá ao seu νέος nos versos 27-42 (Calino, 1.18-21 W): λαῶι γὰρ σύμπαντι πόθος κρατερόφρονος ἀνδρὸς θνήσκοντος, ζώων δ’ ἄξιος ἡμιθέων· ὥσπερ γάρ μιν πύργον ἐν ὀφθαλμοῖσιν ὁρῶσιν· ἔρδει γὰρ πολλὼν ἄξια μοῦνος ἐών. Toda a tropa tem saudade de um varão de coração forte que morre, e em vida era digno de semideuses. Com os seus olhos veem-no qual uma torre, pois, embora só, faz atos dignos de muitos. (20) (20) O feito do guerreiro tirtaico consiste em desfazer as falanges inimigas (v. 21) e deter o luxo da guerra (v. 22). O caráter heróico de cada ação ainda é realçado pelo advérbio αἴψα, (“prontamente”), em início de verso, e pelo dativo σπουδῆι (“a sério”, “com zelo”, mas também “com rapidez”), em espondeu. 29 29 O termo φαλλάγγας serviu de argumento para Wilamowitz (1908, apud Luginbill, 2002, p. 407) destituir do poema a autoria de Tirteu, uma vez que, segundo ele, esta tática de guerra ainda era desconhecida no tempo de Tirteu. Mas o termo poderia ser usado em um sentido menos especíico, como é frequente na Ilíada (ver, por exemplo, 19. 158), onde designa simplesmente as ileiras do exército. 176 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu Para Campbell, κῦμα μαχῆς é expressão provavelmente cunhada por Tirteu (1982, p. 181). No entanto, a imagem é recorrente desde Homero. Fenno (2005) em “A great wave against the stream: water imagery in Iliadic battle scenes”, assinala ser tradicional comparar o ruidoso avanço de tropas gregas ao mar em movimento, em símiles que podem ser ampliicações poéticas de ações denotadas pelos verbos χέω (“espalhar-se”), ῥέω (“correr”, mas também “luir”) e σεύω (“lançar-se”), verbos que podem ser utilizados tanto para referir o movimento das águas quanto, em sentido estendido, o movimento de agrupamentos humanos (2005, p. 479). Assim, não raro o poeta épico compara a investida das falanges gregas ao acampamento troiano com ondas do mar pulsando nas praias (Il. 4. 422-428): Ὡς δ’ ὅτ’ ἐν αἰγιαλῷ πολυηχέϊ κῦμα θαλάσσης ὄρνυτ’ ἐπασσύτερον Ζεφύρου ὕπο κινήσαντος· πόντῳ μέν τε πρῶτα κορύσσεται, αὐτὰρ ἔπειτα χέρσῳ ῥηγνύμενον μεγάλα βρέμει, ἀμφὶ δέ τ’ ἄκρας κυρτὸν ἐὸν κορυφοῦται, ἀποπτύει δ’ ἁλὸς ἄχνην· ὣς τότ’ ἐπασσύτεραι Δαναῶν κίνυντο φάλαγγες νωλεμέως πόλεμον δέ·(...) (425) Como as ondas do mar quando na praia undíssona avançam, ininterruptas por Zéiro lançando-se: em alto mar elas primeiro se encristam, aí depois rugem forte rebentando contra a terra, e em volta (425) dos promontórios se ergue inchada e vomita a salsa escuma; assim, ininterruptas as falanges dos Dânaos lançavam-se sem trégua à guerra. 177 as elegias de tirteu Desse modo, Tirteu faz uso de uma imagem tradicional – não conim à Homero mas frequente em outros contextos30 – para evocar a estrondosa investida de numerosos guerreiros inimigos (δυσμενέων ἀνδρῶν ἔτρεψε φάλαγγας, v. 21) – que o guerreiro ideal detém, mantendo-se irme em seu posto (διαβάς, v. 16) à maneira, por exemplo, dos dois Ajantes na Ilíada (17.746-753) que, imóveis diante dos troianos que avançavam em linha reta, se assemelham a uma barragem dividindo a água dos rios (Fenno, 2005, p. 487, n. 27): αὐτὰρ ὄπισθεν Αἴαντ’ ἰσχανέτην, ὥς τε πρὼν ἰσχάνει ὕδωρ ὑλήεις πεδίοιο διαπρύσιον τετυχηκώς, ὅς τε καὶ ἰφθίμων ποταμῶν ἀλεγεινὰ ῥέεθρα ἴσχει, ἄφαρ δέ τε πᾶσι ῥόον πεδίον δὲ τίθησι πλάζων· οὐδέ τί μιν σθένεϊ ῥηγνῦσι ῥέοντες· ὣς αἰεὶ Αἴαντε μάχην ἀνέεργον ὀπίσσω Τρώων· (...) E atrás deles os Ajantes refreavam o inimigo, qual barranco frondoso da planície, que refreia a água violenta, que até mesmo as intensas correntezas dos fortes rios retém; prestes a planície põe a correnteza a vagar por toda a parte, e nem luindo com força ela a rompe; 30 (750) (750) De Falco (1941) cita Ésquilo, sete contra Tebas, v. 64: (βοᾷ γὰρ κῦμα χερσαῖον στρατοῦ·“estronda a sólida onda do exército”, Tradução de Jaa Torrano, 2009). Fenno (2005, p. 478) menciona que na poesia mélica, Anacreonte utilizará à imagem não para aludir ao estrondo provocado pelas tropas, mas a um colega barulhento no simpósio (Fr. 427 1-2 PMG, μή δ ὥστε κύμα ποντίον/λάλαζε... “Como a onda marítima/não tagarele...”). 178 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu Assim sem cessar os Ajantes faziam retroceder a investida troiana (...). O herói tirtaico e suas recompensas (vv. 27-43) Tirteu relata nos versos 23 -34 as recompensas que aguardam o ἀνήρ ἀγαθός na morte, enquanto nos versos 35-42 descreve as suas prerrogativas caso sobreviva à guerra. Bowra (1938, p. 66) observa que esta ordem não deve causar estranhamento: decerto a morte em batalha soaria mais satisfatória do que a vida após a vitória. Por outro lado, essa maior importância pode se dar simplesmente porque a morte na guerra é o maior objeto de preocupação do poema (De Martino e Vox, 1996, p. 576). Fränkel (1975, p. 339, n.8) nota que os versos 23-34 são enquadrados por dois dísticos que apresentam ideias similares (23-24 e 33-34), formando assim uma unidade. Tanto as epopeias homéricas quanto a elegia marcial exortativa compartilham da ideia de que o valor marcial é o meio de um indivíduo aferir glória (κλέος, kléos) em meio ao seu povo e cidade (Irwin, 2005, p. 55). Os versos 23-24 apresentam uma noção de glória (κλέος, kléos) que está diretamente relacionada à morte. A morte em pleno campo de batalha é bela, pois acarreta a construção do σῆμα – o túmulo que resguarda a memória do herói, para que “as gerações futuras perguntem a respeito” (Od. 11.76), em contraponto à obscuridade de uma morte anônima (Goldhill, 1991, p. 71). Nesses termos, a glória (κλέος) de um homem que perece no combate transfere-se também à sua cidade e a seu pai (εὐκλείσας, v. 24, ver Pucci, 2006, p. 32), pois esse guerreiro demonstra a excelência militar essencial para a salvação da cidade, que o poeta retoma novamente nos versos 25-26: o bom guerreiro luta nas 179 as elegias de tirteu primeiras linhas (ἐν προμαχοίσι, v. 25) e morre ao receber os golpes pela frente (πρόσθεν, v. 26) situação contrária à morte vergonhosa descrita nos versos 17-21 do fragmento 11, onde o prófugo é atingido pelas costas (ὅπισθεν) e assim perde a sua ἀρετή (De Falco, 1941, p. 187). Assim, segundo Assunção (1989, p. 32), “a disposição para o risco máximo é o único meio de acesso à glória”. Desse modo, apenas “arriscando sua vida e coração tenaz” (v. 18) há a possibilidade do κλέος: seja por meio de uma morte que consagre a existência heróica do guerreiro (vv. 23-24) seja por meio do triunfo da vitória (vv. 35-36). As distinções recebidas pelo guerreiro morto visam transpor o problema da mortalidade. A morte é fonte de reconhecimento. Este reconhecimento é sobretudo afetivo: πόθος (póthos, “saudade”), no verso 28, corresponde ao desejo irrealizável por aquilo que está ausente (ver Chantraine, 1968), enquanto ἀργαλέος sugere a dor e o sofrimento proveniente do luto (κέκηδε) por alguém importante para a cidade. A importância do guerreiro é reforçada pela ideia da totalidade expressa pelos sujeitos desse luto: νέοι ἠδὲ γέροντες, (néoi edé gérontes, “jovens e velhos” v. 27) e πᾶσα πόλις (pása pólis, “toda a cidade” v. 28). 31 As recompensas expostas nestes versos demonstram que a imortalidade não provém apenas da poesia, ideia explícita no priamel, mas também do túmulo: se os feitos são consagrados pelo canto poético, a tumba do herói é o símbolo de sua permanência no mundo – “o anúncio visual de sua existência, a tentativa plástica de resposta ao problema insolúvel da morte” (Assunção, 1989, p. 9). E, nesse sentido, aquele que demonstra 31 Do mesmo modo que ocorre em Calino 1W: o guerreiro morto é deplorado tanto pelo humilde quanto pelo poderoso (ὀλίγος καί μέγας, olígos kai mégas v. 17) e por toda a tropa (συμπαντί λαῶι, v. 18). Ver Assunção, 1989, p. 165. 180 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu valor marcial ao permanecer no combate e morrer pela sua terra e por seus ilhos (vv. 33-34) adquire renome eterno para si e todos os seus (vv. 30-31). Pucci (2006, p. 32) imagina que este passo realiza performativamente a imortalidade poética prometida nos versos 1-9 ao homem corajoso. Nesses termos, o poeta parece revelar o contexto cívico e a ocasião simpótica de seus versos, uma vez que projeta as afecções civis em seu canto e assim torna-o πόθος, e não mais somente exortação à luta – ato circunscrito ao espaço bélico (2006, p. 32). Os últimos dísticos do poema (vv. 35-42) dedicam-se a apresentar a honra que o guerreiro corajoso recebe caso sobreviva à batalha, em versos assimilados pelo poeta da Teognideia (933-938): Παύροις ἀνθρώπων ἀρετὴ καὶ κάλλος ὀπηδεῖ· ὄλβιος, ὃς τούτων ἀμφοτέρων ἔλαχεν. ’πάντες μιν τιμῶσιν· ὁμῶς νέοι οἵ τε κατ’ αὐτόν χώρης εἴκουσιν τοί τε παλαιότεροι. γηράσκων ἀστοῖσι μεταπρέπει, οὐδέ τις αὐτόν βλάπτειν οὔτ’ αἰδοῦς οὔτε δίκης ἐθέλει.’ (935) Virtude e beleza acompanham poucos homens: venturoso, aquele que dispõe de ambas. Todos o honram: jovens e seus coetâneos (935) cedem-lhe lugar no conselho, e também os mais velhos. Envelhecendo, distingue-se entre os cidadãos e ninguém quer faltar-lhe com o respeito e a justiça. Assim, pode-se supor, como Irwin (2005, p. 79) que há aparentemente uma forte associação dessa poesia ao seu contexto cívico: a pólis é o meio e o espaço para a aquisição de glória que 181 as elegias de tirteu transcende a duração da vida humana (vv. 23-34) e estima de uma comunidade (vv. 35-42). O último dístico (vv. 43-44) realiza a exortação, clamando que os νέοι aspirem pela virtude mais alta, a coragem. Cabe ressaltar o uso de νῦν, que introduz o recurso retórico da enárgeia, a im de sugerir e presentiicar fortemente no ambiente de performance uma situação de guerra (Bowie, 1990, p. 222). Para Luginbill (2002, p. 413) a exortação inal é puramente fantasiosa: o jovem deve buscar a coragem, pois assim garantirá glória perene a si mesmo e a sua progênie. Quadro bem diferente será encontrado em outros fragmentos, onde os benefícios da vitória não são assim tão realçados. Em geral, os guerreiros dos poemas de Tirteu lutam porque não têm alternativa: deve-se lutar não para obter a imortalidade, mas para evitar a vergonha advinda de um exílio vergonhoso, considerado pior do que a morte (10. 1-14 W). Assim, Luginbill conclui (2002, p. 413)que as diferenças entre o fragmento 12 W e outros residiam em suas circunstâncias particulares de performance: enquanto os demais poemas eram dirigidos a guerreiros experientes, que conviviam com a brutalidade da guerra, o temor e a possibilidade iminente da desgraça - os versos do fragmento 12 tinham como alvo um público jovem, inexperiente na guerra, e dessa forma as promessas de recompensas expostas nestes versos, típicas de heróis épicos, soariam mais atraentes. Observamos, a partir dos traços aduzidos acima por Bowie (1990, pp. 222, 228), Luginbill (2002, p. 413) e Pucci (2006,p. 32) a possibilidade de adequar esta poesia a um cenário de performance para além da campanha militar e dotado de certa conotação civil: o simpósio aristocrático no interior da pólis. 182 capítulo 3 – o fragmento 12 w: simpósio e aretÊ em tirteu Caso se pense, ainda, como Irwin (2005, p. 104), que a pólis aparece subordinada à perspectiva do herói possuidor da excelência marcial, que ocupa o ponto central do poema, e que as recompensas obtidas por ele são estritamente pessoais e familiares (glória eterna para si mesmo, família e a progênie, vv. 23-34; estima entre o povo, vv. 35-42), pode-se concluir que a leitura desse fragmento não só se restringe a uma audiência jovem e inexperiente na guerra, mas também constitui um forte exemplo da emulação e iccionalização de papéis heroicos que, segundo Irwin, se assume no ambiente do simpósio como um meio de airmação e justiicativa de uma aristocracia ante o espaço iminente da polis. 183 ii. As ElEgiAs nArrATivAs E o fEsTivAl público cApíTulo 1 A poéTicA dA EunomiA A EunomiA E A mirAgEm EspArTAnA A Eunomia ocupa um lugar peculiar no corpus de elegias de Tirteu e talvez sem paralelo em outros poemas elegíacos gregos arcaicos, porquanto seus versos parecem aludir ao mais importante registro da história de Esparta, a assim chamada Grande Retra. De acordo com Plutarco, o documento foi outorgado pelo legislador lendário Licurgo, que o trouxe de Delfos na forma de profecia (Vida de Licurgo, 6). Acredita-se que a citação de Plutarco não seja uma transcrição exata do oráculo recebido por Licurgo, e sim o próprio texto da lei, que teria sido registrado por Aristóteles na obra perdida λακονίων πολιτεία (lakoníon politeía; ver Wade-Gery, 1944b, p. 115). O texto contém informações religiosas e administrativas, que demarcam o papel do povo (δάμω) no processo de decisão política – a ele, relata Plutarco, apenas cabia aprovar ou reprovar as propostas oferecidas pelo conselho (Ver Raalaub, 2006, p. 395): οὕτω δὲ περὶ ταύτην ἐσπούδασε τὴν ἀρχὴν ὁ Λυκοῦργος ὥστε μαντείαν ἐκ Δελφῶν κομίσαι περὶ αὐτῆς, ἣν ῥήτραν καλοῦσιν. ἔχει δὲ οὕτως· “Διὸς Συλλανίου καὶ Ἀθανᾶς Συλλανίας ἱερὸν ἱδρυσάμενον, φυλὰς φυλάξαντα καὶ ὠβὰς ὠβάξαντα, τριάκοντα γερουσίαν as elegias de tirteu σὺν ἀρχαγέταις καταστήσαντα, ὥρας ἐξ ὥρας ἀπελλάζειν μεταξὺ Βαβύκας τε καὶ Κνακιῶνος, οὕτως εἰσφέρειν τε καὶ ἀφίστασθαι· δάμω αν<τα>γορίαν ἦμην καὶ κράτος.” Licurgo zelou tanto pelo poder que trouxe de Delfos uma profecia sobre isso, a qual denominam Retra. Diz o seguinte: “Depois de fundar um templo de Zeus Silânio e Atena Silânia1, as tribos distribuir2, as obes3 organizar e instalar um conselho de trinta anciãos com os seus príncipes, realizar a apela4 de tempos em tempos entre Bábica e Cinácion. Dessarte, propõe e depõe, mas o poder e a respon<sa>bilidade serão do povo. [Plutarco, Licurgo, 6.1-3] No poema, Tirteu justiicaria a autoridade do poder real e a validade das leis, airmando que ambas estavam assentadas em estatutos divinos: os reis são descendentes de Héracles; a região do Peloponeso, uma dádiva de Zeus para eles; e a constituição, prescrita por Apolo. 1 2 3 4 Ogden (1994, p. 102) propõe para este epíteto a etimologia συν – λαν – ιος, sendo συν o preixo, “com” e λᾶνος a forma dórica para λῆνος, “cavo”, um sinônimo para κοίλος, que em Homero é um epíteto para a região da Lacedemônia (Il.2. 581). – ιος é o suixo formador de adjetivo. Assim, segundo o autor, Zeus e Atena recebem este epíteto porque seriam os protetores do vale entre Bábica e Cinácion. Particípio aoristo de φυλάζω (“distribuir em φύλαι”) ou φυλάσσω (“guardar”, “manter”, “vigiar”)? A primeira opção parece mais apropriada, tendo em vista um possível espelhamento entre φυλὰς φυλάξαντα (“por em tribos as tribos”) e ὠβὰς ὠβάξαντα (“por em obes as obes”). As obes eram subdivisões das φύλαι espartanas. (LSJ) ἀπελλάζειν, LSJ: equivalente lacônico de ἐκκλησιάζω (“realizar assembleia” ou “debater em assembleia”). A apela, dessarte, é o nome dado à assembleia popular espartana. 188 capítulo 1 – a poética da eunomia Segundo Jäger (1932 apud De Falco; Coimbra 1941, p. 158), provavelmente inluenciado pela leitura plutarquiana5, Tirteu defendia uma constituição na qual o povo ocupava posição secundária, e os reis e anciãos detinham grande poder de decisão. O contexto encontrado pelo erudito é que, com o término da Segunda guerra da Messênia, o povo toma conta de sua força e passa a reinvidicar maiores privilégios políticos de seus líderes; Tirteu, assumindo o papel de mentor e educador do estado, compõe a Eunomia com o intuito de relembrar o caráter sagrado da constituição e da origem espartana, e assim evitar um conlito. Tal entendimento dos fragmentos de Tirteu incorre em um problema que os historiadores têm chamado de “Miragem Espartana”6. Quanto daquilo que sabemos da história espartana não é fruto de uma visão equivocada de autores estrangeiros, provocada pela distância, preconceito ou fascínio? Quanto não é parte de uma reinvenção tardia da tradição, operada no período Clássico e Helenístico (Naissi, 2009, p. 128) ? Nesse contexto de testemunhos escassos ou pouco coniáveis da história espartana, o poema de Tirteu ocupa um lugar maior do que poderia ter tido originalmente, cercando-se desde a Antiguidade de narrativas que o colocam como um registro importante da igura de Licurgo, das leis atribuídas a ele e da fundação da Esparta Clássica. Todavia, tais narrativas têm peso e devem ser levadas em conta na medida em que inluem no próprio estabelecimento do texto7. 5 6 7 Ver Plutarco, Licurgo 6. 4 infra. Termo que icou convencionado depois da publicação da obra de François Ollier, La Mirage Spartiate em 1933. Ver fr. 4 W, pp. 216-244. 189 as elegias de tirteu Mas quanto do poema de Tirteu refere-se explicitamente a um período particular da história espartana, e quanto não é uma utilização de lugares-comuns da tradição poética grega arcaica? Aristóteles (Política, 5.1306b7 = fr. 1 W) é o primeiro a sugerir que a Eunomia fazia referências a um período de dissonância política que atingira Esparta no século VII a.C. Aristóteles apresenta a Esparta de Tirteu como exemplo para sua teoria de que conlitos no interior da polis estão atrelados à disparidade de riquezas entre os cidadãos. Embora não fale nada sobre os pedidos do povo por maiores direitos políticos, Aristóteles menciona que Esparta encontrava-se à beira de uma guerra civil por posse de terras: ἔτι ὅταν οἱ μὲν ἀπορῶσι λίαν οἱ δ’ εὐπορῶσιν ( γίνονται ἁι στάσεις) καὶ μάλιστα ἐν τοῖς πολέμοις τοῦτο γίνεται· συνέβη δὲ καὶ τοῦτο ἐν Λακεδαίμονι ὑπὸ τὸν Μεσηνιακὸν πόλεμον· δῆλον δὲ [καὶ] τοῦτο ἐκ τῆς Τυρταίου ποιήσεως τῆς καλουμένης Εὐνομίας· θλιβόμενοι γάρ τινες διὰ τὸν πόλεμον ἠξίουν ἀνάδαστον ποιεῖν τὴν χώραν. Ainda quando alguns estão demasiadamente sem recursos e outros prosperam (acontecem as sedições). Isso acontece, sobretudo, nas guerras: ocorreu também na Lacedemônia, durante a guerra messênica. Isso[ também] faz-se manifesto pelo poema de Tirteu, denominado Eunomia. Pois alguns, oprimidos por causa da guerra, achavam digno fazer uma redistribuição de terras. A Descrição da Grécia de Pausânias informa com maiores detalhes do que Aristóteles o teor dos confrontos em Esparta. Durante a Guerra da Messênia, os espartanos teriam deixado inúmeras porções de terra sem cultivo, para que os messênios que 190 capítulo 1 – a poética da eunomia habitavam a região do Ira não pudessem usufruir de seus campos. Com o im da guerra, a escassez de alimentos levou à revolta da população e à ameaça de uma sedição interna (4.18 = Fragmento 1 Bergk): ὥστε καὶ ἐποιήσαντο οἱ Λακεδαιμόνιοι δόγμα, ἅτε τοῖς ἐν τῇ Εἴρᾳ μᾶλλον ἢ σφίσιν αὐτοῖς γεωργοῦντες, τὴν Μεσσηνίαν καὶ τῆς Λακωνικῆς τὴν προσεχῆ, ἕως ἂν πολεμῶσιν, ἐᾶν ἄσπορον. καὶ ἀπὸ τούτου σιτοδεία ἐγένετο ἐν Σπάρτῃ καὶ ὁμοῦ τῇ σιτοδείᾳ στάσις· οὐ γὰρ ἠνείχοντο οἱ ταύτῃ τὰ κτήματα ἔχοντες τὰ σφέτερα ἀργὰ εἶναι. καὶ τούτοις μὲν τὰ διάφορα διέλυε Τυρταῖος· E desse modo os Lacedemônios, porque cultivavam a terra mais para os habitantes de Ira do que para eles próprios, tomaram a decisão de deixar Messênia e vizinhanças da Lacônia sem semeadura, enquanto guerreassem. Por isso houve carestia em Esparta, e juntamente com a carestia, a sedição: Pois os que tinham propriedades ali não suportavam que suas terras não fossem cultivadas. Tirteu resolveu a desavença entre eles. Se Van Wees (1999, p. 2) está certo em suas hipóteses, o relato de Pausânias é uma invenção tardia, que tenta conciliar o mito de Licurgo – cujas leis transformaram Esparta em uma sociedade de iguais, bem antes do tempo de Tirteu8 – com a evidência fornecida por Aristóteles de uma desigualdade predominante na sociedade espartana. As considerações de Pausânias reletem uma 8 Tirteu teria vivido duas gerações depois da diarquia dos reis Polidoro e Teopompo (Ver Fr. 5.1.W) – que possivelmente combateram na Primeira Guerra da Messênia em tempos da 50º Olimpíada, no último quartel do século VIII a.C.. Segundo Aristóteles, o oráculo recebido por Licurgo data de 776 a.C., época da 1º Olimpíada. (Ver Wade-Gery, 1944, p. 115) 191 as elegias de tirteu situação particular e sem paralelo na história de guerra da Grécia Antiga, podendo ser resultado de uma especulação posterior que visou adequar tanto a lenda de Licurgo como o poema de Tirteu na história espartana. Para Van Wees (1999, p. 2) é mais provável que Tirteu não tivesse referido explicitamente os eventos posteriores à guerra, mas somente feito uma ou outra alusão à necessidade de redistribuição de terras, do mesmo modo que Sólon em seus fragmentos. O Fragmento 34 W de Sólon, por exemplo, trata de um evento similar. Embora seja patente nos versos abaixo o desejo do Eu poético em direcionar a recepção de sua igura no poema (Ver Irwin, 2005, p. 133), o poeta também alude nesse fragmento à necessidade de reformas (vv. 8-9) sem tecer narrativas de alguma crise política especíica: οἱ δ’ ἐφ’ ἁρπαγῆισιν ἦλθον· ἐλπίδ’ εἶχον ἀφνεήν, κἀδόκ[<ε]ο>ν ἕκαστος αὐτῶν ὄλβον εὑρήσειν πολύν, καί με κωτίλλοντα λείως τραχὺν ἐκφανεῖν νόον. χαῦνα μὲν τότ’ ἐφράσαντο, νῦν δέ μοι χολούμενοι λοξὸν ὀφθαλμοῖς ὁρῶσι πάντες ὥστε δήϊον. οὐ χρεών· ἃ μὲν γὰρ εἶπα, σὺν θεοῖσιν ἤνυσα, ἄ⌊λλ⌋α δ’ οὐ μάτην ἔερδον, οὐδέ μοι τυραννίδος ἁ̣ν̣δάν̣ει βίηι τι[..].ε[ι]ν, οὐδὲ πιεί[ρ]ης χθονὸς πατρίδος κακοῖσιν ἐσθλοὺς ἰσομοιρίην ἔχειν. (5) ...Outros, vieram pela rapinagem, tinham esperança de riqueza e acreditavam – cada um deles – que encontrariam muita fortuna e que eu, lisonjeando com brandura, revelaria um espírito rude. Aquela vez, ponderavam coisas frívolas; agora, irritados comigo, de soslaio olham-me todos, como a um inimigo, (5) sem necessidade: Pois as coisas que eu disse, com Deuses cumpri; 192 capítulo 1 – a poética da eunomia as demais, não realizei em vão, e com a violência da tirania não me apraz (?)... [. .], [i]r, nem que do pingue solo pátrio os nobres tenham igual quinhão que os vis. Ademais, este procedimento antes alusivo do que descritivo pode constituir um traço do gênero: como trata de um momento contemporâneo à sua performance,9 poderia parecer redundante ao poeta descrever os pormenores da situação política. Da leitura das fontes pode-se aduzir apenas que Tirteu certamente teria mencionado em seus poemas a ameaça da στάσις que pairava então na sociedade espartana 10, 9 10 Ou, supostamente, não tão recuado como de grandes epopeias como a Ilíada e a Odisseia. (Ver West 1974). Segundo Platão (Leis, 629 b-e), contudo, Tirteu louvara apenas os homens que se destacavam em guerra externa, e nada nos informa sobre como Tirteu poderia ter trabalhado o tema da στάσις: ATENIENSE: “Vem, agora vamos perguntar todos juntos ao poeta aqui, desta maneira: “Ó Tirteu, mais divino dos poetas (pois para nós você parece sábio e nobre, porque louvou com distinção os distintos na guerra), acontece agora que eu, o Clínias e o Cnósios aqui concordamos bastante com você nisso, conforme nosso parecer; mas o que queremos saber com certeza é se estamos falando dos mesmos homens ou não. Conte-nos, pois: você também considera que há, com certeza, dois tipos de guerra, como nós? Ou outra coisa?” Em relação a essa pergunta, penso que até mesmo um homem mais simples do que Tirteu diria a verdade, que há dois tipos, uma que todos chamamos “civil” que de todas as guerras é a mais dura, como dizíamos agora há pouco; a outra espécie de guerra – todos icaremos de acordo, creio – [é aquela em que] conduzimos contra estrangeiros e outros povos, muito mais suave do que a outra.” CLÍNIAS: Sim, como não? AT. Então vamos lá: “Que homens, diante de qual das duas guerras, em louvor você elogiou assim além da conta, enquanto censurou outros? Ao que parece, os [que lutaram] fora. Ao menos, você disse em seus poemas o seguinte, que jamais poderia suportar homens que não ousassem olhar uma matança sangrenta, e que “postando-se perto não atingem os inimigos.” Em vista disso, portanto, nós diríamos: você, ó Tirteu, conforme 193 as elegias de tirteu iliando-se assim a um tema tradicional da poesia elegíaca grega arcaica.11 Um adágio espartano outrora atribuído a Tirteu12, se considerado legitimamente arcaico, coloca Esparta no mesmo patamar de outras poleis arcaicas virtualmente contemporâneas (como a Atenas de Sólon ou Mégara dos poemas teognídeos) e introduz uma tópica comum a esta tradição poética: a ganância e a desmedida do povo são responsáveis por levar uma cidade à ruína. O provérbio encontra-se na Biblioteca Histórica de Diodoro da Sicília e seria um oráculo délico proferido (também) a Licurgo: ὅτι ὁ αὐτὸς Λυκοῦργος ἤνεγκε χρησμὸν ἐκ Δελφῶν περὶ τῆς φιλαργυρίας τὸν ἐν παροιμίας μέρει μνημονευόμενον, ἁ φιλοχρηματία Σπάρταν ὀλεῖ, ἄλλο δὲ οὐδέν. A lembrança de que o próprio Licurgo trouxe de Delfos um oráculo a respeito da avidez por dinheiro está no trecho do adágio: A ganância arruinará Esparta, e nada mais. A tendência entre os estudiosos é situar este provérbio no quinto século, seguindo proposta de Willamowitz (1900, p. 108, n. 1 nosso parecer, elogia sobretudo os homens que se tornam ilustres em guerra externa e estrangeira”. Ele, talvez, airmaria e consentiria com isso? CL. É claro. 11 12 Ver Sólon 4.19 W (ἣ στάσιν ἔμφυλον πόλεμόν θ’ εὕδοντ’ ἐπεγείρει, “Desperta a sedição civil e a dormente guerra”). Xenófanes 1.20-23 W rejeita como comportamento adequado ao simpósio a narração de στάσεις (οὔ τι μάχας διέπειν Τιτήνων οὐδὲ Γιγάντων / οὐδὲ Κενταύρων, πλάσμα<τα> τῶν προτέρων,/ἢ στάσιας σφεδανάς· τοῖς οὐδὲν χρηστὸν ἔνεστιν, “e não devem narrar combates de Titãs, de Gigantes,/de Centauros, icções dos antigos,/ ou ardentes sedições, nelas não há o que preste”). Na edição de Bergk (1882) é o fragmento 3. 194 capítulo 1 – a poética da eunomia apud Van Wees, 1999 p. 27, n. 6). Cartledge (1987, 403), por outro lado, acredita que sua origem é posterior à Guerra do Peloponeso. Van Wees (1999) voltou a propor uma ascendência arcaica para o provérbio. O autor veriica que o adágio é um verso hexamétrico perfeito13 em dialeto dórico, e, como tal, diicilmente seria um produto da sabedoria popular, mas teria sido recolhido dos versos de algum poeta que compôs neste gênero.14 Quais seriam os candidatos? Para Van Wees, Terpandro seria o autor deste verso – poeta que teria usufruído de fama na Esparta do século VII a.C. e cujos poemas em hexâmetro seriam uma mescla entre dórico e jônico. Por conta do dialeto, notadamente dórico por causa do uso de α longo, Van Wees prontamente descarta que os versos possam ter vindo de um oráculo, como airma Diodoro, ou que sejam provenientes da obra de um poeta elegíaco, uma vez que ambos são compostos em dialeto jônico. Há possibilidade de contrapor essa hipótese: um oráculo poderia ser alterado no processo de sua transmissão (Ver Maurizio, 1997, p. 313); a poesia elegíaca 13 14 Embora ele fosse conhecido de outras maneiras. Ver Plutarco, Moralia, 239 f (ἁ φιλοχρηματία Σπάρταν ὀλεέι). Há também um problema de metriicação (o ο escandido como breve antes de χρ em φιλοχρηματία). West, contudo, encontra casos similares (1974, p. 114). Como ocorre amiúde na poesia de Teógnis. O verso 147 da Teognideia (ἐν δὲ δικαιοσύνηι συλλήβδην πᾶσ’ ἀρετή ‘στι, “na justiça está a soma de toda a virtude”), também atribuído a Focílides (fr. 10 W), é um provérbio no tempo de Aristóteles, e também os hexâmetros (vv. 425 e 427) que compõem os versos 425-428. O oposto também parece ser verdadeiro, e Teógnis entrelaça a seus pentâmetros versos que poderiam ser provenientes de outras tradições (vv. 15-18): Μοῦσαι καὶ Χάριτες, κοῦραι Διός, αἵ ποτε Κάδμου / ἐς γάμον ἐλθοῦσαι καλὸν ἀείσατ’ ἔπος,/ ’ὅττι καλόν, φίλον ἐστί· τὸ δ’ οὐ καλὸν οὐ φίλον ἐστί,’ / τοῦτ’ ἔπος ἀθανάτων ἦλθε διὰ στομάτων. (Musas e Graças, ilhas de Zeus, indo outrora / às núpcias de Cadmo o verso cantaram:/ “o belo é amável, o não belo não é”/ este verso partiu de imortais lábios.) 195 as elegias de tirteu também, embora o emprego do jônico seja um elemento da composição genérica, pode apresentar registros em outros dialetos, como demonstra a própria poesia de Tirteu, com alguns doricismos ocasionais, e Sólon, que apresenta alguns resquícios do ático15. Alguns explicam tais resquícios como inépcia dos poetas (Ver De Martino e Vox, 1996); Gentili (1988, p. 230) chega a supor que os poemas de Tirteu foram compostos originalmente em dórico, e sua redação posterior em jônico, mantendo os doricismos apenas nos passos em que a métrica poderia ser comprometida. Noussia (2001, pp. 349-350, apud Irwin 2005, p. 85, n.1) propõe que os aticismos encontrados nas elegias de Sólon poderiam ser um meio desenvolvido pelos poetas elegíacos a im de estabelecer um diálogo entre o local e o pan-helênico. Nesse caso, não seria lícito supor que estes versos pudessem pertencer a Tirteu? A edição de Bergk (1882, p. 316) é a primeira a apresentar a citação como um fragmento de Tirteu. Para o editor, a sua autoria é “verossímil” e o verso pertenceria à Eunomia, precedendo ao dístico <ὧ>δε ἀργυρότοξος ἄναξ ἑκάεργος Ἀπόλλων/ χρυσοκόμης ἔχρη πίονος ἐξ ἀδύτου (“<Assi>m o rei do arco argênteo, Apolo que age à distância,/ de áurea coma, predisse do pingue santuário”), que é a versão de Diodoro para o início do fragmento 4 W (7.12.6). Bach (1831, p. 83) já registra o provérbio em sua obra e também supõe que Diodoro possa ter reunido dois oráculos de diferente procedência como um só, mas é reticente quanto à sua atribuição por causa do uso do dórico em companhia de versos de composição predominantemente jônica. West (1974) prefere 15 Os manuscritos do fr. 4 W de Sólon apresentam Ευνομία, o α longo alterado para η na edição de West (1974, ver p. 77) 196 capítulo 1 – a poética da eunomia omiti-lo de sua edição, não vendo motivo para atribuí-lo a Tirteu (Ver Gerber, 1999, p. 43, n.3). O argumento de Bergk em prol da autoria de Tirteu é que Diodoro misturou inadvertidamente dois oráculos diferentes registrados na obra do poeta. O primeiro, sobre a ganância espartana, trazido por Licurgo, e outro, que corresponde ao Fragmento 4 W, recebido pelos reis Teopompo e Polidoro e cuja autoria de Tirteu é assegurada pelo testemunho de Plutarco. Se o verso fosse comprovadamente de Tirteu, não se estaria diante apenas de uma sociedade espartana idêntica a outras cidades gregas do período arcaico, como também de um poeta que se serve de argumentos semelhantes aos de outros elegíacos gregos arcaicos ao tratar das causas das revoltas civis. Em sua Eunomia, Sólon (fr. 4.1-6 W) defende que a causa da ruína de uma cidade não se deve às deliberações divinas, e sim à ganância e ausência de moderação dos líderes que nela habitam, caracterizada como ὕβρις (hybris): ἡμετέρη δὲ πόλις κατὰ μὲν Διὸς οὔποτ’ ὀλεῖται αἶσαν καὶ μακάρων θ<εῶ>ν φρένας ἀθανάτων· τοίη γὰρ μεγάθυμος ἐπίσκοπος ὀβριμοπάτρη Παλλὰς Ἀθηναίη χεῖρας ὕπερθεν ἔχει· αὐτοὶ δὲ φθείρειν μεγάλην πόλιν ἀφραδίηισιν ἀστοὶ βούλονται χρήμασι πειθόμενοι, δήμου θ’ ἡγεμόνων ἄδικος νόος, οἷσιν ἑτοῖμον ὕβριος ἐκ μεγάλης ἄλγεα πολλὰ παθεῖν· Nossa cidade jamais se perderá, por desígnios de Zeus e vontade dos ditosos Deuses imortais. Uma guardiã tão magnânima, de um poderoso pai, Palas Atena, sua mão tem sobre ela. 197 (5) as elegias de tirteu Mas, eles próprios, os cidadãos, querem com tolices destruir a grande cidade, persuadidos por riquezas. (5) Dos líderes do povo injusta é a mente; a eles muitas dores está reservado sofrer por seu grande excesso. Para Teógnis, a ὕβρις (Hýbris, “desmesura” ou “excesso”) é a única causa para a queda das cidades (1103-1104: ὕβρις καὶ Μάγνητας ἀπώλεσε καὶ Κολοφῶνα/ καὶ Σμύρνην. πάντως, Κύρνε, καὶ ὔμμ’ ἀπολεῖ; Excesso perdeu Magnésia e Colofon,/e Esmirna: decerto, Cirno, vos perderá também). Esta ὕβρις, em outros passos da Teognideia, está associada às injustiças cometidas pelos líderes em vista de poder, proveito pessoal (v. 46: οἰκείων κερδέων εἵνεκα καὶ κράτεος) e ao “lucro que vem em conjunto com o mal público” (v. 50: κέρδεα δημοσίωι σὺν κακῶι ἐρχόμενα). Esse tema constitui uma tradição comum à elegia grega arcaica, devido a seu tom frequentemente moralizante, pondo em causa uma antinomia entre δίκη e ὓβρις - uma vez que a ὓβρις é um “comportamento excessivo que transpõe os limites do que é correto e provoca voluntariamente a injustiça” (Ver Del Grande, 1947, p. 1 apud Ragusa, 2010, p. 123). Não é incomum, portanto, que ὕβρις apareça como um sinônimo virtual de ἀδικία, como ocorre em Hesíodo (Trabalhos e Dias, vv. 215-286).16 Que Tirteu tenha tratado da questão da δίκη em seu poema não nos parece surpreendente, dado o título pelo qual a sua obra icou conhecida na posteridade. A Eunomia é um ideal oligárquico de justiça (Ver Raalaub, 2006, p. 392), uma condição em que 16 Ver McGlew, 1993, p. 59. 198 capítulo 1 – a poética da eunomia o estado é obediente às leis que já foram estabelecidas (Andrewes, 1938, p. 91). Se este é o caso, como veremos, a única discrepância do argumento de Tirteu em comparação com o de outros poetas da tradição é sobre quem recai a responsabilidade destes excessos: enquanto Sólon e estes versos de Teógnis atribuem-no à falta de juízo das oligarquias, Tirteu deve ter mencionado a φιλοχρηματία espartana como uma das consequências da guerra17. A Eunomia de Tirteu Ao que consta, o primeiro autor a intitular assim o poema de Tirteu é Aristóteles. Segundo Andrewes (1938, p. 91),nos tempos do ilósofo Εὐνομία seria palavra de uso popular, com o sentido de “obediência às boas leis” e Aristóteles detém-se em uma deinição mais estrita do termo, que teria para ele apenas o sentido de “obediência a lei”, sejam estas boas ou más (Política, 1294a): οὐκ ἔστι δὲ εὐνομία τὸ εὖ κεῖσθαι τοὺς νόμους, μὴ πείθεσθαι δέ. διὸ μίαν μὲν εὐνομίαν ὑποληπτέον εἶναι τὸ πείθεσθαι τοῖς 17 O que também não deveria constituir nenhuma inovação: na própria Teognideia já se pode notar que uma multiplicidade de opiniões permeava o tema (vv. 53-54, 57-58: Κύρνε, πόλις μὲν ἔθ’ ἥδε πόλις, λαοὶ δὲ δὴ ἄλλοι,/ οἳ πρόσθ’ οὔτε δίκας ἤιδεσαν οὔτε νόμους,[...]/ αὶ νῦν εἰσ’ ἀγαθοί, Πολυπαΐδη· οἱ δὲ πρὶν ἐσθλοί/νῦν δειλοί. (...) “Cirno,esta cidade é ainda uma cidade, mas outro é o povo./ Os que antes não conheciam nem as leis , nem os costumes[...]/agora são os bons, Polipaides, enquanto os que antes eram nobres/ agora são desprezíveis”. Tradução de Viviane M. Ishizuka, 2002). A aparente contradição na Teognideia pode ser entendida, como quer Faraone (2008, p. 79), como produto da catena simposiale que fazia parte do ambiente dos poemas elegíacos. 199 as elegias de tirteu κειμένοις νόμοις, ἑτέραν δὲ τὸ καλῶς κεῖσθαι τοὺς νόμους οἷς ἐμμένουσιν - ἔστι γὰρ πείθεσθαι καὶ κακῶς κειμένοις. Eunomia não é o bom estabelecimento de leis, nem a obediência a isso. Porque, deve-se supor que uma Eunomia é obedecer às leis estabelecidas, e outra coisa é estabelecer bem as leis para que as respeitem – Pois também é Eunomia obedecer a leis que foram mal estabelecidas. Diógenes Laércio (Vida e Opinião dos ilósofos, III.103), ao tratar da obra de Aristóteles, já aponta o sentido multívoco da palavra: Εὐνομία διαιρεῖται εἰς τρία· ἓν μέν, ἐὰν ὦσιν οἱ νόμοι σπουδαῖοι, εὐνομίαν φαμὲν εἶναι· ἕτερον δέ, ἐὰν τοῖς κειμένοις νόμοις ἐμμένωσιν οἱ πολῖται, καὶ τοῦτό φαμεν εὐνομίαν εἶναι· τρίτον δέ, ἐὰν μὴ ὄντων [τῶν] νόμων κατὰ ἔθη καὶ ἐπιτηδεύματα χρηστῶς πολιτεύωνται, καὶ τοῦτο εὐνομίαν προσαγορεύομεν· τῆς εὐνομίας ἄρα ἓν μέν ἐστι νόμους σπουδαίους εἶναι· ἄλλο δέ, ἐὰν τοῖς οὖσι νόμοις ἐμμένωσι· τρίτον δέ, ἐὰν ἔθεσι καὶ ἐπιτηδεύμασι χρηστοῖς πολιτεύωνται. Eunomia é dividida em três partes. Primeira: se as leis forem sérias, airmamos ser Eunomia; segunda: se os cidadãos respeitam as leis estabelecidas, airmamos ser isso também Eunomia, e terceira: se, não havendo leis, exercem bem a cidadania conforme a tradição e os costumes, alegamos ser isso também Eunomia. Assim, Eunomia pode ser: primeiro, leis sérias; segundo, se respeitam as leis que existem; terceiro, se exercem a cidadania por meio de boas tradições e costumes. 200 capítulo 1 – a poética da eunomia É provável que Tirteu não desconhecesse o termo, já que ele é atestado na poesia homérica (Odisseia, 17. 487: ἀνθρώπων ὕβριν τε καὶ εὐνομίην ἐφορῶντες, “a violência humana e a equidade observando”). Homero refere-se à Eunomia como um tipo de comportamento que se opõe à ὕβρις, e é essa a mesma utilização que Sólon parece conferir à palavra no célebre fragmento 4 W (vv. 30-35): ταῦτα διδάξαι θυμὸς Ἀθηναίους με κελεύει, ὡς κακὰ πλεῖστα πόλει Δυσνομίη παρέχει· Εὐνομίη δ’ εὔκοσμα καὶ ἄρτια πάντ’ ἀποφαίνει, καὶ θαμὰ τοῖς ἀδίκοις ἀμφιτίθησι πέδας· τραχέα λειαίνει, παύει κόρον, ὕβριν ἀμαυροῖ, αὑαίνει δ’ ἄτης ἄνθεα φυόμενα Isto o ânimo ordena-me ensinar aos atenienses: Disnomia oferece males máximos à cidade, mas Eunomia revela tudo bem disposto e adequado, e muita vez encadeia os injustos: aplana o áspero, cessa a saciedade, turva a violência, faz murchar a viçosa lor da perdição (30) (35) (30) (35) Hesíodo a apresenta como uma Hora, ilha de Zeus e Têmis (Teogonia, 901-902: “Após desposou Têmis luzente que gerou as horas,/Equidade, Justiça e Paz viçosa18”) e Álcman – poeta espartano do séc.VII a.C – a diz irmã de Persuasão e ilha de Prometeu (fr. 64 Dav.: Εὐνομίας <τε> καὶ Πειθῶς ἀδελφὰ / καὶ Προμαθήας θυγάτηρ, “irmã de Eunomia e Peitó,/e ilha da Presciência” 19). 18 Tradução de Jaa Torrano (2006). 19 Tradução de Giuliana Ragusa (2010). 201 as elegias de tirteu Além disso, autores que trataram do período de dissensão política da Esparta arcaica recorrem frequentemente ao termo. Todos parecem registrar um período de guerras civis e anomia que permeava a antiga civilização espartana: Heródoto (Histórias I.6465) menciona que Esparta tinha as piores leis de toda a Grécia, mas que passaram a ter Eunomia graças ao legislador Licurgo. Plutarco (Licurgo, 30.2) também informa que Licurgo conferira Eunomia e justiça à cidade20. Tucídides (História da Guerra do Peloponeso, I. 18.1) resume a história de Esparta em um parágrafo: embora a região da Lacedemônia tivesse sofrido com as mais longas guerras civis conhecidas (στασίασα), ela sempre esteve livre da tirania pois vivia em boa ordem (εὐνομεῖσθαι). É interessante notar aqui que Tucídides contrapõe Eunomia à tirania: o governo garantido pela lei é oposto àquele no qual um só homem governa. A sugestão de Andrewes (1938, pp. 93-95) é que essa contraposição é fortuita: deve-se antes ao fato de que o surgimento da tirania signiicaria a interrupção da constituição estabelecida. Nesses termos, não há razão para desacreditar que já no século VII a.C. houvesse um poema de Tirteu conhecido como Eunomia, mas se o próprio poeta empregou o termo, ele ainda não devia conter todos os sentidos atestados por Diógenes Laércio e Aristóteles, mas simplesmente “boa ordem”, “equidade” ou ainda “amor à ordem” – à mesma maneira de Homero e Hesíodo. 21 20 21 Curiosamente, ao discutir uma possível genealogia de Licurgo, Plutarco o associa a uma igura de nome Êunomo (Εὓνομος). Ver Prato, 1968, p. 6. 202 capítulo 1 – a poética da eunomia O fragmento 2 W Antes de 1971, apenas quatro versos deste fragmento da Eunomia eram conhecidos, tendo sido conservados por Estrabão (Geograia, 8.4.10). O autor recorre aos versos de Tirteu com o ito de comprovar a nacionalidade espartana do poeta, veriicando o uso da primeira pessoa do plural (ἀφικόμεθα, aphikómetha, “chegamos”, v. 12) nos dísticos em questão: καὶ γὰρ εἶναί φησιν ἐκεῖθεν ἐν τῇ ἐλεγείᾳ ἣν ἐπιγράφουσιν Εὐνομίαν· αὐτὸς γὰρ Κρονίων, καλλιστεφάνου πόσις Ἥρης Ζεὺς Ἡρακλείδαις τήνδε δέδωκε πόλιν· οἷσιν ἅμα προλιπόντες Ἐρινεὸν ἠνεμόεντα, εὐρεῖαν Πέλοπος νῆσον ἀφικόμεθα. (15) ὥστ’ ἢ ταῦτα ἠκύρωται τὰ ἐλεγεῖα, ἢ Φιλοχόρῳ ἀπιστητέον τῷ φήσαντι Ἀθηναῖόν τε καὶ Ἀφιδναῖον, καὶ Καλλισθένει καὶ ἄλλοις πλείοσι τοῖς εἰποῦσιν ἐξ Ἀθηνῶν ἀφικέσθαι δεηθέντων Λακεδαιμονίων κατὰ χρησμόν, ὃς ἐπέταττε παρ’ Ἀθηναίων λαβεῖν ἡγεμόνα. De fato, dizem que ele é dali (sc. da Lacedemônia), na elegia que intitularam como Eunomia: Pois o Crônida em pessoa, esposo de Hera bem-coroada Zeus, deu aos Heraclidas esta cidade: junto deles, deixando Eríneo batida pelos ventos, à vasta ilha de Pélope chegamos. (15) 203 as elegias de tirteu De maneira que, ou esta elegia é espúria, ou deve-se desacreditar Filocoro (328 F 215), que o declara ateniense e de Aidna, e também Calístenes(124 F 24) e a maioria restante, que dizem que ele veio de Atenas porque os Lacedemônios precisavam dele, segundo o oráculo que lhes ordenou obter um comandante junto aos atenienses. Analisando estes versos, Francke (1816, p. 134 apud Bach p. 82) julgou que eles faziam parte de uma exortação, mais precisamente após o dístico inicial do fragmento 11 W (“Mas porque sois da estirpe do invencível Héracles,/ coragem, Zeus ainda não virou o rosto”), hipótese já rejeitada por Bach (1831, p. 83) e por todos os editores subsequentes, em favor da unidade dos versos citados por Estrabão.22 Prato (1968, p. 61), seguindo a opinião comum, considerava que este poema muito provavelmente dava início à Eunomia. A publicação do Papiro Oxirrinco 2824, de ins do século I ou início do século II d.C tornou estas suposições irrelevantes ao acrescentar novos versos à passagem recolhida por Estrabão: ]...υ̣ι̣..[ . ]..ε̣ θ̣εοπρο[π . ]..φ̣..ενακ[ . ].μ̣α̣ντει̣ασ̣αν̣[ . . . 22 ]τ̣ε̣ιδε̣τ̣αθ̣ἡ̣.[ ]π̣άντ’ εἰδεν.[ ἄ]ν̣δρα̣ς ἀνιστ[αμεν (5) Visto que no século XIX considerava-se que a Eunomia consistia de uma coletânea de elegias cívicas, e não um longo poema narrativo, como se argumenta hoje (Ver Prato, 1968, p. 9). 204 capítulo 1 – a poética da eunomia . . ]ι̣[.]ηγ̣αλ̣α[ ]..[...]θ̣ε̣οῖσι φί[λ . ]ω̣ πε̣ι̣θ̣ώμε̣θα κ[ . ]α̣ν̣ ἐ̣γ̣γύτεροι γ̣έν[εος· αὐτὸς γὰρ Κρονίων⌋ καλλιστεφάνου ⌊πόσις Ἥρης Ζεὺς Ἡρακλείδαις⌋ ἄστυ δέδωκε τό̣⌊δε, οἷσιν ἅμα προλιπ⌋όντες Ἐρινεὸν ⌊ἠνεμόεντα εὐρεῖαν Πέλοπ⌋ο⌊ς⌋ νῆσον ἀφικόμ⌊εθα [ ]γ̣λ̣αυκώπ[ι]δος[ ] (?) [ ] (?) profeci[as ] (?) [ ] oráculos [ ] (?) [ (5) a tudo viram. [ ] varões (ac.) insurgimos (?) [ ] (?) [ ]...[...] aos Deuses amáv[ ] (?) obedeçamos (?) [ (10) ] mais próximos da linh[agem Pois o Crônida em pessoa, esposo de Hera bem-coroada, Zeus, deu aos Heraclidas esta cidade: junto deles, deixando Eríneo batida pelos ventos, à vasta ilha de Pélope chegamos (15) ]de olhos glaucos [ Embora muito lacunares, os novos versos possibilitaram a formulação de hipóteses mais consistentes sobre o poema. A 205 as elegias de tirteu primeira palavra inteligível é θεοπροπίας (theopropías, “profecias”, fr. 2.2 W); Em seguida lê-se μ̣α̣ντει̣ας (manteias, “oráculos” 2.4), e nos próximos versos, θεοῖσι φί[λ e ἐ̣γ̣γύτεροι γ̣έν[εος. Para West (1974, p. 184), essas lacunas pareceram suicientes para airmar que o poeta alude aqui a oráculos e aos reis de Esparta – eles próprios “amados por Deuses” e também os mais próximos da raça dos imortais. Além disso, a menção a oráculos e profecias talvez ligasse esse fragmento ao 4 W, sugerindo que ambos pudessem fazer parte de um mesmo poema, como já se supunha anteriormente devido à temática cívica comum a ambas as elegias, em oposição às outras de conteúdo bélico (Ver Prato, 1968, p. 61.). O que restou do verso 10 foi um subjuntivo exortativo na primeira pessoa do plural, πειθώμεθα (peithometha, “obedeçamos”), que encontra paralelos em outras elegias marciais (10.13-14 W, e 19.11-12, onde se utiliza o futuro indicativo) e pode indicar tanto um discurso feito por uma personagem como a voz do próprio Eu elegíaco. A interpretação proposta por West (1974, p. 184) para estes versos é a mais aceita: no poema, Tirteu exortaria seus interlocutores a obedecerem aos reis (v. 10), cuja autoridade deve-se à estima dos Deuses (v. 9) e ao seu parentesco divino (v. 11). Uma prova dessa ancestralidade é que a região do Peloponeso, para onde os reis conduziram o povo (vv. 14-15), é um presente de próprio Zeus (vv. 12-13).23 23 West (1974, p. 184): “Os versos [do fr. 4 W] poderiam situar-se logo após o fr. 2 W, onde a referência aos oráculos é seguida depois de alguns versos pela exortação: “Obedeçamos [aos reis; pois eles] estão próximos [dos Deuses], uma vez que Zeus em pessoa concedeu esta cidade aos ilhos de Héracles”. Ver Osborne (1996, p. 36) para o contexto histórico. 206 capítulo 1 – a poética da eunomia Pela sequência dos versos 2-7, não seria estranho supor que o poeta estivesse na verdade exortando guerreiros a uma ação bélica anunciada por um oráculo ou então mencionando brevemente alguma batalha antiga dos Heraclidas. O verso 7 (ἄ]ν̣δρα̣ς ἀνιστ[αμεν ),embora muito daniicado, guarda semelhanças com passagens de elegias exortativas de Tirteu, nas quais um verbo de mesma raiz, ἵστημι, é utilizado para determinar a postura ideal de um varão na guerra, diante de seu inimigo. Quase sempre a ideia é complementada por verbos que indicam movimento (11.29 W, ἲων; em 12.12 W, ὀρέγοιτο). Nesses termos, a ideia de que ἀνίσταμεν pudesse ter aqui algum sentido de erguer-se para lutar – já atestado em outros textos24 – torna-se mais atraente e pode ser reforçada pelo uso de ἄ]ν̣δρα̣ς, termo que signiica na poesia de Tirteu exclusivamente o homem envolvido em ação militar, i.é, o guerreiro.25 Os versos citados por Estrabão (vv. 12-15) deviam tratar de um episódio da pré-história de Esparta, o chamado “Retorno dos Heraclidas” (ver Prato, 1968). A história começa com a luta entre Héracles e os ilhos de Hipocoonte, que usurparam o trono de Esparta. Vitorioso, o primeiro retorna a cidade ao seu legítimo rei, Tíndaro. Com a morte deste o trono deveria passar aos descendentes de Héracles, mas em vez disso quem o herda é 24 25 LSJ “stand up [to ight against]: Il.23.635; Od.18.334. Por exemplo, 10. 18 W, onde este sentido parece bem marcado: “não amai vida, em luta com varões” [ἄνδρασι] e, especialmente, 12. 13-14 W: “Tal virtude, tal prêmio, entre homens [ἀνθρώποισιν] é o melhor/ e mais belo que há para um jovem varão[ἂνδρα] conquistar”, que segundo Prato (1968, p.130) constitui o primeiro registro em nossa literatura supérstite de uma distinção claramente marcada entre ἂνθρωπος (ánthropos), “humano” e ἀνήρ, (anér) “varão”. 207 as elegias de tirteu Menelau, e em seguida Orestes, que reinaria sobre as duas coroas Atridas. Os Heraclidas retornariam em conjunto com os Dórios, povo que habitava a Grécia Central, para reclamar seu direito real apenas durante o reinado de Tisâmeno, ilho de Orestes (Ver Naissi, 2009, p. 118). 26 A relação com o mito é comprovada pela menção à “Eríneo batida por ventos”27 no verso 14. Trata-se de uma das quatro cidades da tetrápole dórica, na Grécia Central, e não uma comunidade ática próxima a Elêusis, como postularam alguns estudiosos que defendiam a procedência ática de Tirteu (Como, por exemplo, Thiersch, 1826, p. 593 apud Bach, 1831, p. 80). Estrabão (Geograia, 9.4.10) é quem dá a localização exata da cidade e informa sobre o mito do Retorno: τοῖς δὲ Λοκροῖς τοῖς μὲν ἑσπερίοις συνεχεῖς εἰσιν Αἰτωλοί, τοῖς δ᾽ Ἐπικνημιδίοις Αἰνιᾶνες συνεχεῖς οἱ τὴν Οἴτην ἔχοντες, καὶ μέσοι Δωριεῖς. οὗτοι μὲν οὖν εἰσιν οἱ τὴν τετράπολιν οἰκήσαντες, ἥν φασιν εἶναι μητρόπολιν τῶν ἁπάντων Δωριέων, πόλεις δ᾽ ἔσχον Ἐρινεὸν Βοῖον Πίνδον Κυτίνιον: ὑπέρκειται δ᾽ ἡ Πίνδος τοῦ Ἐρινεοῦ, παραρρεῖ δ᾽ αὐτὴν ὁμώνυμος ποταμὸς ἐμβάλλων εἰς τὸν Κηφισσὸν οὐ πολὺ τῆς Λιλαίας ἄπωθεν: τινὲς δ᾽ Ἀκύφαντα λέγουσι τὴν Πίνδον. τούτων ὁ βασιλεὺς Αἰγίμιος ἐκπεσὼν τῆς ἀρχῆς κατήχθη πάλιν, ὡς ἱστοροῦσιν, ὑφ᾽ Ἡρακλέους: ἀπεμνημόνευσεν οὖν αὐτῷ τὴν χάριν τελευτήσαντι 26 27 Para detalhes do mito dos Hipocoontidas (e a tradução das fontes donde o mito foi extraído) ver Ragusa, 2010, pp. 105-111. O epíteto ἠνεμόεντα, por sua vez, é tradicional, já presente em Homero não para designar a cidade da tetrápole dórica mas a própria cidadela troiana e, curiosamente, uma árvore que recebe o mesmo nome (Il.22.145: “passaram as guaritas e a igueira [ἐρινέον] ao vento”, tradução de Haroldo de Campos (2002). 208 capítulo 1 – a poética da eunomia περὶ τὴν Οἴτην: Ὕλλον γὰρ εἰσεποιήσατο τὸν πρεσβύτατον τῶν ἐκείνου παίδων, καὶ διεδέξατο ἐκεῖνος τὴν ἀρχὴν καὶ οἱ ἀπόγονοι. ἐντεῦθεν ὁρμηθεῖσι τοῖς Ἡρακλείδαις ὑπῆρξεν ἡ εἰς Πελοπόννησον κάθοδος. Contíguos aos Lócrios ocidentais estão os Etólios, enquanto os Enianos, que habitam o Eta, [são] contíguos aos [Lócrios] Epicnemídios; no meio [estão] os Dórios. Esses Dórios são os que habitam a Tetrápole, a qual airmam ser a capital de todos os Dórios. Suas cidades eram Eríneo, Beos, Pindo e Citínio. Pindo estava localizada acima de Eríneo, e ao seu lado corre o rio homônimo, que deságua no Ceiso, não muito longe de Lileia. Alguns chamam o rio Pindo de Acifante. O rei desses [Dórios], Egímio, foi derrubado e depois reconduzido novamente ao poder, como informam, por Héracles. [Egímio] relembrou o favor quando da morte de Héracles no Eta: pois adotou Hilo, o mais velho dos ilhos de Héracles, e ele e seus descendentes o sucederam no poder. A partir daí, teve início o retorno dos Heraclidas, que partiram para o Peloponeso. Prato (1968, p. 61) parece estar certo quando diz que o verso 12 marcaria o início de uma nova composição, uma transição para algo novo que será narrado. Marca este novo início a ênfase na igura de Zeus: o verso inicia-se com um molosso (αὐτὸς γὰρ), um dos recursos preferidos de Tirteu (Adkins, 1977, p. 185) que imprime não apenas solenidade como também, nesse caso, chama a atenção dos ouvintes para o novo tema que virá. Após a cesura, Zeus é qualiicado por sua associação com Hera pelo uso do epíteto tradicional πόσις Ἥρης (pósis Héres, “esposo de Hera”). Na Ilíada e na Odisseia este epíteto aparece, por questões métricas, acompanhado por ἐρίγδουπος (erígdoupos, 209 as elegias de tirteu “trovejante”), referindo-se a Zeus (Il. 10.329, 13.154, 16.88; Od. 8,465, 15.112, 15.180) e raramente por um adjetivo relativo a Hera, ἠϋκόμοιο (eukómoio, “de lindos cabelos”, Il. 10.5)28. Tirteu opta por realçar a representação da Deusa referindo-se a ela com um epíteto mais incomum e vívido, ausente na Ilíada e na Odisseia, mas presente na tradição épica para designar Afrodite (na célebre inscrição da Taça de Nestor) e Deméter (Hino a Deméter, v. 251). Contudo, mesmo que na tradição épica ser referido como “Esposo de Hera” seja um motivo de honra para Zeus, poderia soar estranho à primeira vista que o poeta tenha enfatizado e escolhido justamente este epíteto para designar Zeus em um poema que menciona os descendentes de Héracles, como já notou antes a maioria dos comentadores, como Defradas (1962, p. 16), Prato (1968, p. 61), Vox e De Martino (1996, p. 548). Todos também informam sobre a amplitude do culto à Hera na Lacônia. Desde a antiguidade, Esparta estava entre as três cidades mais caras à Deusa (Il. 4.51-52: ἤτοι ἐμοὶ τρεῖς μὲν πολὺ φίλταταί εἰσι πόληες / Ἄργός τε Σπάρτη τε καὶ εὐρυάγυια Μυκήνη· “Sim três são minhas cidades, as mais queridas:/ Argos e Esparta e Micenas de amplas vias”). Na própria poesia de Tirteu, Hera é denominada αἰδοίης (aidoiés, “respeitável”, 23. 17 W); Pausânias já informa sobre várias localidades dedicadas a Hera na antiga Lacônia (Descrição da Grécia, 3.18 ss.) e que o próprio Héracles teria fundado um templo a ela, em virtude de sua não intervenção durante a luta contra os Hipocoontidas (Descrição da Grécia, 3.15.9): 28 Talvez por analogia ao muito mais frequente Ἑλένης πόσις ἠϋκόμοιο, epíteto de Páris (Il.3.329, 7.355, 8.82, 11.369, 11.505). 210 capítulo 1 – a poética da eunomia μόνοις δὲ Ἑλλήνων Λακεδαιμονίοις καθέστηκεν Ἥραν ἐπονομάζειν Αἰγοφάγον καὶ αἶγας τῇ θεῷ θύειν. Ἡρακλέα δὲ λέγουσιν ἱδρύσασθαι τὸ ἱερὸν καὶ αἶγας θῦσαι πρῶτον, ὅτι μαχομένῳ οἱ πρὸς Ἱπποκόωντα καὶ τοὺς παῖδας οὐδὲν ἐκ τῆς Ἥρας ἀπήντησεν ἐμπόδιον, ὥσπερ γε ἐπὶ τῶν ἄλλων ἐδόξαζεν ἐναντιοῦσθαί οἱ τὴν θεόν: αἶγας δὲ αὐτὸν θῦσαί φασιν ἱερείων ἀπορήσαντα ἀλλοίων. Dos Helenos, apenas entre os Lacedemônios atribui-se à Hera o epônimo “Come-cabra” e sacriicam cabras à Deusa. Conta-se que Héracles fundou um templo e foi o primeiro a sacriicar cabras, porque, enquanto lutava contra Hipocoonte e seus ilhos, não encontrou nenhum obstáculo de Hera, mesmo que em outras ocasiões pensasse que a Deusa se lhe opunha. Diz-se que ele sacriicou cabras, por carecer de outras opções de sacrifício. Se no verso 12 era Hera quem recebia o maior destaque do poeta, no seguinte é Zeus, situado em posição inicial, e Ἡρακλείδαις, em uma sequência de longas que ocupa todo o primeiro hemistíquio do pentâmetro, em procedimento similar ao do verso anterior. Nesse sentido, é curioso notar que o poeta parece interessado em assinalar, iniciando cada verso com espondeus, uma marcha descendente que parte do meio divino para a realidade dos mortais; no verso 12, igura “o Crônida em pessoa” αὐτὸς γὰρ Κρονίων); o próximo verso apresenta os reis semideuses (Ἡρακλείδαις); por im, os mortais são prenunciados no verso 14 pela anástrofe (οἷσιν ἅμα) e, no seguinte, o sujeito da oração é revelado como a própria audiência do poema, personiicada na realidade da performance (ἀφικόμεθα). Este recurso que confunde um passado mítico distante a uma realidade atual da performance é também veriicável em outros 211 as elegias de tirteu registros e constitui-se como um elemento tradicional de toda a literatura grega arcaica e clássica.29 Efeitos parecidos ao engendrado por Tirteu parecem especialmente recorrentes em hinos literários gregos; Ver, como exemplo, a leitura do Ditirambo 17 de Baquílides em Macedo (2010, pp. 265-266), onde se mostra que o clamor da jovem tripulação de Teseu subitamente transforma-se no Peã entoado pelo coro em seu contexto de performance. No caso da elegia de Tirteu, o poeta preocupa-se em forjar uma conexão entre passado, presente e futuro, e deinir “um grupo coeso de todos os espartanos, vivos ou mortos” (Stehle, 1997, p. 52). Em um passo surpreendentemente similar ao poema de Tirteu – que poderia apontar para uma tópica comum ao período – Mimnermo (fr. 9 W) também correlaciona a si mesmo e sua audiência aos colonizadores de Cólofon, provenientes de Pilos:30 Αἰπὺ < > τε Πύλον Νηλήϊον ἄστυ λιπόντες ἱμερτὴν Ἀσίην νηυσὶν ἀφικόμεθα, ἐς δ’ ἐρατὴν Κολοφῶνα βίην ὑπέροπλον ἔχοντες ἑζόμεθ’, ἀργαλέης ὕβριος ἡγεμόνες· κεῖθεν †διαστήεντος ἀπορνύμενοι ποταμοῖο 29 São exemplos na elegia grega arcaica Calino 2, 2a, o novo fragmento de Arquíloco (“Télefo”), Mimnermo 11-14 W, Simônides 11 W. 30 Embora a temática do poema pareça mais adequada à Esmirneida, a fonte (Estrabão, Geograia, 14.1.4: Por im, expulsos pelos Eólios, fugiram para Cólofon. Depois disso, atacaram daquela região e reconquistaram a sua terra. Exatamente como Mimnermo declara em Nannó, depois de mencionar que Esmirna sempre foi objeto de conlito) atribui os versos à Nannó, poemas menores, que, por consequência, eram apresentados no ambiente do simpósio. Seria um erro cometido por Estrabão, ou a passagem, originária da Esmirneida, teria sido reformulada para uma performance simpótica? (Bowie, 2009, p. 113 n.11). A segunda opção é interessante, caso se considere que o poeta trabalha aqui com termos do universo erótico para deinir Cólofon e Esmirna (Bowie, op.cit.). O mesmo uso é veriicado em Tirteu 4 W, infra. 212 capítulo 1 – a poética da eunomia θεῶν βουλῆι Σμύρνην εἵλομεν Αἰολίδα. (?)...deixando Pilos, a cidade de Neleu, à Ásia adorável em navios chegamos e na amável Cólofon com soberba força nos assentamos, condutores da dura violência: Daí, atacando desde o rio [?] Por querer dos Deuses conquistamos Esmirna Eólia. Bowie (1986, p. 31) considerou que o πειθώμεθα do verso 10 vem do discurso de um personagem, e admitiu a possibilidade de o ἀφικόμεθα do verso 15 também ser parte deste mesmo discurso, mas, visto que o próprio Estrabão provavelmente não lia o poema dessa maneira, Bowie (2001, p. 47) reformula a sua hipótese e airma que a Eunomia poderia ter sido um poema predominantemente exortativo com breves passagens narrativas, de modo “funcionalmente similar aos elementos narrativos nos discursos de personagens na Ilíada”. Se Faraone (2008, p. 156) está certo em suas hipóteses sobre a estrutura da poesia elegíaca grega arcaica, poderíamos estar de fato diante de um poema exortativo com partes narrativas, em que passagens exortativas (como provavelmente seriam os vv. 2-11) alternam-se com trechos narrativos (v. 12 ss.). Note-se que sugestão parecida à de Bowie já está no Studies in Elegy and Iambus de Martin West (1974, p. 14), que alude a uma possível identidade entre a Eunomia e outros poemas comprovadamente exortativos, como a Salamina de Sólon (fr. 1-3 W) – uma identidade que não é só de tema, mas também de ocasião de performance 31. 31 “Se foi assim, [a elegia narrativa] é semelhante à elegia marcial ou político -exortativa e pode ser imaginada cantada em circunstâncias semelhantes” (1974, p. 14). 213 as elegias de tirteu Estratégias comunicativas no fr. 2 W Poderíamos, assim, entender o simpósio como um ambiente adequado para a apresentação deste canto? Uma vez que não é possível precisar a extensão exata da Eunomia32, é profícuo veriicar se as estratégias comunicativas presentes no poema podem fornecer algum indício das circunstâncias em que o fragmento 2 W poderia ter sido apresentado. D’ Alessio (2009, pp. 151-156) assinala que esta estratégia consiste no emprego da primeira pessoa do plural: ao empregá-la, o poeta torna possível que qualquer indivíduo da comunidade espartana possa se identiicar na voz poética. Tirteu estaria, assim, na contramão de outros poetas gregos arcaicos que tinham o simpósio como horizonte, visto que estes se ocupavam de, muitas vezes, enfatizar o seu próprio Eu poético33 e retratar uma visão de mundo que era compartilhada apenas pelo grupo que participava do simpósio.34 Portanto, segundo o autor, não haveria a necessidade que alguém incorporasse a voz de “Tirteu” em suas performances 35, pois o próprio poeta já personiica a comunidade espartana 32 33 34 35 Embora a presença de um título – que já era conhecido por Aristóteles – possa indicar que se tratava de um poema razoavelmente longo. Arquíloco, fr. 1 W ( “sou servo do senhor Eniálio e/ das musas o amável dom conheço”, Tradução de Paula da Cunha Corrêa, 2009) Teógnis (vv. 19-23, “Cirno, que o selo de minha habilidade poética seja colocado sobre/ estes versos, e o roubo deles sempre será notado./ Ninguém trocará o pior pelo bom, que está à mão/ Assim, todo homem dirá: “São os versos de Teógnis/ de Megara”, célebre entre todos os homens”. tradução de Viviane M. Ishizuka,2002), Sólon (fr. 1W: “Eu mesmo, um arauto, vim da adorável Salamina/ e um adorno da palavra, o canto, anteponho à fala”). Um exemplo pode ser o fragmento 69 V de Alceu. Com em alguns poemas de Safo (1.19-20 “Quem, ó Safo, te maltrata?” – trad. Giuliana Ragusa, 2005, grifos meus), Hipônax (34: Pluto, Deus da riqueza 214 capítulo 1 – a poética da eunomia em suas elegias; O autor justiica que o uso de Ἡρακλείδαις (v. 13) remete a essa coletividade, que diz respeito a todos os espartanos, e não apenas a um grupo que clama ancestralidade divina. Assim, a poesia de Tirteu está em oposição à poesia simpótica aristocrática, pois não apresenta a linguagem sectária das heterias, mas antes coloca em cena todo o povo de Esparta. As divisões que a elegia tirtaica engendra são apenas de funções militares que devem ser desempenhadas por cada grupo. Desse modo, D’Alessio conclui que os poemas de Tirteu encontrariam seu espaço ideal no peculiar banquete comum espartano, a syssitia. Há espaço para discordâncias da hipótese de D’Alessio: uma delas é que a maioria dos estudiosos estabelece que o início desta instituição espartana se deu em meados do século VI a.C., anos depois do período de atividade poética de Tirteu, e que antes disso, os simpósios em Esparta não apresentavam grandes diferenças com os de outras poleis gregas (Irwin, 2005, p. 32, n. 40). Ainda que se possa considerar a syssitia como espaço de reperformance privilegiado para a poesia de Tirteu (como de fato deve ter sido), não se pode airmar com exatidão que o poema difundia um ideal de comunidade, uma vez que mesmo no interior da comunidade de homoioi que integrava a syssitia havia distinções que se baseavam em ideais aristocráticos como riqueza, nascimento, mérito e idade (Hodkinson, 2002, p. 108). É correta a sugestão de que a única divisão encontrada em Tirteu é de grupos militares, mas esta divisão na verdade promove um componente aristocrático: (porque é cego demais)/nunca me veio em casa e disse: “Hipônax,/dou-te trinta minas de prata/ e muitas outras coisas. – pois é um desgraçado no coração”) e Alceu (fr. 129 e 130 V). 215 as elegias de tirteu apenas os mais abastados podiam pagar pela panóplia, restando a outros o uso de armas mais rudimentares36. Nesse sentido, de maneira similar a Andrew D. Morrison (2007, p. 57), que analisou os narradores na poesia grega arcaica, pode-se chegar à conclusão de que o uso de uma voz poética bem delimitada, e, por assim dizer, autorreferencial (como ocorre em elegistas como Sólon ou Teógnis) ou o uso de um Eu coletivo como aqueles dos poemas de Tirteu é uma questão de estilo ou preferência particular de cada poeta – e não necessariamente de diferentes circunstâncias de performance. É comum, também, como observa Rösler (1990, p. 234), que uma rememoração no espaço do simpósio esteja relacionada à comunidade, tornando nebulosos os limites do “eu” e do “nós” – uma vez que esta é uma festividade que deine identidades de um grupo que se reúne por ainidades comuns (Rösler, 1990, p. 233). E, como é comum no restante da poesia de Tirteu, tais ainidades se manifestam a partir da subordinação do povo às figuras aristocráticas – aqui representadas por Heraclidas – que assumem o papel de mantenedores da polis. Os versos 15 e 16 sugerem esta leitura: neles, o poeta deixa implícito que o povo (no qual ele se inclui, talvez por intenções retóricas) obteve a cidade graças aos Heraclidas, que para lá o conduziu. O fragmento 4 W O texto deinitivo desta elegia provém da reunião de duas passagens, presentes no Licurgo de Plutarco e na Excerpta Vaticana da obra de Diodoro da Sicília. 36 Ver Van Wees 1999, Irwin, 2005, e os comentários ao fr. 11.34-38 à frente. 216 capítulo 1 – a poética da eunomia O primeiro atribui os versos à Tirteu, e informa um artifício político utilizado pelos reis Teopompo e Polidoro para conter o povo e garantir a supremacia de suas decisões. Segundo Plutarco, os dois reis izeram um acréscimo à Retra original – o oráculo recebido por Licurgo – que lhes garantia o poder de vetar decisões e evitava que o povo alterasse as leis propostas por eles (Plutarco, Vida de Licurgo, 6.4): ὕστερον μέντοι τῶν πολλῶν ἀφαιρέσει καὶ προσθέσει τὰς γνώμας διαστρεφόντων καὶ παραβιαζομένων, Πολύδωρος καὶ Θεόπομπος οἱ βασιλεῖς τάδε τῇ ῥήτρᾳ παρενέγραψαν· “Αἰ δὲ σκολιὰν ὁ δᾶμος ἒροιτο, τοὺς πρεσβυγενέας καὶ ἀρχαγέτας ἀποστατῆρας εἶμεν” Depois, no entanto, porque muitos distorciam e forçavam as máximas, com subtrações e acréscimos, os reis Polidoro e Teopompo adicionaram à Retra o seguinte: “Se o povo falar de modo oblíquo, nós - anciãos e príncipes – seremos divergentes. Ainda de acordo com Plutarco, os mesmos reis izeram o povo crer que esse acréscimo fora uma prescrição divina, proferida pelo oráculo de Delfos e que desde sempre pertenceu à Retra. O testemunho de Plutarco para o fato são os versos de Tirteu correspondentes aos versos 1-6 do fragmento 4 W: ... ἔπεισαν δὲ καὶ αὐτοὶ τὴν πόλιν ὡς τοῦ θεοῦ ταῦτα προστάσσοντος, ὥς που Τυρταῖος ἐπιμέμνηται διὰ τούτων· Φοίβου ἀκούσαντες Πυθωνόθεν οἴκαδ’ ἔνεικαν μαντείας τε θεοῦ καὶ τελέεντ’ ἔπεα· ἄρχειν μὲν βουλῆς θεοτιμήτους βασιλῆας, οἷσι μέλει Σπάρτης ἱμερόεσσα πόλις, 217 as elegias de tirteu πρεσβύτας τε γέροντας· ἔπειτα δὲ δημότας ἄνδρας εὐθείαις ῥήτραις ἀνταπαμειβομένους (5) Eles próprios também persuadiram a cidade de que era o Deus quem prescrevia estas palavras, como Tirteu aparentemente relembra por meio destes versos: Febo escutaram, e de Pito ao lar levaram as profecias do Deus e as palavras certas: que dirijam o concílio os reis honrados por Deuses, a quem importa a amável cidade de Esparta, e os veneráveis anciãos: depois homens do povo, por sua vez, respondendo às retas sentenças (5) Plutarco informa que os versos mencionados por Tirteu são parte de um oráculo trazido de Delfos por Polidoro e Teopompo, mas ao mesmo tempo parece creditar a um oráculo mais antigo, trazido por Licurgo (6.1-3, supra), a formulação inicial da Grande Retra. Nesse sentido, os dois reis teriam acrescentado à Retra apenas a cláusula “αἰ δὲ σκολιὰν ὁ δᾶμος ἕροιτο, τοὺς πρεσβυγενέας καὶ ἀρχαγέτας ἀποστατῆρας εἶμεν”. Para West (1974, p. 185), a leitura de Plutarco não parece satisfatória: o editor considera difícil que um acréscimo posterior pudesse ser registrado e relembrado posteriormente como parte do oráculo original. Sua hipótese é de que Tirteu cita o oráculo original de modo a justiicar a nova cláusula inserida pelos reis. Já Diodoro da Sícilia oferece uma redação ampliada, entretanto divergente. O manuscrito que traz a citação apresenta o oráculo em scripta continua, com cada dístico ocupando cinco linhas do manuscrito original. Uma nota lateral acrescenta que se 218 capítulo 1 – a poética da eunomia trata do oráculo recebido por Licurgo em Delfos, e não menciona o nome de Tirteu 37. Os versos 3 a 6 citados por Plutarco reaparecem com pequenas variações38 na versão de Diodoro, mas antes e depois são citados trechos ausentes em Plutarco. Os versos 1-2 de Diodoro falam de Apolo, atribuindo-lhe uma profusão de epítetos que levou muitos estudiosos a desacreditar a autenticidade desses versos. Os versos 7 a 9 dão sequência aos ordenamentos do oráculo e o último verso conclui o poema com uma composição anelar que retoma o nome do Deus de Delfos. Poucos duvidaram da autenticidade destes dísticos inais, vendo neles certa discrepância de estilo e língua típicos do período arcaico e do ambiente lacônico (Prato, 1968, p. 69) ou uma contradição explícita do conteúdo apresentado nos versos citados por Plutarco: enquanto nos versos 1 a 6 retratar-se-ia o povo submisso às ordens dos reis e dos anciãos, nos versos 7 a 10 ele é retratado com autoridade sobre esses (Andrewes, 1938, p. 98). Citamos abaixo a versão de Diodoro (= fr. 14 G-P), editada por Boissevain (1906) com as correções e alterações propostas por Wade-Gery (1944a): [Ἡ Πυθία ἔχρησε τῷ Λυκούργῳ περὶ τῶν πολιτικῶν οὕτως] <ὧ>δε39 ἀργυρότοξος ἄναξ ἑκάεργος Ἀπόλλων χρυσοκόμης ἔχρη πίονος ἐξ ἀδύτου, 37 Ver Wade-Gery, 1944, p. 3. 38 πρεσβυγενεῖς em vez de πρεσβύτας, no verso 3. 39 Dindorf (1828): δὴ Boissevain (1906): δὲ 219 as elegias de tirteu ἄρχειν μὲν βουλῆς40 θεοτιμήτους βασιλῆας, οἷσι μέλει Σπάρτης ἱμερόεσσα41 πόλις, πρεσβυγενεῖς δὲ γέροντας· ἔπειτα δὲ δημότας ἄνδρας εὐθείαις ῥήτραις42 ἀνταπαμειβομένους μυθεῖσθαί δὲ τὰ καλὰ καὶ ἔρδειν πάντα δίκαια, μηδέτι βουλεύειν τῆιδε πόλει 43 δήμου τε πλήθει νίκην καὶ κάρτος ἕπεσθαι. Φοῖβος γὰρ περὶ τῶν ὧδ’ ἀνέφηνε πόλει. (5) (10) [A Pítia deu o seguinte oráculo a Licurgo, sobre questões políticas:] Assim o rei do arco argênteo, Apolo que age à distância, de áurea coma, predisse do pingue santuário: que dirijam o concílio os reis honrados por Deuses a quem importa a amável cidade de Esparta, e os primevos anciãos: depois homens do povo, por sua vez, respondendo a retas sentenças pronunciem ditos belos e ajam com justiça em tudo (?) e ainda não deem à cidade conselho (?) para que vitória e poder sigam as massas. Sobre isso, eis o que Febo revelou à cidade. (5) (10) Desde as primeiras edições do texto questiona-se se é possível conciliar ambas as versões, na tentativa de aceder à composição legítima de Tirteu. A tendência vigente desde Bergk (1882, p. 317) é tomar a versão de Plutarco como a mais próxima do 40 Dindorf (1828): Βουλῆ Boissevain (1906): βουλη 41 Dindorf (1828): ἱμερόεσσα Boissevain (1906): ἱχερόεσσα 42 Boissevain (1906): εὐθείην ῥήτραις 43 Dindorf (1828): μηδ’ ἐπιβουλεύειν τῆιδε πόλει τι κακὀν. Bach (1831): μηδέ τι βουλεύειν τῆιδε πόλει σκολιόν· 220 capítulo 1 – a poética da eunomia poema original. O argumento usado por Bergk e quase todos os editores que o seguiram (Prato 1968, West 1974) para rejeitar a autenticidade da versão de Diodoro é o acúmulo de epítetos ornamentais atribuídos a Apolo no primeiro dístico, considerado como um arranjo desajeitado ou convencional demais para Tirteu44, e provavelmente elaborado por um compilador tardio que visava conciliar o fragmento com a lenda de que Licurgo trouxera o oráculo. Para isso, esse compilador teria eliminado o plural ἔνεικαν e o particípio ἀκούσαντες, ocultando assim uma possível menção a Polidoro e Teopompo. West (1974, p. 185), por sua vez, não viu motivos para que a citação de Plutarco fosse falsa. Segundo o editor, seria muito mais simples se Plutarco também possuísse uma versão do poema que não trouxesse os verbos no plural, uma vez que ele próprio já atribui o estabelecimento da Retra a um oráculo anterior recebido por Licurgo (Vida de Licurgo 6). O que West conclui, portanto, é que a fonte em que Plutarco baseou seu relato 45 não conhecia outra versão para a elegia. Essas hipóteses são discutíveis: o uso de epítetos convencionais não é estranho à poesia elegíaca grega arcaica46, e o próprio Tirteu, no fragmento 2 W – que pertenceria à Eunomia –, compõe um verso formado exclusivamente por epítetos de Zeus (2.12 W: αὐτὸς γὰρ Κρονίων, καλλιστεφάνου πόσις Ἥρης). 44 45 46 Hipótese também defendida por Jacoby (1918, p. 11) Wade-Gery (1944, p. 3) e Treu (1955, p. 268). Provavelmente a λακονίων πολιτεία de Aristóteles; Ver Wade-Gery (1944 a), West (1974, p. 185) Como nos mostra a Teognideia, vv. 1-2: Ὦ ἄνα, Λητοῦς υἱέ, Διὸς τέκος, οὔποτε σεῖο | λήσομαι ἀρχόμενος οὐδ’ ἀποπαυόμενος (“Ó senhor, ilho de Leto, prole de Zeus, nunca| te esquecerei, ao começar ou encerrar...”); vv. 1011: Ἄρτεμι θηροφόνη, θύγατερ Διός, ἣν Ἀγαμέμνων εἵσαθ’, [...]; Ártemis, matadora de feras, filha de Zeus, para quem Agamênon/fundou um templo... 221 as elegias de tirteu Ademais, o emprego exacerbado de epítetos poderia ter como inalidade ressaltar o poder e a inluência de Apolo diante da comunidade espartana, em um procedimento muito similar ao dos hinos homéricos. Poucos estudiosos creram na originalidade dos versos 1-2 citados por Diodoro. De Falco (1941, p. 159) julga a referência de Diodoro mais segura e admite, embora sem muita convicção, que ambos os dísticos pudessem ser autênticos, aqueles de Plutarco precedendo imediatamente aos de Diodoro: Φοίβου ἀκούσαντες Πυθωνόθεν οἴκαδ’ ἔνεικαν μαντείας τε θεοῦ καὶ τελέεντ’ ἔπεα· <ὧ>δε ἀργυρότοξος ἄναξ ἑκάεργος Ἀπόλλων χρυσοκόμης ἔχρη πίονος ἐξ ἀδύτου Febo escutaram, e de Pito ao lar levaram profecias do Deus e as palavras certas; assim, o rei do arco argênteo, Apolo que age à distância, de áurea coma, predisse do pingue santuário... Van Wees (1999, pp. 7-8) retomou parcialmente esta visão, demonstrando que uma análise minuciosa de ambas as fontes leva à conclusão de que ambas são igualmente coniáveis. Para o estudioso, se um compilador hipotético quisesse apagar os verbos no plural para atribuir o oráculo a um único legislador, Licurgo, seria plausível que ele compusesse um dístico que de fato nomeasse Licurgo. A versão de Plutarco, por outro lado, está em pleno acordo com seu argumento de que a profecia foi dada aos reis Teopompo e Polidoro, e seria, segundo Van Wees, uma transição abrupta da airmação de que os reis voltaram de Delfos (vv. 1-2) para o oráculo propriamente dito (vv. 3-6). 222 capítulo 1 – a poética da eunomia Desse modo, Van Wees conclui que se trata de uma citação seletiva, isto é, Plutarco menciona alguns versos que teriam lhe parecido uma evidência satisfatória de que os dois reis eram os receptores do oráculo, e depois passaria diretamente ao texto oracular, omitindo assim todos os versos que não lhe interessavam – inclusive a fórmula introdutória que menciona Apolo. A hipótese de Van Wees é interessante, porém indemonstrável. Limitemonos a questionar se os versos 1-2 da versão plutarquiana de fato soariam abruptos aos ouvidos da audiência do poema, lembrando, com Nagy (2009, p. 19), que a palavra ἔπεα no verso 2 é frequentemente empregada na poesia elegíaca para referir versos hexamétricos que se seguem a ela, e que portanto poderiam muito bem introduzir um oráculo. 47 Em termos gerais, seguiremos a edição proposta por West – que colige os versos 1-6 da versão de Plutarco e os versos 07-10 da versão de Diodoro, e trabalharemos a hipótese de que esses versos eram um poema completo, ou, nos termos de Cristopher A.Faraone (2008), uma estrofe com sentido completo. Esse julgamento é fortalecido pela composição em anel dos versos 1 e 10 (Φοίβου - Φοῑβος), que também já fora notada por Adkins (1985, p. 69) 48. O verso 1 do manuscrito de Plutarco está corrompido, e não traz originalmente ἔνεικαν mas um incompreensível οἱ τάδε νικάν (hoi táde nikán): a lição adotada por todas as edições modernas foi proposta primeiramente por Jacques Amyot, em sua tradução de 1559 de Plutarco (Ver Prato, 1968, p. 70). Wade-Gery 47 48 Como em Teognideia, vv. 15-18 (ver p. 195, n. 14). Embora na versão de Diodoro também se forme uma espécie de anel temático, referindo-se à Febo nas duas extremidades do poema. Ver Jäger (1966, p. 126) e Faraone (2008, p. 26). 223 as elegias de tirteu (1944a, p. 2, n.5) chegou a propor οἴταδ’ ἔνεικαν (oitad’ éneikan, “levaram ao Eta”), uma leitura que relacionaria o oráculo a Egímio e ao mito do Retorno dos Heraclidas ao Peloponeso.49 Embora seja paleograicamente possível, esta leitura entraria em contradição com o verbo μέλει no verso 4 do poema. Recebem destaque no primeiro verso Φοίβου ἀκούσαντες, por conta da sequência de espondeus tão frequentemente utilizada por Tirteu para causar impacto e solenidade aos seus inícios de verso, e Πυθωνόθεν, que além de ser primeira palavra após a cesura, é um termo raro e eminentemente poético.50 Importa ao poeta, neste dístico inicial, airmar a origem divina da informação que ele relatará. Uma questão longamente discutida entre os estudiosos deste fragmento é a respeito do sujeito de ἀκούσαντες e ἔνεικαν. A quem estes verbos se referem? A leitura mais comum entre os estudiosos é de que os versos tratam dos reis Teopompo e Polidoro. Plutarco relata que o poema de Tirteu menciona o acréscimo feito pelos dois reis à Grande Retra, fazendo o povo acreditar que aquelas eram palavras divinas (vv. 5-6). Segundo alguns, como Forrest (1963, p. 160), a referência a estes reis só é possível porque Tirteu os teria mencionado em outro trecho do poema que se perdeu. Naissi (2009, p. 126), porém, lança a teoria de que Plutarco tenta explicar a origem do acréscimo relacionando-a a uma teoria em voga nos séculos IV-III a.C., de que o rei Teopompo teria sido responsável pela instituição do eforato em Esparta, que 49 50 Ver a passagem de Estrabão (Geograia, 9.4.10), pp. 208-209. Dentre os textos que nos restaram, Πυθωνόθεν ocorre apenas mais uma vez em Píndaro, na Pítica 5, v. 105. Mas na poesia grega arcaica, Π̄θών é um termo frequentemente utilizado para referir-se à cidade do oráculo. Ver Ilíada 2, 519; Hino Homérico a Hermes, v. 178 e um verso de Teógnis (v. 807). 224 capítulo 1 – a poética da eunomia limitou o poder do δᾶμος na tomada de decisões, dividindo-o com πρεσβυγενέας e ἀρχαγέτας. Nesse sentido, o único elo entre estes dois acontecimentos seria o poema de Tirteu, que supostamente teria citado que Teopompo foi quem recebeu o oráculo que originou a Retra. Entretanto, nota-se que o próprio Plutarco não parecia muito convicto de que Tirteu mencionara de fato estes reis ou mesmo o acréscimo à Retra, fato que se observa no uso do advérbio που, “talvez”, que antecede a citação do fragmento. Outros estudiosos chegaram a propor leituras alternativas: Andrewes (1938, p. 99) sugere que o fragmento 2 W e o fragmento 4 W estavam muito próximos, e que os Heraclidas (fr. 2.13 W) citados naquele fragmento são retomados aqui. Para ele, esses Heraclidas eram os primeiros reis espartanos, Eurístenes e Procles – desconsiderando, como a maioria dos estudiosos, que Tirteu tivesse feito qualquer menção explícita a Licurgo. A sugestão de Andrewes encontra respaldo em uma tradição, atribuída ao historiador Helânico de Lesbos, que confere aos primeiros reis a fundação da constituição espartana.51 Wade-Gery (1944, p. 3), considerando o trabalho de Andrewes, concorda com o argumento de que Heraclidas é sujeito da oração, mas não descarta a possibilidade de que Licurgo pudesse estar incluído entre eles, como menciona Xenofonte, que situa Licurgo historicamente no tempo dos primeiros Heraclidas52. 51 52 Estrabão, Geograia 8.5,5: Ἑλλάνικος μὲν οὖν Εὐρυσθένη καὶ Προκλέα φησὶ διατάξαι τὴν πολιτείαν (Helânico airma que Eurístenes e Procles organizaram a constituição). Ver Van Wees, 1999, p. 13. República dos Lacedemônios, 10.8: ἀλλὰ γὰρ ὅτι μὲν παλαιότατοι οὗτοι οἱ νόμοι εἰσί, σαφές· ὁ γὰρ Λυκοῦργος κατὰ τοὺς Ἡρακλείδας λέγεται γενέσθαι· οὕτω δὲ παλαιοὶ ὄντες ἔτι καὶ νῦν τοῖς ἄλλοις καινότατοί 225 as elegias de tirteu Van Wees (1999,p. 12) é da mesma opinião, observando que, se Tirteu tivesse de fato mencionado Teopompo e Polidoro na Eunomia, Plutarco provavelmente teria citado estes versos de maneira a reforçar o seu argumento. Caminho um pouco distinto seguiu Prato (1968, p. 70), ao relembrar da intensa relação entre Esparta e o oráculo de Delfos, consolidada na igura dos Pítios, quatro oiciais espartanos designados pelos reis para consultar o oráculo de Delfos.53 Prato chega a evocar o testemunho de Marcello Gigante, que em seu artigo Tyrtaeus poeta non felix (1961, p. 237) airma que Tirteu era conhecido como O Pítio – não no sentido técnico do termo, mas como o “poeta do oráculo délico”, i.é, o responsável por transmitir as profecias emitidas pelo Deus. 54 εἰσι (...) “Todavia, é evidente que essas leis são antiquíssimas: Pois conta-se que Licurgo viveu entre os Heraclidas. Assim, embora sejam antigas, ainda [são], até hoje, novíssimas entre eles [sc. os Espartanos]”. Gray (2007, p . 171) observa que Xenofonte é propositalmente vago ao referir-se às datas em que estas leis “antiquíssimas” foram estabelecidas, pois deseja criar um paradoxo que estimule os gregos à imitação: embora as leis sejam muito antigas, como ninguém imitou os espartanos, elas permaneceram como se fossem novas. Por esse motivo, ele não cita o sujeito de λέγεται, atribuindo seu argumento a uma autoridade externa (“conta-se”). Nesse sentido, não nos parece lícito supor, como Van Wees (1999, p. 13) que situar Licurgo no tempo dos primeiros Heraclidas pudesse ser uma leitura incorreta de Xenofonte ao poema de Tirteu, mas antes, uma observação que visa fortalecer o seu paradoxo. 53 54 Ver Heródoto Histórias 6.57, Xenofonte, República dos Lacedêmonios, 15.5. Gigante (1967) menciona um escólio à Arte Gramática de Dionísio Trácio que por muito tempo intrigou os estudiosos de Tirteu. Fortemente inluenciado pela Poética de Aristóteles, o escoliasta parece classiicar Tirteu no mesmo grupo de escritores que se utilizam de verso, mas que não podem ser considerados poetas. Gigante (1961, p. 237) deu a última palavra neste debate, ao emendar a menção a Τυρταιον por Πυθιον: Os poetas são organizados em quatro [tipos]: pelo metro, pela fábula, pela história, e pelo modo de execução; todo o poema que não compartilha destes quatro, não é um poema. Carecem disso 226 capítulo 1 – a poética da eunomia A nosso ver, as diversas possibilidades de receptores propostos para o oráculo, sugeridas tanto por estudiosos modernos quanto antigos, informam que a própria Eunomia talvez tivesse expressado o sujeito desta oração de maneira deliberadamente vaga. Esta leitura que não atribui nenhum nome ao recipiente do oráculo nos parece mais adequada à proposta de interpretação que fazemos para a Eunomia, na qual se daria uma mescla entre passado mítico e realidade atual de performance de maneira a criar uma identidade coesa para todos os cidadãos espartanos. No contexto do fragmento 4 W, essa mescla parece-nos ainda mais importante, pois demonstra um ideário político aristocrático: a conexão entre passado e presente não se dá apenas pela continuidade da linhagem dos Heraclidas (fr. 2 W) mas também pela continuidade e manutenção de leis que regem a sociedade espartana e foram sancionadas por um Deus. A oração participial encerra-se com a cesura heptemímera, dando lugar à oração principal cujo objeto, μαντείας, revela-se apenas no início do segundo verso, em espondeus – recurso abundante na poesia de Tirteu quando o poeta deseja enfatizar algo, como já nota Adkins (1977, p. 76). Nesse caso, Tirteu inicia o verso com a palavra mais importante da oração. μαντείας também ocorreria possivelmente no verso 4 do fragmento 2 W, o que levou West (1974, p. 184) a considerar que os dois fragmentos faziam parte de um mesmo poema. Plutarco (Licurgo 6.1) Empédocles e o Pítio [Tirteu], e também não são chamados poetas os que falam sobre astrologia, porque eles não se utilizam das características dos poetas, embora também se sirvam do metro.” (Schol. In Dionys.Thrac.Art.Gramm.p. 168, 8 Hilgard = Gentilli Test.37). Desse modo, o autor sugere assim que o escoliasta se referia à poesia oracular de Tirteu. Entretanto, podemos ainda nos perguntar: por que não podemos considerar estes versos como poesia, assim como outros versos oraculares que abundam na poesia grega arcaica e clássica? 227 as elegias de tirteu emprega μαντεία como um sinônimo para a Grande Retra que Licurgo trouxe de Delfos55. Enquanto o primeiro dístico expressa a origem divina dos decretos proferidos, o verso 3 se encarrega de ressaltar a proximidade destes mesmos reis com os Deuses. Os reis são chamados θεοτιμήτους e a raridade deste epíteto – encontrado em textos poéticos pela primeira vez em Tirteu e apenas mais tarde no Agamênon de Ésquilo (v. 1337) – levou Prato a considerá-lo um neologismo tirtaico, ou um adjetivo especiicamente dórico. A ideia, porém, não é inédita, mas um lugar comum encontrado com frequência em Homero56. O verso é predominantemente espondaico, raro para os padrões de Tirteu (Ver Adkins, 1985, p. 71); caso se trate de fato de um poema tirtaico, seria um traço incomum de seu estilo, porém apropriado para a métrica oracular. A ação dos reis recebe destaque, em posição privilegiada no verso: ἄρχειν μὲν βουλῆς. “Dirigir” ou “iniciar” o conselho? A segunda opção nos parece mais adequada, tendo em vista que ἔπειτα δὲ no verso 6 demarca a sequência da oração. Mas, como já propõe Adkins (1985, p. 71), até o verso 6, ambas as informações são possíveis. Terá o poeta manipulado retoricamente os versos originais do oráculo em vista de enfatizar a proeminência dos reis, como sugere Adkins (1985, p. 74) ? É uma possibilidade, embora se possa considerar que seja apenas Tirteu emulando o estilo oracular, ambíguo por deinição. 55 56 Οὕτω δὲ περὶ ταύτην ἐσπούδασε τὴν ἀρχὴν ὁ Λυκοῦργος ὥστε μαντείαν ἐκ Δελφῶν κομίσαι περὶ αὐτῆς, ἣν ῥήτραν καλοῦσιν (“Licurgo zelou tanto pelo poder que trouxe de Delfos uma profecia sobre isso, a qual denominam Retra.”). Ver acima. Os reis são “nutridos por Zeus” (Διοτρεφής βασιλεύς). Ver Ilíada 2, 197 (τιμὴ δ’ ἐκ Διός ἐστι, “a honra [dos reis] provém de Zeus”). 228 capítulo 1 – a poética da eunomia θεοτιμήτους βασιλῆας realça o efeito solene, com três pés espondaicos. Todo esse verso parece assinalar um contraste com o verso 5, datílico, que se refere aos anciãos (πρεσβυγενεάς τε γέροντας) e aos homens do povo (δημότας ἄνδρας): os reis estão sempre em primeiro plano, e até mesmo o ritmo do poema encarrega-se de mostrar isso. O verso 4 continua a sugerir a importância dos βασιλῆας: embora os anciãos também sejam aqueles que principiam o conselho, Esparta concerne (μέλει) especialmente aos reis. O verso, que à primeira vista parece não acrescentar nada ao sentido geral do poema (West, 1974, p. 184) revela-se eicaz por adiar ainda mais πρεσβυγενεάς τε γέροντας, o segundo sujeito de ἄρχειν, colocando os anciãos em segundo plano. Segundo Adkins (1985, p. 72), a “mente de um ouvinte não está preparada para um segundo sujeito”. Assim, embora ambos sejam sujeitos de ἄρχειν, é notória a ênfase que Tirteu dá aos reis, atribuindo-lhes um adjetivo mais raro e honoríico (θεοτιμήτους) e uma oração relativa que justiica a sua ação. ἱμερόεσσα πόλις (himeróessa pólis, “cidade linda, atraente”) ocupa o outro hemistíquio do pentâmetro e desde cedo chamou a atenção dos helenistas. Tsopanakis (1954, apud Prato, 1968, p. 70) julgou estranho o uso deste epíteto para Esparta, e tendo em vista o manuscrito de Diodoro, propõe ἰσχερόεσσα, hipótese logo descartada por Adrados (1954, p. 272) que considerou improvável a formação de um adjetivo como esse. Segundo o estudioso, o suixo - εντ raramente se une a adjetivos como ίσχερος. Defradas (1962, p. 4) e Prato (1968, p. 70) associaram-no ao esplendor da atividade musical e poética da Esparta arcaica. Em Homero, o 229 as elegias de tirteu termo está sempre associado a atividades ou objetos que suscitem desejo e amabilidade,57 assim como na poesia elegíaca58. Na poesia grega arcaica, nota-se que a amabilidade é um adjetivo frequentemente atribuído a cidades ou localidades, embora os epítetos mais frequentemente utilizados sejam ἱμερτος (Sólon 3.2 W), ἐφίμερος e ἐρατός. O exemplo mais notável talvez seja o fragmento 22 W de Arquíloco59: οὐ γάρ τι καλὸς χῶρος οὐδ’ ἐφίμερος οὐδ’ ἐρατός, οἷος ἀμφὶ Σίριος ῥοάς. Pois não há terra bela, nem desejável, Nem amável, como às margens das correntes de Síris.60 Alguns estudiosos entendem que estes epítetos geralmente são atribuídos a cidades ou regiões a serem colonizadas, em um topos que geralmente confere a uma região epítetos próprios do discurso erótico.61 Talvez pensando neste topos que Tirteu empre57 58 Os seios de Afrodite (Il.3.397: στήθεά θ’ ἱμερόεντα); a pele de Hera, prestes a seduzir Zeus( Il.14.170: χροὸς ἱμερόεντος); as atividades de Afrodite (Il. 5.428-430: οὔ τοι τέκνον ἐμὸν δέδοται πολεμήϊα ἔργα,/ἀλλὰ σύ γ’ ἱμερόεντα μετέρχεο ἔργα γάμοιο,/ταῦτα δ’ Ἄρηϊ θοῷ καὶ Ἀθήνῃ πάντα μελήσει: “A ti, minha ilha, não é dado trabalhos de guerra/ mas tu participas dos trabalhos atraentes do casamento/ Que todas aquelas coisas interessem a Ares célere e Atena”), a dança (Il.18, 603) e o canto (Od. 1.421). Em Teógnis, a voz do aulo (vv. 531-532 αἰεί μοι φίλον ἦτορ ἰαίνεται, ὁππότ’ ἀκούσω/αὐλῶν φθεγγομένων ἱμερόεσσαν ὄπα. “Sempre o meu coração exulta, quando ouço/a voz atraente dos cristalinos aulos”); o casamento (v. 1239) os encantos de um jovem(v. 1319: Ὦ παῖ, ἐπεί τοι δῶκε θεὰ χάριν ἱμερόεσσαν “Ó menino, já que a Deusa te deu o sedutor encanto...”). 59 Ver De Martino & Vox (1996, p. 545). 60 Tradução de Paula da Cunha Corrêa (2010). 61 Como airma Chris Eckerman, na conferência “Pindar’s Olympia: landscape, rhetoric and ideology” proferida em setembro de 2011 na Universidade de São Paulo. 230 capítulo 1 – a poética da eunomia ga este epíteto, uma vez que a Eunomia era também um poema que narrava a fundação e a retomada de Esparta pelos Heraclidas. O verso 5 introduz os anciãos que compartilham a legislação de Esparta com os reis. Eles são os sujeitos de ἄρχειν. A maioria dos estudiosos, julgando que este poema cita a Grande Retra, relaciona πρεσβυγενεάς τε γέροντας à instituição da Gerousia, que viria a se tornar o órgão político mais importante da Esparta clássica. A possível menção a Teopompo no verso 1 reforça a tese, uma vez que este rei teria sido o responsável pela fundação do eforato. Van Wees (1999, p. 24) e Naissi (2009, p. 128), negando a conexão com o contexto da Retra, anotam que a estrutura política delineada por Tirteu pouco difere daquela apresentada nos poemas homéricos: assim como na poesia épica, são os reis e os anciãos que dirigem as assembleias cujas decisões o povo deve acatar. Note-se que na poesia homérica o termo γέροντας pode ser empregado também para designar os chefes do exército ou guerreiros mais proeminentes que tomavam parte do conselho.62 Isso poderia ajudar a dirimir uma possível redundância em πρεσβυγενεάς τε γέροντας: a única ocorrência de πρεσβυγενεῖς em Homero tem o sentido de “ancião”63 e o mesmo se dá na poesia trágica clássica64. Após a cesura, inicia-se uma nova oração com ἔπειτα δὲ, colocando-a dependente da oração anterior (ἄρχειν μὲν...), em consecução temporal. Nesse caso, a primeira sentença cria a circunstância em que a ocorre a oração com δὲ (Denniston, 1954, p. 370): apenas depois de iniciado o conselho pelos reis e anciãos, 62 Ver, p. ex., Il. 2.404 (κίκλησκεν δὲ γέροντας ἀριστῆας Παναχαιῶν). 63 Il. 11. v. 249: πρεσβυγενὴς Ἀντηνορίδης. 64 Eurípides, Troianas, v. 593, referindo-se à Príamo. 231 as elegias de tirteu é a vez do povo agir. Assim, embora alguns estudiosos tenham considerado que estes dísticos eram incompatíveis com o restante do poema por conferir poder demasiado ao povo, nota-se que na própria estrutura frasal o poeta já situa o povo em uma situação de subordinação aos reis. Agora o poeta ocupa-se de descrever os deveres do povo (δημότας ἄνδρας), assim como izera anteriormente com os reis e anciãos. Mas, segundo Adkins (1985, p. 73), a estruturação desta nova oração é diferente: enquanto na anterior tanto os βασιλῆας quanto γέροντας recebem adjetivos que os qualiicam (respectivamente θεοτιμήτους e πρεσβυγενεάς), o povo não recebe nenhum atributo que o caracterize. A sua ação (μυθεῖσθαί, v. 7), porém, é qualiicada por uma oração relativa adjetiva, que é apresentada com grande destaque no verso 6: o povo deve proferir suas decisões tendo em vista às retas sentenças instituídas por seus superiores (εὐθείαις ῥήτραις ἀνταπαμειβομένους). Assim como βασιλῆας, δημότας é um acusativo excepcional, o assim chamado “acusativo dórico”. Seria apenas um traço da linguagem épica continental (Onofrio & Vox, p. 568) ou uma intenção de Tirteu em realçar a identidade espartana de seu poema? 65 O verso 6 guarda duas ambiguidades importantes: o poema abre com εὐθείαις ῥήτραις e a primeira pergunta que se impõe é: trata-se de um dativo puro (objeto indireto de ἀνταπαμειβομένους) ou um dativo instrumental (“com retas sentenças”) ? Qual o sentido exato de ἀνταπαμειβομένους, palavra 65 É digno de nota, nesse sentido, que ao citar o poema Plutarco empregue a forma dórica Σπάρτας (v. 4) ao passo que em outros de seus fragmentos Tirteu sempre se refere à Messênia pela forma jônica: Μεσσήνη (5.2 W, 5.3 W). 232 capítulo 1 – a poética da eunomia que recebe o maior destaque no verso e cuja ocorrência em toda a literatura grega supérstite se dá apenas neste poema de Tirteu? Este verso começa com εὐθείαις ῥήτραις em posição de destaque (início de verso) e espondeus, chamando mais a atenção da audiência do que o sujeito citado no verso anterior, δημότας ἄνδρας, retratado de maneira quase pedestre se comparado ao modo grandiloquente com que o poeta referira-se aos reis e anciãos. A maioria dos estudiosos considera que a expressão εὐθείαις ῥήτραις ἀνταπαμειβομένους é um eufemismo para “αἰ δὲ σκολιὰν ὁ δᾶμος ἕροιτο” que consta no texto da Grande Retra oferecido por Plutarco (Ver Prato, 1968). O sentido mais comum deste termo é encontrado, por exemplo, na poesia homérica, onde é empregado para designar um acordo verbal, como aquele empreendido entre Odisseu e Eumeu no Canto 14, vv. 390-394, da Odisseia. Odisseu disfarçado relata a Eumeu que ele próprio está vivo e regressará. Incrédulo dessas palavras, o estrangeiro então propõe um pacto sob a observância dos Deuses do Céu: se essas palavras forem falsas, que ele seja castigado; caso contrário, que Eumeu arrumasse-lhe roupas e transporte: τὸν δ’ ἀπαμειβόμενος προσέφη πολύμητις Ὀδυσσεύς· “ἦ μάλα τίς τοι θυμὸς ἐνὶ στήθεσσιν ἄπιστος, οἷόν σ’ οὐδ’ ὀμόσας περ ἐπήγαγον οὐδέ σε πείθω. ἀλλ’ ἄγε νῦν ῥήτρην ποιησόμεθ’· αὐτὰρ ὄπισθεν μάρτυροι ἀμφοτέροισι θεοί, τοὶ Ὄλυμπον ἔχουσιν. (390) Em resposta disse-lhe Odisseu de mil astúcias: de fato [tens] um coração desconiado aí em teu peito, tal que nem mesmo com juras inluenciei-te, nem estou [persuadindo-te. (390) 233 as elegias de tirteu Então, vamos, ora façamos um trato [ ῥήτρην]; No porvir, [serão] nossas testemunhas os Deuses que habitam o Olimpo. Segundo Defradas (1962, p. 15), contudo, o sentido do termo entre os espartanos diferia do uso comum. Para este e outros autores, em Esparta ῥήτρα signiicaria lei, e geralmente referia-se às próprias leis estabelecidas por Licurgo. Simônides de Céos também emprega uma expressão aim, ῥήμασι πειθόμενοι, possivelmente como um eufemismo para ῥήτραις, em um de seus epigramas : Ὦ ξεῖν’, ἀγγέλλειν Λακεδαιμονίοις, ὅτι τῇδε κείμεθα τοῖς κείνων ῥήμασι πειθόμενοι. Viajante, avisa aos lacedemônios que aqui jazemos, às palavras deles obedientes. Esta versão consta na Antologia Palatina (7.249) e Heródoto (Histórias, 7.228). Mas o orador Licurgo (Contra Leócrates, 109) conhecia outra versão para o fragmento, com νομίμοις em substituição à ῥήμασι : ὦ ξεῖν’, ἄγγειλον Λακεδαιμονίοις, ὅτι τῇδε κείμεθα τοῖς κείνων πειθόμενοι νομίμοις Estrangeiro, avise aos Lacedemônios que aqui jazemos, obedientes às suas leis. Esta também era a versão conhecida por Diodoro da Sicília (11.33). Do mesmo modo, Cícero, na tradução desse fragmento notório (Tusculanas, I 101): “Dic, hospes, Spartae nos te hic vidisse iacentes dum sanctis patriae legibus obsequimur” 234 capítulo 1 – a poética da eunomia Diz em Esparta, viajante, que nos viu aqui jacentes, às sacras leis da pátria obedientes. Em contrapartida, o adjetivo εὐθείαις nunca é empregado em Homero para qualiicar ῥήτρας, mas se levarmos em conta o sentido dado em Esparta para essa palavra, encontraremos na Ilíada e na Odisseia uma expressão similar: θέμις. Segundo Lloyd-Jones (1983, p. 6), na Ilíada a palavra ocorre sempre com um sentido concreto, de “legislação” ou “sentença” e que o sentido de “costume” ou “direito” é menos frequente, visto na poesia épica apenas na Odisseia. Como ῥήτρας, as θεμίστας podem ser εὐθείας ou σκόλιας. Um dos exemplos mais notáveis é o proêmio de Trabalhos e Dias, que coloca Zeus como o responsável por endireitar (ἰθύνει) as sentenças (θέμιστας) e punir aqueles que são σκολιοί. Μοῦσαι Πιερίηθεν ἀοιδῇσι κλείουσαι, δεῦτε Δί’ ἐννέπετε, σφέτερον πατέρ’ ὑμνείουσαι. ὅν τε διὰ βροτοὶ ἄνδρες ὁμῶς ἄφατοί τε φατοί τε, ῥητοί τ’ ἄρρητοί τε Διὸς μεγάλοιο ἕκητι. ῥέα μὲν γὰρ βριάει, ῥέα δὲ βριάοντα χαλέπτει, ῥεῖα δ’ ἀρίζηλον μινύθει καὶ ἄδηλον ἀέξει, ῥεῖα δέ τ’ ἰθύνει σκολιὸν καὶ ἀγήνορα κάρφει Ζεὺς ὑψιβρεμέτης, ὃς ὑπέρτατα δώματα ναίει. κλῦθι ἰδὼν ἀίων τε, δίκῃ δ’ ἴθυνε θέμιστας τύνη· ἐγὼ δέ κε Πέρσῃ ἐτήτυμα μυθησαίμην. Musas da Piéria, por canções gloriicando, vinde, falai de Zeus o vosso pai hineando. Por ele, os mortais são notos ou ignotos, famosos ou infames, por querer de Zeus grande. 235 (5) (10) as elegias de tirteu Fácil ele faz forte, fácil o forte ele enfraquece, facilmente o amplo amaina e o inviso acresce; facilmente aplaina o torto, o altivo esvaece Zeus que no alto freme e habita a sublime sede. atende-me, porque vês e ouves; apruma as sentenças, tu! E eu, a Perses verdades gostaria de enunciar. (5) (10) Se levarmos em conta que um dos signiicados possíveis para δίκη é também a preservação da ordem pré-estabelecida e que o suposto título atribuído para estes fragmentos de Tirteu seria Eunomia – cujo sentido, conforme atestava Aristóteles, seria similar ao de δίκη aqui exposto66 – então ῥήτρα poderia ser entendido como um sinônimo com certa cor local espartana para θέμις. Plutarco, no Licurgo – uma das fontes para o fragmento – parece entender ῥήτρα como um sinônimo de μαντεία (6.1: ὁ Λυκοῦργος ὥστε μαντείαν ἐκ Δελφῶν κομίσαι περὶ αὐτῆς, ἣν ῥήτραν καλοῦσιν. “Licurgo zelou tanto pelo poder que trouxe de Delfos uma profecia sobre isso, a qual denominam Retra.”, ver supra.). Mas em outras passagens de sua obra, ele utiliza a palavra com o sentido de uma proposta que é colocada para votação para uma assembleia, um signiicado que mais tarde teria se tornado o mais comum em Esparta.67 Talvez essa deinição tardia de ῥήτρα possa ajudar a dissipar a ambiguidade observada acima e oferecer um signiicado para ἀνταπαμειβομένους. Esta palavra é a mais longa do poema, e ocupa todo o segundo hemistíquio do pentâmetro – conferindo assim certo peso à ação do povo. 68 66 Ver “A Eunomia de Tirteu”, pp. 199-202. 67 Plutarco, Agis 5.3; 8.2; 9.1. 68 Este recurso enfático aparece em outros poetas gregos arcaicos: ver ἀμφιπερικτίονας em Calino 1.2 W; Tirteu também utiliza-se disso em 10.4 236 capítulo 1 – a poética da eunomia O dicionário Liddell-Scott dá a deinição de “obedecer em resposta”, enquanto ο Bailly oferece o sentido de “responder de modo equivalente”. Esse sentido dá conta da preposição ἀντι- presente na composição da palavra, e se levarmos em conta que εὐθείαις ῥήτραις é um dativo puro, o verso sugere uma reciprocidade entre a atitude do povo e as propostas dos reis: as sentenças ( ῥήτραις) proferidas pelos reis são corretas (εὐθείαις), e a obrigação do povo é respondê-las na mesma altura. Nesse mesmo sentido, as sentenças são εὐθείαι justamente porque ser εὐθύς é uma qualidade dos indivíduos que as proferem – ver como exemplo a Teognideia, que apresenta esta como uma das características do homem que recebe um oráculo (vv. 805-810): Τόρνου καὶ στάθμης καὶ γνώμονος ἄνδρα θεωρόν εὐθύτερον χρὴ <ἔ>μεν, Κύρνε, φυλασσόμενον, ὧιτινί κεν Πυθῶνι θεοῦ χρήσασ’ ἱέρεια ὀμφὴν σημήνηι πίονος ἐξ ἀδύτου· οὔτε τι γὰρ προσθεὶς οὐδέν κ’ ἔτι φάρμακον εὕροις, οὐδ’ ἀφελὼν πρὸς θεῶν ἀμπλακίην προφύγοις. (805) (810) Mais reto do que torno ou régua um teoro (805) precavido deve ser em discernimento, Cirno, aquele a quem a sacerdotisa do Deus em Pito, de seu pingue santuário, assignar a voz divina: pois jamais encontrarias remédio, se lhe acrescentasses ou retirasses algo, nem escaparias da punição que vem dos [Deuses. 69 (810) W, onde o superlativo ἀνιηρότατον ocupa quase toda a extensão do segundo hemiepes. 69 Olhando sob essa perspectiva, essa elegia de Teógnis poderia colocar em questão a própria conduta moral dos reis espartanos, pois, se Tirteu de fato 237 as elegias de tirteu Entendido ἀνταπαμειβομένους nesse sentido, o papel de igualdade que o poema parece promover ica ainda mais reduzido: cabe ao povo apenas ratiicar as proposições dos reis e anciãos, que o poeta já sinaliza como εὐθείαι. Adkins (1985, p. 71) vê Tirteu novamente manipulando versos oraculares em vista de beneiciar a autoridade dos reis, como faz com ἄρχειν no verso 3: uma hipótese interessante, que fortalece a coesão entre as partes do poema, já que ἄρχειν inicia o verso 3 com uma ordenação ambígua do oráculo, e ἀνταπαμειβομένους encerra o sexto verso de maneira também ambígua. O dístico seguinte desenvolve o verso anterior e é construído a partir de uma polaridade bem cara ao estilo elegíaco70: enquanto o hexâmetro (v. 7) expressa em termos laudatórios a ação do povo, o pentâmetro (v. 8) ressalta o que não deve ser feito. Embora alguns autores considerem estes quatro versos inais, que constam apenas na versão de Diodoro, como espúrios, não há nenhum argumento concreto para isso. Prato (1968, p. 71) observa que o termo τὰ καλὰ é uma expressão tipicamente dórica, cujo sentido seria “honraria”. Seu argumento baseia-se em uma passagem da República dos Lacedemônios de Xenofonte. A passagem concerne à educação dos παιδίσκοι, que se baseava em reprimir a insolência característica refere-se à Grande Retra, veriicamos que Teopompo e Polidoro izeram um acréscimo ao oráculo, e, portanto, não seriam homens “retos”. De modo algum nos parece que Tirteu queira sugerir esta via de pensamento em seu poema, e isso talvez possa ser mais um indício de que a Eunomia não tivesse nenhuma relação com a Retra Licurgeana. Ver Wade-Gery (1944, p. 2, n.1). 70 Segundo Fowler (1987, pp. 76-77) a antítese é uma das maneiras favoritas para um poeta arcaico de organizar o seu material, e poderia até mesmo constituir um traço genérico da elegia. Ver o fragmento 10.1-4 W de Tirteu. 238 capítulo 1 – a poética da eunomia da idade. Para isso, Licurgo teria instituído um regime de ocupações e deveres constantes, que se não cumpridos, excluiriam o jovem de todas as honras, τὰ καλὰ: Ὅταν γε μὴν ἐκ παίδων εἰς τὸ μειρακιοῦσθαι ἐκβαίνωσι, τηνικαῦτα οἱ μὲν ἄλλοι παύουσι μὲν ἀπὸ παιδαγωγῶν, παύουσι δὲ ἀπὸ διδασκάλων, ἄρχουσι δὲ οὐδένες ἔτι αὐτῶν, ἀλλ’ αὐτονόμους ἀφιᾶσιν· ὁ δὲ Λυκοῦργος καὶ τούτων τἀναντία ἔγνω. καταμαθὼν γὰρ τοῖς τηλικούτοις μέγιστον μὲν φρόνημα ἐμφυόμενον, μάλιστα δὲ ὕβριν ἐπιπολάζουσαν, ἰσχυροτάτας δὲ ἐπιθυμίας τῶν ἡδονῶν παρισταμένας, τηνικαῦτα πλείστους μὲν πόνους αὐτοῖς ἐπέβαλε, πλείστην δὲ ἀσχολίαν ἐμηχανήσατο. ἐπιθεὶς δὲ καὶ εἴ τις ταῦτα φύγοι, μηδενὸς ἔτι τῶν καλῶν τυγχάνειν (...) “Quando passam da infância à adolescência, então os outros os liberam dos preceptores, e liberam-nos dos professores, e nenhum deles os guia mais, mas os deixam independentes. Licurgo, porém, também determinou o contrário disso. Compreendendo que nos jovens dessa idade a presunção enraíza-se com muita força, que a insolência vem à tona, e que se interpõem os mais fortes desejos por prazer, [Licurgo] então lhes impôs inúmeros trabalhos penosos e planejou a maior parte de suas ocupações, acrescentando que nunca obteriam honrarias, se fugissem destes deveres (...).” No contexto dessa obra de Xenofonte ainda vemos que estas “coisas belas” estão relacionadas à atribuição de cargos públicos: em certas passagens (2.9, 13, 4.4), por exemplo, entre as “coisas belas” está ser um ἱππεύς (hyppeús, “cavaleiro”). Mas o que se observa é que antes de signiicar estritamente “honrarias”, τὰ καλὰ só se dá quando ocorre o cumprimento das leis estabelecidas: um 239 as elegias de tirteu sentido que corresponde exatamente ao princípio de Eunomia que Tirteu teria preconizado em seu poema. Pronunciar coisas belas (μυθεῖσθαί δὲ τὰ καλὰ), então, nada mais é do que agir em consonância com as decisões lançadas pelos reis e pelos anciãos, que são εὐθείας. A oração que se segue após a cesura, ἔρδειν πάντα δίκαια, segundo autores como Treu (1941, p. 37), remeteria a um imaginário “decididamente ático”; West (1970, p. 151) considera que a ideia de algo não espartano nesta frase “não pode ser levada a sério”; de fato, Hammond (1950, p. 48, n.34) já observara a dicção perfeitamente homérica desta sentença, e o uso de um mesmo vocabulário em outras passagens de Tirteu71. O próprio sentido de δίκαια está em conformidade com o restante do poema, porquanto seu sentido seria o de ação praticada de acordo com um regulamento ou costume; assim, este verso não contradiz o restante do poema, mas antes expande e explica a ação do povo já apresentada no v. 6, εὐθείαις ῥήτραις ἀνταπαμειβομένους. O verso 8 é o mais problemático do ponto de vista textual: o manuscrito de Diodoro traz um verso incompleto, μηδέτι βουλεύειν τῆιδε πόλει, o que levou alguns helenistas (Wilamowitz 1884, p. 286, Meyer 1892, p. 227, apud Van Wees, p. 30, n.31) a considerarem que não se tratava de um poema e o texto fora composto em prosa72. Dindorf (apud Bach, 1831, p. 86) foi o primeiro a propor uma emenda para este verso, sugerindo: μηδ ἐπιβουλεύειν τῆιδε πόλει τί κακόν (e nem tramem contra à cidade um mal) 71 72 Tirteu fr. 11.27 W O que estaria de acordo com a própria coniguração do manuscrito de Diodoro, que, diferente de Plutarco, cita estes versos em scripta continua. 240 capítulo 1 – a poética da eunomia ἐπιβουλεύειν, porém, é verbo que não ocorre na poesia grega arcaica, tornando-se comum apenas a partir do século V a.C. (Van Wees, 1999, p. 31, n.38, West, 1970, p. 151), o que levou alguns autores (Prato, 1968,p. 152) a comprovarem que estas linhas seriam tardias, e fez outros (Musti, 1996 apud. Van Wees, 1999, p. 31) sugerirem um sentido propriamente arcaico para o verbo em questão73. A sugestão mais aceita hoje foi proposta por West (1974) e já remonta a Bach (1831) e Bergk (1882): μηδέ τι βουλεύειν τῆιδε πόλει <σκόλιον> (E não deem à cidade conselho <oblíquo>) A adoção de σκόλιον para completar a extensão do verso baseia-se na adição à Retra feito por Teopompo e Polidoro e mencionada por Plutarco74. Van Wees (1999, p. 10) conjectura que se Tirteu tivesse utilizado esta palavra, Plutarco certamente a teria citado, uma vez que a intenção deste ao citar o fragmento era ratiicar a hipótese de que os reis persuadiram o povo a crer que o acréscimo desde sempre pertencera à Retra. Este argumento, embora possível, é indemonstrável. Eliminá-lo apenas porque poderia constituir uma referência à Retra que escapou a Plutarco não é um argumento válido se considerarmos outros poemas gregos arcaicos em que o termo é naturalmente um antônimo de εὐθύς, empregado frequentemente em admoestações sobre a justiça: ὡς δ’ ὑπὸ λαίλαπι πᾶσα κελαινὴ βέβριθε χθὼν ἤματ’ ὀπωρινῷ, ὅτε λαβρότατον χέει ὕδωρ Ζεύς, ὅτε δή ῥ’ ἄνδρεσσι κοτεσσάμενος χαλεπήνῃ, 73 “aconselhar em acréscimo”. 74 Ver p. 217. 241 (385) as elegias de tirteu οἳ βίῃ εἰν ἀγορῇ σκολιὰς κρίνωσι θέμιστας, ἐκ δὲ δίκην ἐλάσωσι θεῶν ὄπιν οὐκ ἀλέγοντες· (Ilíada, 16, 384-388)75 Como a tenebrosa tormenta preenche toda a terra em dia outonal, quando a água verte violentíssima, como Zeus, quando guarda rancor e desgosto com homens que à força na assembleia preferem as oblíquas sentenças e rebaixam à justiça, desatentos da punição divina... Ὦ βασιλῆες, ὑμεῖς δὲ καταφράζεσθε καὶ αὐτοὶ τήνδε δίκην· ἐγγὺς γὰρ ἐν ἀνθρώποισιν ἐόντες ἀθάνατοι φράζονται ὅσοι σκολιῇσι δίκῃσιν ἀλλήλους τρίβουσι θεῶν ὄπιν οὐκ ἀλέγοντες. (Hesíodo, Trabalhos e Dias, vv. 251-253) E também vós, ó reis, considerai vós mesmos esta Justiça, pois muito próximos estão os imortais e entre os homens observam quanto lesam uns aos outros com tortas sentenças, negligenciando o olhar divino.76 οὔποτε δουλείη κεφαλὴ ἰθεῖα πέφυκεν, ἀλλ’ αἰεὶ σκολιὴ καὐχένα λοξὸν ἔχει. (Teognideia, vv. 535-536) Nunca escrava cerviz nasce reta, mas sempre torta, e mantém o pescoço inclinado. Nesse sentido, estivesse σκόλιον relacionado ou não à Retra, Tirteu poderia perfeitamente empregar o termo, uma vez que 75 76 Segundo West (2011, p. 320) a imagem é atípica da Ilíada e de extração hesiódica. Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer. 242 capítulo 1 – a poética da eunomia a palavra é frequentemente utilizada em discursos similares que tratem da justiça. Recentemente, Van Wees (1999, pp. 11-12) sugeriu uma alternativa interessante: para ele, o τῆιδε πόλει do verso 8 deve ser entendido em conexão com δήμου τε πλήθει do verso seguinte. A hipótese não é descartável: embora versos em enjambement sejam raros na poesia grega arcaica (West, 1974, p. 116) eles existem e são inclusive utilizados por Tirteu 77. Além disso, Tirteu emprega uma estrutura similar a essa no fragmento 12 W (v. 15). No entanto, as sugestões de Van Wees para o que deveria anteceder τῆιδε πόλει não parecem convincentes, tanto por gerar um torneio sintático incomum em Tirteu e na poesia elegíaca arcaica, como por parecer paleograficamente difícil tendo em vista as leituras do manuscrito: o autor sugere ὥσθ` ἅμα ( “não deem mais conselho, para que assim, ao mesmo tempo, a esta cidade/ e às massas, sigam poder e vitória”) ou ἀλλά ἀεὶ (“não deem mais conselho, e então sempre à esta cidade...”) Um verso pesado (com quatro espondeus) conclui o registro do oráculo apolíneo, garantindo aos que seguirem essas palavras “vitória e poder” (νίκην καὶ κάρτος). O que signiicam os termos νίκην e κάρτος, nesse contexto? A maioria dos estudiosos a relaciona com uma passagem da Retra, também corrompida: “δάμω αν<τα>γορίαν ἦμην καὶ κράτος”, que aponta para a soberania do povo na tomada de decisões. No entanto, como já observa Van Wees (1999, p. 11) o sentido exato da combinação “vitória e poder” está antes associado ao sucesso militar do que à soberania política. Assim é na Teogonia de Hesíodo, quando, durante o confronto com os Titãs, Zeus airma (vv. 647-648): 77 Fr. 5.4-5 W. 243 as elegias de tirteu νίκης καὶ κάρτευς πέρι μαρνάμεθ’ ἤματα πάντα, Τιτῆνές τε θεοὶ καὶ ὅσοι Κρόνου ἐκγενόμεσθα. todo dia combatemos pela vitória e poder os Deuses Titãs e quantos nascemos de Crono 78 Em seu último verso o poema cita novamente o nome do Deus responsável pelo oráculo (Φοῖβος), que já abrira o poema, constituindo assim um exemplo clássico de composição em anel.79 Para Faraone (2008, p. 31) este fechamento em anel é um sinal da composição da elegia grega arcaica: se o poeta estivesse de fato citando hexâmetro oraculares, seria lógico se ele tentasse emoldurá-los em uma única estrofe elegíaca. Ocasião de performance e estrutura do fragmento 4 W de Tirteu Tradicionalmente, por sua temática cívica, costuma-se classiicar estes versos como parte da Eunomia. Versos do fragmento 2 W com possíveis menções a oráculos auxiliam a introdução deste fragmento na Eunomia e, consequentemente, em um espaço de performance público que é típico do festival. Recentemente, depois do estudo de Rösler (1990, pp. 230237), essa aproximação tornou-se mais frágil. Segundo o autor, o simpósio também se revelava como um espaço propício à rememoração de ditos célebres, seja como demonstração de um sinal de erudição, seja como um meio para propiciar um diálogo que ratiica ou contesta alguma máxima do passado. Um exemplo é 78 79 Tradução de Jaa Torrano. Ver Jaeger 1960 (p. 106), Adkins, 1985 (p. 69), Fowler, 1987 (p. 81) e Faraone, 2008 (p. 31). 244 capítulo 1 – a poética da eunomia o fragmento 21 W atribuído a Simônides, no qual um verso da Ilíada (Il. 6. 146) serve de preâmbulo para a relexão tecida pelo poeta: ἓν δὲ τὸ κάλλιστον Χῖος ἔειπεν ἀνήρ· “οἵη περ φύλλων γενεή, τοίη δὲ καὶ ἀνδρῶν”· Uma coisa, a mais bela, disse o homem de Quios: “Tal qual a geração das folhas, assim a dos homens.” Nesse sentido, se os editores do fragmento 4 W de Tirteu estiverem corretos na proposta de que Tirteu teria sido responsável apenas pela composição do primeiro dístico e dos pentâmetros (vv. 1-2, 4, 6, 8 e 10) e os versos 3, 5, 7 e 9 pertenceriam ao próprio oráculo de Delfos (Ver West, 1974, p. 184) não seria lícito supor que Tirteu estivesse fazendo o mesmo? Embora sejam escassos os relatos, a prática não parecia ser estranha aos antigos: Teógnis (vv. 425-428) menciona hexâmetros que a Antiguidade atribuía a Homero80, ou ao menos à tradição épica, acrescendo-lhes pentâmetros: 80 πάντων μὲν μὴ φῦναι ἐπιχθονίοισιν ἄριστον’ μηδ’ ἐσιδεῖν αὐγὰς ὀξέος ἠελίου, φύντα δ’ ὅπως ὤκιστα πύλας Ἀίδαο περῆσαι καὶ κεῖσθαι πολλὴν γῆν ἐπαμησάμενον. (425) De tudo, não nascer é o melhor para os sobre a terra e não contemplar os raios do aguçado sol mas, nascido, cruzar o mais rápido os portais do Hades e jazer, enterrado por muita terra. (425) Certame de Homero e Hesíodo, 7-8. 245 as elegias de tirteu Um poeta obscuro de nome Pigres – mencionado na Suda81 como autor do Margites e da Batracomiomaquia – teria sido conhecido também por ter introduzido um pentâmetro após cada hexâmetro da Ilíada: μῆνιν ἄειδε, θεά, Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος, οὐλομένην. 82 μοῦσα, σὺ γὰρ πάσης πείρατ’ ἔχεις σοφίης. A cólera canta, Musa, de Aquiles Pelida, a destrutiva. Pois tu, Musa, tens os limites de todo o saber. Nesse sentido, é possível que Tirteu também tenha introduzido pentâmetros a um oráculo anterior, talvez porque a passagem já estivesse entretecida a uma narrativa maior em dísticos elegíacos, mas também porque seria interessante ao poeta engendrar um jogo expressivo que favorecesse os aristocratas que lideravam a pólis. Ainal, a atribuição de hexâmetros ao Deus de Delfos é o ápice da estratégia retórica da Eunomia: a partir deles, o poeta pode admoestar e rememorar valores comuns ao seu público 81 82 Suda, p. 1551, Adler: Κὰρ ἀπὸ Ἁλικαρνασοῦ, ἀδελφὸς Ἀρτεμισίας, τῆς ἐν τοῖς πολέμοις διαφανοῦς, Μαυσώλου γυναικός· ὃς τῇ Ἰλιάδι παρενέβαλε κατὰ στίχον ἐλεγεῖον, οὕτω γράψας· μῆνιν ἄειδε, θεά, Πηληϊάδεω Ἀχιλῆος, οὐλομένην. μοῦσα, σὺ γὰρ πάσης πείρατ’ ἔχεις σοφίης. ἔγραψε καὶ τὸν εἰς Ὅμηρον ἀναφερόμενον Μαργίτην καὶ Βατραχομυομαχίαν. (“Cário do Halicarnasso, irmão de Artemísia, a que foi ilustre nas guerras, esposa de Maúsolo. Ele acrescentou um verso elegíaco a cada verso na Íliada. Escreveu assim: “A cólera canta, Musa, de Aquiles Pelida, a destrutiva/Pois, Musa, tu tens os limites de todo o saber”. Escreveu também o Margites atribuído à Homero e a Batracomiomaquia.”). Note-se, contudo, que a citação do verso da Ilíada não é precisa: o poeta traz o adjetivo οὐλομένην, originalmente no verso 2, para o primeiro verso, o que aparentemente arruína o seu esquema e também o efeito poético da passagem na Ilíada. 246 capítulo 1 – a poética da eunomia eminentemente aristocrático, revestindo-os com a sanção divina de Apolo e com elementos comuns ao passado e à tradição espartana. A transição de um canto como este para um simpósio, se é que de fato tivera pertencido originalmente a um contexto público, seria natural, uma vez que tanto a reinterpretação de passagens célebres como a reairmação de laços aristocráticos por meio da recriação ou rememoração de um passado comum eram prerrogativas da poesia composta para este cenário. Ao mesmo tempo, a composição anelar favoreceria este processo, uma vez que isolaria a passagem em uma unidade breve e autocontida. O fragmento 5 W Três fontes distintas compõem este fragmento. O primeiro dístico encontra-se na Descrição da Grécia (4.6.5). Embora muito distante cronologicamente, Pausânias produz a fonte mais extensa sobre as duas Guerras da Messênia. Seu relato baseia-se em outros dois, também tardios, datados do período helenístico: o do prosador Míron de Priene e o do poeta épico Riano de Creta. As elegias de Tirteu, a fonte mais antiga sobre esta guerra, são evocadas apenas em três passagens, o que poderia levar a pensar que o poeta não teria narrado integralmente os dois conlitos entre Messênia e Esparta, ou ao menos que Pausânias não tinha acesso a todo o material do poeta. Nos três momentos, Tirteu é relembrado por ocasião da primeira guerra: dois fragmentos tratam das consequências da guerra para os messênios (fr. 6 e 7 W), e o fragmento em questão (5.1-2 W) cita o elegista arcaico como autoridade para determinar a participação do rei Teopompo durante toda a Primeira 247 as elegias de tirteu Guerra da Messênia e assim contestar o registro de Míron, que teria informado erroneamente em sua obra que Teopompo havia sido assassinado antes do término da Primeira Guerra pelo herói messênio Aristômenes: πεποίηκε γὰρ ὡς ἀποκτείνειε Θεόπομπον τῶν Λακεδαιμονίων τὸν βασιλέα Ἀριστομένης ὀλίγον πρὸ τῆς Ἀριστοδήμου τελευτῆς: Θεόπομπον δὲ οὔτε μάχης γινομένης οὔτε ἄλλως προαποθανόντα ἴσμεν πρὶν ἢ διαπολεμηθῆναι τὸν πόλεμον. οὗτος δὲ ὁ Θεόπομπος ἦν καὶ ὁ πέρας ἐπιθεὶς τῷ πολέμῳ: μαρτυρεῖ δέ μοι καὶ τὰ ἐλεγεῖα τῶν Τυρταίου λέγοντα ἡμετέρῳ βασιλῆι θεοῖσι φίλῳ Θεοπόμπῳ, ὃν διὰ Μεσσήνην εἵλομεν εὐρύχορον. Pois ele fez com que Aristômenes assassinasse Teopompo, o rei dos lacedemônios, pouco antes da morte de Aristodemo; Mas sabemos que Teopompo não foi assassinado, nem em combate e nem de outro modo, antes da guerra ser concluída. Este Teopompo foi, na verdade, quem pôs im à guerra; meu testemunho é a elegia de Tirteu, que diz: Ao nosso rei Teopompo, dileto dos Deuses, graças ao qual conquistamos vasta Messênia. O verso 3 é citado pelo escoliasta às Leis de Platão, visando esclarecer as origens do poeta marcial. Lá, ele menciona que o verso obteve destaque (τὸ φερόμενον...ἔπος, tó pherómenon épos, “verso notório”) e que foi citado como uma maneira de insular os ânimos espartanos para o conlito contra os messênios: ὁ Τύρταιος οὗτος Ἀθηναῖος ἐγένετο, εὐτελὴς τὴν τύχην· γραμματιστὴς γὰρ ἦν καὶ χωλὸς τὸ σῶμα, καταφρονούμενος 248 capítulo 1 – a poética da eunomia ἐν Ἀθήναις. τοῦτον Λακεδαιμονίοις ἔχρησεν ὁ Ἀπόλλων μεταπέμψασθαι, ὅτε πρὸς Μεσσηνίους εἶχον τὴν μάχην καὶ ἐν ἀπορίᾳ κατέστησαν πολλῇ, ὡς δὴ ἱκανοῦ αὐτοῖς ἐσομένου πρὸς τὸ συνιδεῖν τὸ λυσιτελές· αὐτῷ γὰρ ἐπέτρεψε χρήσασθαι συμβούλῳ. ἀφικόμενος δὲ οὗτος εἰς Λακεδαίμονα καὶ ἐπίπνους γενόμενος συνεβούλευσεν αὐτοῖς ἀνελέσθαι τὸν πρὸς Μεσσηνίους πόλεμον, προτρέπων παντοίως· ἐν οἷς καὶ τὸ φερόμενον εἰπεῖν ἔπος Μεσσήνην ἀγαθὸν μὲν ἀροῦν, ἀγαθὸν δὲ φυτεύειν. τοῦτον οὖν ἐν τῷ λόγῳ παρέλαβεν ὁ Ἀθηναῖος ξένος, ὡς καὶ αὐτὸν πολέμου σύμβουλον γεγονότα. Este Tirteu era um Ateniense de pouca sorte: pois ele era um mestre-escola, coxo, subestimado em Atenas. Apolo vaticinou aos Lacedemônios que mandassem buscá-lo, enquanto guerreavam contra os messênios e se encontravam em grande diiculdade, porque [ele] bastaria para fazê-los compreender o que era vantajoso; de fato, o oráculo ordenou que coniassem a ele o cargo de conselheiro. E quando ele chegou a Esparta, icou inspirado e aconselhou-lhes a empreender a guerra contra os Messênios, encorajando-os de todas as maneiras – entre as quais, pela récita do notório verso: Messênia, boa p’ra arar, boa p’ra plantar. Portanto, o Estrangeiro Ateniense o refere em seu discurso, porque ele (sc. Tirteu) também havia sido um conselheiro de guerra. 249 as elegias de tirteu Os dois últimos dísticos (vv. 4-8) foram conservados na Geograia de Estrabão83, e são evocados como um testemunho de que a guerra durou vinte anos: Μεσσήνη δὲ ἑάλω πολεμηθεῖσα ἐννεακαίδεκα ἔτη, καθάπερ καὶ Τυρταῖός φησιν ἀμφ’ αὐτὴν δ’ ἐμάχοντ’ ἐννέα καὶ δέκ’ ἔτη νωλεμέως αἰεὶ ταλασίφρονα θυμὸν ἔχοντες αἰχμηταὶ πατέρων ἡμετέρων πατέρες· εἰκοστῶι δ’ οἱ μὲν κατὰ πίονα ἔργα λιπόντες φεῦγον Ἰθωμαίων ἐκ μεγάλων ὀρέων ( 5) Messênia foi conquistada após dezenove anos de guerra, como diz Tirteu: Por ela lutavam dezenove anos, sem trégua, sempre de coração pertinaz os lanceiros pais de nossos pais; 83 (5) Os versos 7-8 ocorrem novamente em Pausânias, Descrição da Grécia, 4.13.6: ἀρετῇ μὲν δὴ καὶ τολμήμασιν οὐδὲ τότε ἀπεδέησε τὰ τῶν Μεσσηνίων· ἀπέθανον δὲ οἵ τε στρατηγοί σφισιν ἅπαντες καὶ τῶν ἄλλων οἱ λόγου μάλιστα ἄξιοι. τὸ δὲ ἀπὸ τούτου μῆνας μέν που πέντε μάλιστα ἀντέσχον, περὶ δὲ τὸν ἐνιαυτὸν λήγοντα ἐξέλιπον τὴν Ἰθώμην, πολεμήσαντες ἔτη τὰ πάντα εἴκοσι, καθὰ καὶ Τυρταίῳ πεποιημένα ἐστίν· “εἰκοστῷ δ᾽ οἱ μὲν κατὰ πίονα ἔργα λιπόντες / φεῦγον Ἰθωμαίων ἐκ μεγάλων ὀρέων. “Ainda assim, os feitos dos messênios não foram então desprovidos de valor ou coragem. Porém, todos os seus generais morreram e a maior parte dos outros homens dignos de nota. Depois disso, resistiram ao máximo por aproximadamente cinco meses, mas, quando o ano estava terminando, desertaram Itome, depois de guerrearem ao todo vinte anos, segundo o que Tirteu compôs: “no vigésimo [ano], os Messênios deixaram as férteis lavouras/ e fugiram dos altos montes de Itome.” 250 capítulo 1 – a poética da eunomia ao vigésimo, os messênios deixaram as férteis lavouras e fugiram dos altos montes de Itome. O Iambi et Elegi Graeci de Martin L. West (1992) adota a reunião proposta primeiramente por Bergk em 1882. Os fragmentos se combinam tão perfeitamente que a maioria dos editores que o seguiram não viu objeções quanto à orientação de Bergk e imprime os fragmentos deste modo desde então. Entre alguns, contudo, ainda há alguma nota de discordância: Prato (1968, p. 73), por exemplo, embora admita que estes versos pudessem ter sido parte do mesmo poema, a longa elegia denominada Eunomia, não concorda na disposição deles e acredita que se trata de uma “união artiiciosa”: segundo ele, o verbo εἵλομεν (heílomen, “tomamos”, v. 2) na primeira pessoa do plural e ἐμάχοντ(ο) (emákhonto “lutaram”, v. 4) na terceira pessoa, sugerem duas situações distintas ou pelo menos certa distância entre os dois versos. Além disso, a inserção do verso 3 ( Μεσσήνην ἀγαθὸν μὲν ἀροῦν, ἀγαθὸν δὲ φυτεύειν) entre as citações de Pausânias (fr. 5.1-2 W) e Estrabão (fr. 5.4-8 W) é problemática para Prato, que adota para o verso 4 a leitura pouco convencional e negligenciada ἀμφ’ αὐτῷ δέ. Nesse caso, o dativo masculino não se ajustaria com o referente do verso anterior, Μεσσήνην. E.Schwartz (1889, p. 428, n.5 apud Prato, 1968,p. 73) também prefere esta leitura, observando que ἀμφί no sentido de “lutar por” geralmente é regido por dativo, ao passo que a preposição em conjunto com acusativo possuía sentido mais estrito de “lutar ao redor de”. Mas West (1974, p. 186) entende simplesmente que 251 as elegias de tirteu um sentido poderia contaminar o outro, e é impossível saber com certeza porque Tirteu teria empregado o acusativo84. Uma vez que todos os versos retratam a tomada da Messênia, é verossímil crer que eles provavelmente teriam feito parte do mesmo poema, mas parece prudente considerá-los como fragmentos separados e que os versos não estivessem dispostos em sequência direta. A conquista da Messênia (vv. 1-3) Estes versos registram pela primeira vez e de maneira laudatória a história da Primeira Guerra da Messênia. Nesse sentido, o poema é frequentemente utilizado por historiadores para comprovar a autenticidade das Guerras da Messênia e já foi lembrado pelos estudiosos de literatura grega como um exemplo de narrativa historiográica arcaica, tendo em vista a preocupação do poeta com referências e datas cronológicas (Ver Bowie 1986, pp. 29-34; 2001, pp. 45-47). Seria este poema de fato um registro apurado deste conlito? O interesse dos editores em colocar este fragmento como parte da Eunomia é antigo: Giuseppe Fraccaroli (1889, apud De Falco e Coimbra, 1941, p. 160) aceita uma leitura pouco comum 84 A Ilíada de Homero já demonstra como estes sentidos são normalmente intercambiáveis. O poeta utiliza mais frequentemente a construção ἀμφί + dativo para indicar o sentido de “ter por alvo” (por exemplo, 3.70: ἀμφ’ Ἑλένῃ καὶ κτήμασι πᾶσι μάχεσθαι· “lutar por Helena e por todas as [suas] posses”) mas também emprega o genitivo sem alteração de sentido: (16.824825: μάχεσθον/πίδακος ἀμφ’ ὀλίγης· “os dois lutam por uma pequena fonte de água”). 252 capítulo 1 – a poética da eunomia do último verso do fr. 4 W, que escreve ποτε em vez de πόλει, e supõe assim que o fr. 5 W continuaria a elegia a partir daí: Φοῖβος γὰρ περὶ τῶν ὧδ’ ἀνέφηνε ποτε ἡμετέρωι βασιλῆϊ, θεοῖσι φίλωι Θεοπόμπωι Sobre isso, eis o que Febo revelou então ao nosso rei Teopompo, dileto dos deuses Contudo, essa hipótese teve pouca adesão. Prato (1968, p. 75) observa que θεοῖσι φίλωι no verso 1 é uma expressão comum à épica85 e não estranha à elegia86, mas salienta o que ele chama de “dicção délica”, consagrada por expressões como Ζηνὶ φίλος, presente por exemplo no oráculo que teria sido proferido a Licurgo87, ou θεοφιλής (Plutarco, Vida de Licurgo, 5.4), possivelmente por ter em vista também uma relação entre esse verso e o fragmento 4 W. Mas a associação entre Deuses e heróis é tão corriqueira na tradição épica que nos parece impossível assegurar se o poeta visava de fato introduzir neste verso algum elemento particular da linguagem oracular. 85 86 87 Por exemplo, Il. 20.347: Αἰνείας φίλος ἀθανάτοισι θεοῖσιν (Eneias, dileto aos deuses imortais). Teognideia, vv. 653-654: Εὐδαίμων εἴην καὶ θεοῖς φίλος ἀθανάτοισιν/ Κύρν’· ἀρετῆς δ’ ἄλλης οὐδεμιῆς ἔραμαι Seja eu feliz e dileto aos Deuses imortais/, Cirno! Não desejo nenhuma outra virtude; e v. 881: οὔρεος ἐν βήσσηισι θεοῖσι φίλος Θεότιμος : Nas veredas da montanha, Teotimo, o dileto dos deuses. Ver Enomeu, fr. 10 Mallach: Ἥκεις, ὦ Λυκόοργε, ἐμὸν ποτὶ πίονα νηόν,/ Ζηνὶ φίλος καὶ πᾶσιν Ὀλύμπια δώματ’ ἔχουσι· (“Vens ao meu pingue templo, ó Licurgo /dileto de Zeus e de todos que habitam a morada olímpia”). 253 as elegias de tirteu Seria possível, antes, veriicar um jogo expressivo na aliteração θεοῖσι φίλωι Θεοπόμπωι: o uso da expressão poderia ser não apenas ornamental, mas uma aliteração criada propositalmente para reforçar o elo entre os Deuses e a figura da autoridade lacedemônia, procedimento que já ocorre em ambos os fragmentos da Eunomia: no fragmento 2 W, pela menção aos reis Ἡρακλείδαις, e no fragmento 4 W, pelo oráculo proferido aos reis. O uso de ἡμετέρωι no primeiro verso que nos restou não é fortuito, tampouco a “tentativa de associar, em um momento de desunião espiritual, a força de toda a nação em nome do velho rei vitorioso” (Prato, 1968, p. 75), mas de uma estratégia narrativa particular da Eunomia: ao longo de todo o fragmento, Tirteu cuida de rememorar os ideais e eventos históricos compartilhados por uma elite88, a im de apresentar como contínuo um ideário que a mantém no centro do universo político em um momento de crise, ao mesmo tempo em que reforça, entre seus pares, a coesão do grupo aristocrático a que pertence (Ver Quatroccelli, 2008, p. 16). A oração relativa do verso 2 desenvolve a identidade deste Teopompo: trata-se do rei que conquistou a região da Messênia. Pode-se supor aqui, com Bowie (2010, p. 147), que a necessidade de uma oração relativa para descrever o rei espartano já indicaria se tratar de um poema breve, que realizava apenas uma narração sumária do conlito: talvez apenas uma rememoração da guerra passada, com o intuito de servir de exemplo para uma situação atual. Mas essa hipótese também não é concludente, uma vez que não sabemos ao certo em que ponto do poema estaria o fragmento 88 No fragmento 2 W, a menção às origens míticas e à fundação da cidade como um presente de Zeus aos descendentes de Héracles; no fragmento 4 W, o oráculo recebido pela cidade adquire força admonitória. 254 capítulo 1 – a poética da eunomia citado; tudo o que se sabe é que não se trata do início, por causa do dativo no primeiro verso. O fato de Tirteu servir-se aparentemente de narrativas mais extensas em outros fragmentos (18-23 W e 23a W) que poderiam ter feito parte da Eunomia reforça a dúvida. Se o primeiro verso encarrega-se de justiicar e demonstrar a adesão de Tirteu à aristocracia, os versos seguintes (vv. 2-3) justiicam o valor da terra pela qual se luta. O escoliasta das Leis já anunciava que o terceiro verso gozava de prestígio em seu tempo, chamando-o de φερόμενον – isto é, um verso muito citado, ou que estava em circulação na época – mas, sobretudo, informa que o verso teria sido recitado em um contexto de exortação, como uma das muitas maneiras encontradas por Tirteu para impelir (προτρέπων) os espartanos à guerra contra os Messênios. Se o escoliasta teve acesso a outros trechos do poema para basear a sua airmação, e se a ordenação dos versos proposta pelos editores modernos para o fragmento 5 W procede, seria possível imaginar um poema em princípio exortativo em que a narração do passado não seria predominante, mas serviria antes para pautar a ação presente, como West (1974,p. 14) já sugere como um traço constitutivo da elegia narrativa. A descrição da terra natal ou de colônias adjacentes poderia constituir um lugar comum na poesia grega arcaica. Como demonstram De Martino e Vox (1996, p. 550), o tema já é comum desde a Odisseia, e em chave negativa, aparece em Hesíodo89 e Arquíloco90. 89 90 Hesíodo, Trabalhos e Dias, v. 640: Ἄσκρῃ, χεῖμα κακῇ, θέρει ἀργαλέῃ, οὐδέ ποτ’ ἐσθλῇ. (“Ascra, má no inverno, ruim no verão, nunca boa” – Tradução de Jaa Torrano, 2005). Ver Arquíloco fr. 22 W, p. 230. 255 as elegias de tirteu O expediente encontraria facilmente lugar na argumentação de Tirteu: determinar para a sua audiência aquilo que é ἀγαθóς ou κακóς não é algo incomum em suas elegias, e, segundo Noussia (2010, p. 74), procedimentos como esses evocam na memória da audiência as tradições compartilhadas entre todos os espartanos. O termo εὐρύχορον – que provêm de εὐρύχωρον com o abreviamento métrico, e cujo sentido seria “vasto, amplo para o cultivo” e não “com amplos chãos de dança” (West 1994) – também evoca o principal epíteto para Esparta em Homero (Ver Od. 13.414, 15.1). ἀγαθóν, por outro lado, é epíteto normalmente atribuído a cidades (como o é para a Ítaca de Odisseu em Od. 9.27, onde Ítaca é ἀγαθὴ κουροτρόφος, agathé kourotróphos, “boa nutriz de jovens”). Alguns editores corrigem o texto com ἀγαθήν, para concordar com Μεσσήνην91. Contudo, Gentili e Perrota (2007, p. 24) advertem que não se conheciam os versos precedentes e que seria possível subentender ali facilmente o termo χώρον. De Martino e Vox (1996, p. 551) informam que poderia se tratar da construção de neutro ἀγαθóν + ininitivo, como vemos em Homero (Il. 7.282, 24.130-1). A fertilidade da região da Messênia – que na época de Tirteu designava toda a região entre vales próxima à Esparta, e não a cidade de mesmo nome, fundada apenas após 369 a.C. – já era proverbial na literatura grega clássica. Eurípides também a celebraria em verso (fr. 1083 Nauck): πολὺν μὲν ἄροτον, ἐκπονεῖν δ’ οὐ ῥᾴδιον· κοίλη γὰρ ὄρεσι περίδρομος τραχεῖά τε 91 Como faz Buttmann (apud Gentilli e Perrota, 2007, p. 24) 256 capítulo 1 – a poética da eunomia δυσείσβολός τε πολεμίοις . . . . . . . . . καλλίκαρπον . . . κατάρρυτόν τε μυρίοισι νάμασιν καὶ βουσὶ καὶ ποίμναισιν εὐβοτωτάτην, οὔτ’ ἐν πνοαῖσι χείματος δυσχείμερον οὔτ’ αὖ τεθρίπποις ἡλίου θερμὴν ἄγαν ............ γαίας Λακαίνης κύριον φαύλου χθονός ............ ἀρετὴν ἐχούσης μείζον’ ἢ λόγῳ φράσαι ............ Παμισὸν εἰς θάλασσαν ἐξορμώμενον ............ πρόσω .. ναυτίλοισιν . . . . . πρόσω δὲ βάντι ποταμὸν Ἦλις ἡ Διὸς γείτων κάθηται. Muita lavoura, a lavrar não facilmente: pois vale selvagem entre montanhas para guerreiros duro de invadir... ....frutífera.... irrigada por incontáveis nascentes ótimo pasto para bois e carneiros, não rigorosa pelos sopros do inverno nem quente demais pelas quadrigas do Sol ................ Da fraca terra lacônia um forte solo .............. da qual a excelência é maior do que dizem, ............. 257 as elegias de tirteu lançando-se ao mar Pamiso, à frente.....nautas...... ao que à frente andando pelo rio Élis a vizinha de Zeus lançou-se.... A anáfora ἀγαθὸν μὲν...ἀγαθὸν δὲ demarca a simetria entre as orações e as duas atividades mencionadas, arar (ἀροῦν) e plantar (φυτεύειν). Assinalar a fertilidade do solo por meio desses termos constitui lugar recorrente na poesia grega. São essas as duas principais atividades do agrícola e também uma fonte de riqueza (Trabalhos e Dias vv. 21-22): ἥ τε καὶ ἀπάλαμόν περ ὁμῶς ἐπὶ ἔργον ἐγείρει· εἰς ἕτερον γάρ τίς τε ἴδεν ἔργοιο χατίζων πλούσιον, ὃς σπεύδει μὲν ἀρόμεναι ἠδὲ φυτεύειν (...) Esta (sc. “Boa Éris”) desperta até o indolente para o trabalho: pois um sente desejo de trabalho tendo visto o outro rico, apressado em plantar, semear (...)92 Ao passo que a sua ausência denota um sinal de barbárie (Prato, 1968, p. 76), como se lê na Odisseia (9.106-108): Κυκλώπων δ’ ἐς γαῖαν ὑπερφιάλων ἀθεμίστων ἱκόμεθ’, οἵ ῥα θεοῖσι πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ’ ἀρόωσιν (...) À terra dos Ciclopes arrogantes e sem lei chegamos. Eles, coniados nos Deuses imortais não plantam nem aram com as próprias mãos (...) 92 Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer (1989). 258 capítulo 1 – a poética da eunomia Se este verso constituía ou não uma exortação que trabalhava a imagem proverbial da fertilidade da terra messênia como estímulo para que os espartanos combatessem ou se fazia parte de uma narrativa, parece impossível saber dada a escassez dos fragmentos. O que podemos sugerir, entretanto, é que a exaltação de valores da terra que se deseja conquistar é uma tópica exortativa, que Sólon poderia ter também explorado em seu poema Salamina (Ver fr. 1.1 W, ἱμερτῆς Σαλαμῖνος). Entretanto, a hipótese de que se trataria de uma elegia narrativa é reforçada por estudiosos que tendem a ver uma ligação entre os elementos deste poema e procedimentos formais típicos da vindoura prosa historiográica. Em que medida é viável traçar essa relação? Elegia e historiograia? A primeira guerra da Messênia (vv. 4-8) Os versos 4 a 8 do fragmento 5 W apresentam tons épicos e apontam para um procedimento típico da Eunomia: a fusão entre um passado lendário e a realidade atual de performance . Essa estratégia já é clara no fragmento 2 W, demarcando a continuidade da linhagem dos fundadores da pólis, descendentes de Heraclidas, e da audiência do poema, através do uso do verbo ἀφικόμεθα; já nos versos 1 e 2 do fragmento 5 W, Tirteu serve-se novamente do mesmo recurso: com o aoristo na primeira pessoa do plural, εἵλομεν (v. 2) o poeta torna atemporal o ato de conquistar Messênia e assim suprime a distinção entre passado e presente, criando um grupo coeso que reúne todos os espartanos. Esse passado se reveste de autoridade nos outros fragmentos porque geralmente menciona Deuses e semideuses (fr. 2 W), ou as ordens que eles pronunciaram (o oráculo do fr. 4 W). Mas, 259 as elegias de tirteu diferentemente destes, no fragmento 5 W a autoridade se dá por meio da heroicização do passado recente, que é retratado com uma dicção épica que remeterá não só à Ilíada, mas sobretudo à Odisseia. A edição de West prefere para o verso 4 ἀμφ’ αὐτὴν, observando que o poeta subentende aqui o termo Μεσσήνην do verso anterior. Mas não é uma leitura unânime: Prato (1968, p. 76), por exemplo, lê nos códices de Estrabão ἀμφ’ αὐτῷ, sugerindo uma descontinuidade entre este verso e o anterior e subentendendo que o verso tinha como referente um termo como πτολίεθρον (ptolíetron, “cidadela”, “fortaleza”) ou algum sinônimo. Hoje a questão parece ter se resolvido e as opiniões parecem pender para ἀμφ’ αὐτὴν, com o registro de casos similares na poesia homérica com o sentido de “em volta de” (Il. 16. 775: μαρναμένων ἀμφ’ αὐτόν, “enquanto combatiam ao redor dele”; Il. 17. 388: ἀμφ’ ἀγαθὸν θεράποντα, “ao redor do bom escudeiro”). A meticulosidade cronológica com que Tirteu descreve os acontecimentos da guerra por meio de termos como ἐννέα καὶ δέκ’ ἔτη (“dezenove anos”, v. 4), πατέρων ἡμετέρων πατέρες (“pais de nossos pais”) e εἰκοστῶι (“no vigésimo ano”) poderia, segundo alguns autores93, sinalizar para um cuidado que apenas mais tarde se tornaria praxe com a prosa historiográica. Entretanto, é mais provável que a demarcação temporal feita pelo poeta não ocorra por uma necessidade de delimitar com precisão os eventos, como na historiograia, mas antes seja um recurso tópico para anotar uma duração vaga de tempo, como já se veriica em Homero (Ver West, 2011, p. 84). Na Ilíada, o período de nove 93 Ver Bowie, 1986, p. 30, mas com as ressalvas feitas em Bowie, 2010, p. 147. 260 capítulo 1 – a poética da eunomia dias ou nove anos (com algo de novo ocorrendo no décimo) é típico94, como por exemplo, nota-se em Il. 1. 53-54: Ἐννῆμαρ μὲν ἀνὰ στρατὸν ᾤχετο κῆλα θεοῖο, τῇ δεκάτῃ δ’ ἀγορὴν δὲ καλέσσατο λαὸν Ἀχιλλεύς· Por nove dias as lechas do Deus percorriam o exército, mas no décimo, Aquiles convocou a tropa à assembleia. εἰκοστῶι também é um número típico, normalmente evocado para indicar o ano do regresso de Odisseu à Ítaca contado a partir do início da guerra de Troia95. Que seu uso também era tradicional é demonstrado por uma passagem da Ilíada (24.765766), na qual Helena declara que se passaram vinte anos desde a sua partida de Esparta para Troia (Ver West, 2011, p. 427)96: 94 95 96 ἤδη γὰρ νῦν μοι τόδε εἰκοστὸν ἔτος ἐστὶν ἐξ οὗ κεῖθεν ἔβην καὶ ἐμῆς ἀπελήλυθα πάτρης· (765) Sim, pois este já é o meu vigésimo ano desde que saí de lá e deixei a minha pátria. (765) Em Odisseia, 22.v. 228, por exemplo, Atena diz que “Odisseu lutou contra os Troianos por nove anos” (εἰνάετες Τρώεσσιν ἐμάρναο), um número não condizente com a total extensão da Guerra de Troia, mas que é condizente com a dicção épica. Od. 2.175; 5.34; 16.206; 17.327; 19.222; 21.208; 23.102; 170; 24.321. Um indício de que εἰκοστῶι poderia indicar antes uma inluência de matiz épica é a própria incerteza quanto à duração da Segunda Guerra da Messênia nas fontes. Pseudo-Longino (Do sublime, 4.2) relata que a conquista teria se dado em trinta anos (οἱ μὲν <ἐν> τριάκοντα ἔτεσι Μεσσήνην παρέλαβον). Mas não se pode airmar de quais fontes o autor de Do Sublime dispunha, e se não eram tão tardias quanto as de Pausânias ou Estrabão. 261 as elegias de tirteu O verso quinto inicia-se com νωλεμέως (“incessantemente”, “sem trégua”), advérbio comum na Ilíada sempre em início de verso, e frequentemente acompanhado por αἰεὶ. Na Ilíada, seu uso em geral está associado à persistência em combate e, por extensão, designará na Odisseia a resistência de seu protagonista não só na guerra, mas nas diversas provas que lhe são impostas em sua jornada (um exemplo é Od. 9.435, no antro do Ciclope: νωλεμέως στρεφθεὶς ἐχόμην τετληότι θυμῷ). É inevitável associar este termo com a virtude que Tirteu incita em seus interlocutores, a capacidade de se manter imóveis ante à investida do inimigo (Ver, por exemplo, fr. 11. 21-22 W = 10.31-32 W). Em outro fragmento, o guerreiro que permanece irme e sem interrupção no combate é considerado um bem comum (ξυνὸν ἐσθλὸν) à cidade e ao povo (12.15-17): ξυνὸν δ’ ἐσθλὸν τοῦτο πόληΐ τε παντί τε δήμωι, ὅστις ἀνὴρ διαβὰς ἐν προμάχοισι μένηι νωλεμέως, αἰσχρῆς δὲ φυγῆς ἐπὶ πάγχυ λάθηται (15) É esse um bem comum à cidade e ao povo todo, que um varão irme na vanguarda se mantenha, sem trégua, de todo se esqueça da torpe fuga (15) Porém, a expressão que conclui o verso, ταλασίφρονα θυμὸν ἔχοντες, sugere que o poeta deseja realçar aqui uma associação com um personagem da tradição épica, Odisseu. ταλασίφρων (“de coração paciente ou pertinaz” “corajoso”) é um epíteto fixo de Odisseu, e para alguns autores (Prato, 1968, p. 77; Grethlein, 2010, p. 5697) uma alusão direta ao próprio herói. De fato, analisando 97 “A conquista da Messênia é então equiparada a uma empresa digna de um Odisseu” 262 capítulo 1 – a poética da eunomia a presença do epíteto na literatura grega supérstite, nota-se que ele é utilizado predominantemente para Odisseu, e a presença da fórmula Ὀδυσσῆος ταλασίφρονος aparece não só na Ilíada, mas também na mélica do espartano Álcman, que se refere ao personagem da Odisseia da mesma maneira, o que poderia denotar o seu conhecimento da tradição épica e de mitos não tradicionalmente espartanos, mas pan-helênicos (Álcman, fr.80 PMG)98: καί ποκ’ Ὀδυσσῆος ταλασίφρονος ὤατ’ ἑταίρων Κίρκα ἐπαλείψασα E os ouvidos dos companheiros do pertinaz Odisseu, Circe, tendo ungido... Não é difícil imaginar que Tirteu, quase contemporâneo de Álcman, também conhecesse esta tradição, e igualasse a perseverança dos “πατέρων ἡμετέρων πατέρες” durante os vinte anos de guerra com a imagem de Odisseu e sua resistência lendária durante os vinte anos de périplos no mar e de cerco a Troia. O passado é retratado heroicamente, e com isso torna-se modelo de autoridade para o presente. πατέρων ἡμετέρων πατέρες já foi um termo longamente discutido entre os estudiosos desse poema; Pausânias (4.15) o interpreta como a terceira geração anterior à do poeta (τρίτῃ γενεᾷ, trítei genéai), um período que os estudiosos interessados em datar a primeira guerra da Messênia 99 julgam ser de setenta anos. Mas a expressão também tem tonalidades épicas e está presente em elegias narrativas como a de Simônides100: a menção à linha98 Ver Carey, 2010, p. 443, n.21 em ATHANASSAKI, L; BOWIE, E. (org) Archaic and Classical Choral Song, De Gruyter, 2010. 99 Ver Schwartz, E. p. 438, em Prato, C; p. 30*, n.112. 100 fr. 10.2 W: πατὴ]ρ προπάτωρ τε 263 as elegias de tirteu gem aristocrática e ao nome são as formas padrões encontradas pela tradição épica para conferir identidade e prestígio aos seus heróis101. Assim, no Canto 14 da Ilíada, Diomedes cita seu pai Tideu e avô Eneu, πατρὸς ἐμοῖο πατήρ, para justiicar seu discurso diante dos líderes mais velhos (Il. 14.113-118): πατρὸς δ’ ἐξ ἀγαθοῦ καὶ ἐγὼ γένος εὔχομαι εἶναι Τυδέος, ὃν Θήβῃσι χυτὴ κατὰ γαῖα καλύπτει. Πορθεῖ γὰρ τρεῖς παῖδες ἀμύμονες ἐξεγένοντο, οἴκεον δ’ ἐν Πλευρῶνι καὶ αἰπεινῇ Καλυδῶνι Ἄγριος ἠδὲ Μέλας, τρίτατος δ’ ἦν ἱππότα Οἰνεὺς πατρὸς ἐμοῖο πατήρ· ἀρετῇ δ’ ἦν ἔξοχος αὐτῶν. De um bom pai eu garanto que sou ilho, Tideu, a quem vela a terra de Tebas. Pois para Porteu vieram à luz três ilhos irrepreensíveis, que habitam em Plêuron e íngreme Calidônia, Agrio e Mela. O terceiro era o cavaleiro Eneu, pai do meu pai: Dentre eles, era exímio em virtude. (115) (115) O fragmento segue com demais expressões de ordem épica: πίονα ἔργα já é empregado desde a Ilíada e Odisseia para designar a rica propriedade (Ver Od. 4, 318: ἐσθίεταί μοι οἶκος, ὄλωλε δὲ πίονα ἔργα, “Devora meu lar, destroem as férteis lavouras”). Expressão aim é retomada também no fr. 10. 3 W de Tirteu – lá os espartanos derrotados devem abandonar sua cidade e seus 101 Por exemplo, quando Agamênon recomenda que Menelau exorte as tropas, chamando cada guerreiro pelo nome e pelo patronímico, “honrando a todos”: φθέγγεο δ’ ᾗ κεν ἴῃσθα καὶ ἐγρήγορθαι ἄνωχθι/πατρόθεν ἐκ γενεῆς ὀνομάζων ἄνδρα ἕκαστον πάντας κυδαίνων· μηδὲ μεγαλίζεο θυμῷ. “Convoca-os, onde quer que vás, e ordena que se reúnam,/Chamando cada guerreiro pela estirpe e pelo nome do pai;/Honra a todos! Não tenha coração soberbo.” 264 capítulo 1 – a poética da eunomia férteis campos (πίονας ἀγρούς), os mesmos que os pais dos pais conquistaram durante a primeira guerra. οἱ μὲν, no verso 5, é enfático (ver Denniston, 1954, p. 360) e traz uma ideia de progressão do argumento, tirando o foco dos espartanos e colocando-o sobre os seus inimigos.102 Há ênfase também por causa da primeira metade do hexâmetro, que assinala a transição por meio do metro predominante espondaico. Entretanto, o poeta não se detém em uma narrativa longa do conlito, mas brevemente pontua a fuga dos messênios do monte Itome (v. 5, φεῦγον). Tendo em vista o retrato que a fuga tem na poesia de Tirteu, no fragmento provavelmente não haveria a preocupação de retratar com detalhes a última batalha pela posse da Messênia (alguns autores sugerem que isso é narrado no fr. 23 W, que poderia ser outro poema) mas antes procederia na construção de um éthos para os messênios oposto àquele que o poeta deseja exaltar nos lacedemônios em suas elegias exortativas. A construção desse éthos poderia continuar nos fragmentos 6 e 7, nos quais o poeta relata um estado de penúria tão extremo que os Messênios são retratados chorando por seus próprios algozes). 103 Com base no fragmento, não se pode airmar que a elegia grega arcaica prevê elementos da historiograia ao registrar a data de eventos cronológicos, mas é certo que, retomando esse passado, Tirteu realiza uma epicização do mesmo, preenchendo-o com aspectos de um mundo heroico e aristocrático. 102 103 Ver um exemplo similar em Od.6. 7-12. O monte Itome circundava todos os vales adjacentes, e foi a sede natural da resistência dos Messênios, sob o comando do rei Aristodemo (ver De Martino e Vox, 1996, p. 552). Segundo o relato de Pausânias (IV, 14.1), porém, a maior parte dos Messênios não fugiu, mas permaneceu na região como escravos dos espartanos (Ver Fragmentos 6-7, infra). 265 as elegias de tirteu Além disso, a concisão do relato104 torna mais atraentes as hipóteses105 de que se trataria antes de um modelo de conduta para ins parenéticos do que um acurado registro histórico, embora nem o fragmento em si ou a sua fonte permitam conclusões sólidas. Os fragmento 6 e 7 Os fragmentos 6 e 7 W foram registrados por Pausânias (Descrição da Grécia, 4.14.4-5) como um testemunho das penas impostas aos Messênios ao término da Primeira Guerra da Messênia. Pausânias relata que diante da ausência de humanidade (φιλάνθρωπος; 4.14.6) dos espartanos, os messênios passam a preferir a morte em combate às suas atuais condições, levando assim ao levante liderado pelo herói Aristômenes. Estas penas incluíam um juramento que os impedia de causar novas revoltas, o pagamento de metade dos víveres que cultivassem em suas terras e a ida aos funerais de reis e autoridades espartanas (4.14.5): τὰ δὲ ἐς αὐτοὺς Μεσσηνίους παρὰ Λακεδαιμονίων ἔσχεν οὕτως · πρῶτον μὲν αὐτοῖς ἐπάγουσιν ὅρκον μήτε ἀποστῆναί ποτε ἀπ’ αὐτῶν μήτε ἄλλο ἐργάσασθαι νεώτερον μηδέν· δεύτερα δὲ φόρον μὲν οὐδένα ἐπέταξαν εἰρημένον, οἳ δὲ τῶν γεωργουμένων τροφῶν σφισιν ἀπέφερον ἐς Σπάρτην πάντων τὰ ἡμίσεα. προείρητο δὲ καὶ ἐπὶ τὰς ἐκφορὰς τῶν βασιλέων καὶ ἄλλων τῶν ἐν τέλει καὶ ἄνδρας ἐκ τῆς Μεσσηνίας καὶ τὰς γυναῖκας 104 105 Pausânias (4.14) chega a informar que Tirteu não teria mencionado quem eram os reis em seu tempo, durante a segunda guerra messênia. A ausência do nome de Polidoro no fragmento que nos restou também perturbou os estudiosos ao longo do tempo (Ver, por exemplo, Bach 1831, p. 86). Ver Prato, 1968, p. 75; Grethlein, 2010, p. 57. 266 capítulo 1 – a poética da eunomia ἐν ἐσθῆτι ἥκειν μελαίνῃ· καὶ τοῖς παραβᾶσιν ἐπέκειτο ποινή. <ἐς τὰς> τιμωρίας δὲ ἃς ὕβριζον ἐς τοὺς Μεσσηνίους, Τυρταίῳ πεποιημένα ἐστὶν · ὥσπερ ὄνοι μεγάλοις ἄχθεσι τειρόμενοι, δεσποσύνοισι φέροντες ἀναγκαίης ὑπὸ λυγρῆς ἥμισυ πᾶνθ` ὅσσων καρπὸν ἄρουρα φέρει No que concerne aos próprios Messênios, [a situação] junto aos espartanos era a seguinte: primeiro, atribuem-lhes um juramento para que não se revoltassem no futuro por conta destas coisas mesmas, tampouco empreendessem qualquer outra sedição novamente. Segundo, não impuseram qualquer tributo especíico, no entanto, levavam para Esparta metade do total de alimentos que eram cultivados. Prescrevia-se também que tanto homens quanto mulheres da Messênia fossem com vestes negras aos funerais de reis e de outras autoridades, e uma pena era aplicada aos transgressores. <Para as> punições que ultrajavam os Messênios, há o que o que foi composto por Tirteu: Como asnos oprimidos por ingentes fardos levando aos senhores, sob triste necessidade, metade de todo o fruto que a terra produz Alguns estudiosos106 rejeitaram a conexão deste fragmento com a Primeira Guerra Messênica, devido a uma aparente contradição no discurso de Pausânias: o periegeta conta em outro trecho (4.15.1) que a Messênia detinha certa liberdade política e lhe era permitido manter contato com outras cidades e mes106 Kahrstedt, U. 1919; Chrimes 1952 apud Prato 1968, p. 74. 267 as elegias de tirteu mo tomar decisões autônomas. Esta seria, aliás, a única explicação para os Messênios terem conseguido causar uma rebelião tão violenta e inligido importantes derrotas aos Lacedemônios mais tarde (4.14.8). Segundo Prato (1968, p. 31) e Wilamowitz (1900, p. 98, apud Prato 1968, p. 31) a contradição de Pausânias explica-se porque os lacedemônios não ocuparam todo o território da Messênia durante o primeiro confronto, mas teriam se limitado apenas à costa meridional, ao im da cadeia de montanhas de Itome. São aduzidos testemunhos históricos, como a participação de um messênio de nome Fanas nos jogos olímpicos anteriores à segunda guerra107, comprovando assim a liberdade de uma parte da Messênia e que a conquista de toda a região apenas se daria com o im do segundo conlito, já no tempo de Tirteu. Eliano (Várias Histórias, 6.1) relata os mesmos fatos atestados pelos fragmentos de Tirteu e Pausânias: Λακεδαιμόνιοι Μεσσηνίων κρατήσαντες τῶν μὲν γινομένων ἁπάντων ἐν τῇ Μεσσηνίᾳ τὰ ἡμίση ἐλάμβανον αὐτοί, καὶ τὰς γυναῖκας τὰς ἐλευθέρας ἐς τὰ πένθη βαδίζειν ἠνάγκαζον καὶ τοὺς ἀλλοτρίους καὶ μηδέν σφισι προσήκοντας νεκροὺς κλάειν· τοὺς δὲ τῶν ἀνδρῶν ἀπέλιπον γεωργεῖν, οὓς δὲ ἀπέδοντο, οὓς δὲ ἀπέκτειναν. 107 ἀπέθανον δὲ καὶ τῶν πρωτευόντων ἄλλοι τε καὶ Ἀνδροκλῆς καὶ Φίντας καὶ λόγου μάλιστα ἀξίως ἀγωνισάμενος Φάνας, ὃς πρότερον τούτων ἔτι δολίχου νίκην Ὀλυμπίασιν ἦν ἀνῃρημένος. (Também morreram outros líderes: Andrôcles, Fintas, e Fanas, depois de um confronto muito digno de nota. Antes disso, este ainda havia levado nas Olimpíadas o prêmio na corrida de longa extensão). 268 capítulo 1 – a poética da eunomia Por terem vencido os Messênios, os Lacedemônios recebiam a metade de tudo o que era produzido na Messênia; compeliam as mulheres livres a irem aos funerais, e a chorar por mortos alheios e nada familiares a elas. Dos homens, deixaram alguns para cultivarem os campos, venderam uns e mataram outros. Muito se questionou sobre o sentido dos fragmentos 6 e 7 W: por que Tirteu teria retratado de maneira patética e humilhante a condição dos inimigos? Em que contexto estes versos poderiam ter sido recitados? O símile homérico e o símile tirtaico (fr. 6. 1 W e fr. 13 W) Pomtow (1881, apud De Falco & Coimbra 1941, p. 163) foi o primeiro a sugerir que os dois fragmentos estavam em sequência e também ligados ao fragmento 5 W. Segundo o estudioso, entre os fragmentos 5 e 6 W perdera-se apenas um hexâmetro, no qual constava uma oração com οἱ δέ, traçando uma simetria com οἱ μὲν de 5.7 W. O sentido, para Pomtow, seria algo como: “Uns deixaram as férteis lavouras de Itome e fugiram; os outros foram escravizados e, como asnos...”. De Falco e Coimbra (1941, p. 163) aceitam esta hipótese, conjecturando que tanto o fragmento 5 W quanto os fragmentos 6 e 7 W tinham a mesma função: relembrar aos espartanos as vantagens da conquista da Messênia e as duras condições da escravidão às quais os vencidos são submetidos. A maioria dos editores e comentadores não concorda com essa ligação entre os fragmentos, mas julga possível que tanto 6 W quanto 7 W izessem parte de um mesmo poema108, uma vez 108 Chegando a editá-los como um único fragmento, como é o caso da edição de Gentilli-Prato (Fr. 5 G-P). 269 as elegias de tirteu que o tema de ambos é o mesmo, retratar a punição recebida pelos messênios depois da primeira guerra: enquanto 6 W trata da exploração econômica que sofreram, 7 W retrata a sua degradação moral. As interpretações acerca do poema divergem: Bergk (1882) sugeriu primeiro que o poema é uma demonstração de piedade do poeta para com os vencidos. Jacoby (1918, p. 2), Prato (1968, p. 79), Gentilli e Perrota (2007, p. 24), por sua vez, acreditavam que o poema tinha uma função exortatória e paradigmática: mais do que apenas uma descrição da sorte reservada aos escravos, o poeta também projetaria, implicitamente, uma advertência ao destino reservado para os próprios espartanos, caso fossem subjugados pelos adversários. Luginbill (2002, p. 410) crê que o poeta relembra a condição degradante dos Messênios com o intuito de incutir em seus interlocutores o sentimento de humilhação com a possibilidade de serem derrotados por inimigos que já foram vencidos antes e encontram-se em situação tão aviltante. A leitura dos fragmentos de Tirteu pode tornar plausível a hipótese de Luginbill. Na maior parte de seus fragmentos exortativos, Tirteu não exalta apenas a glória da guerra e os benefícios para o soldado que participa dela, mas também sublinha aspectos sombrios e pragmáticos, um traço inexistente na poesia épica (Luginbill 2002, p. 410): se o poeta airma que “Morrer, caído na linha de frente é belo” (10.1 W) é porque está pensando na conduta oposta, a fuga, que gera pobreza, humilhação e vergonha (vv. 3-10): τὴν δ’ αὐτοῦ προλιπόντα πόλιν καὶ πίονας ἀγρούς πτωχεύειν πάντων ἔστ’ ἀνιηρότατον, 270 capítulo 1 – a poética da eunomia πλαζόμενον σὺν μητρὶ φίληι καὶ πατρὶ γέροντι παισί τε σὺν μικροῖς κουριδίηι τ’ ἀλόχωι. ἐχθρὸς μὲν γὰρ τοῖσι μετέσσεται οὕς κεν ἵκηται, χρησμοσύνηι τ’ εἴκων καὶ στυγερῆι πενίηι, αἰσχύνει τε γένος, κατὰ δ’ ἀγλαὸν εἶδος ἐλέγχει, πᾶσα δ’ ἀτιμίη καὶ κακότης ἕπεται. Mas mendigar, deixando sua cidade e férteis campos, de tudo é o mais penoso, vagando com a cara mãe e o velho pai, ilhos pequenos e esposa legítima. Será odioso entre aqueles a quem chegar, pois cede à carência e à pobreza horrível, envergonha a linhagem, vexa a forma esplêndida, e toda a desonra e vileza o seguem. (5) (5) Não é estranho à poética de Tirteu que uma imagem expressiva seja construída logo em seguida a um argumento para realçá-lo e avivá-lo para a sua audiência. No caso do poema em questão, Tirteu constrói um símile que enfatiza a condição degradante de seus inimigos. A capacidade de criação destas imagens vívidas na memória dos ouvintes, denominada ἐνάργεια (enárgeia), é um dos recursos mais profícuos da poesia de Tirteu109: por exemplo, no fragmento 11 W, como já anota Noussia (2010, p. 18), o poeta intercala as suas exortações com descrições vívidas de um guerreiro em plena luta, coberto com seu escudo, agitando a lança e lutando em combate corpo a corpo contra o seu adversário 109 Ver os comentários ao fr. 10 W. 271 as elegias de tirteu (vv. 21-34)110. O mesmo se repete em outros fragmentos: em 10.19-20 W a exortação para não fugir da luta e abandonar os anciãos é seguida por uma descrição detalhada da morte vergonhosa sofrida por eles (10.21-26 W). Segundo Kenneth Sniepes em Literary Interpretations in the Homeric Scholia: the similes of the Iliad (1988, pp. 208-209), provocar ἐνάργεια era considerada pelos antigos111 como um dos principais objetivos do símile homérico 112, e é provavelmente com esse objetivo que Tirteu também o emprega aqui. Edwards (1991, p. 25) distingue duas formas de símile na poesia homérica: uma, breve, que se comporta tal qual um epíteto formular, e outra, estendida – cujo uso é uma especialidade da poesia épica e é raro em Hesíodo e nos Hinos. O símile estendido consiste em desenvolver um símile breve com uma oração relativa, especiicando um ou mais elementos daquela comparação e criando uma espécie de parábola.113 Estes símiles longos podem ser de dois tipos: Os símiles pospostos são aqueles que exemplificam algo já exposto pela narrativa, isto é, ocorrem após o referente (Edwards, p. 26, aduz o exemplo de Il. 17, 262-266). Os símiles prepostos são aqueles em que o símile é introduzido antes do referente, como em Il. 23. 222-224 (Edwards, 1991, p. 28). 110 Ver comentários ao fr. 11 W. 111 Ver Eustácio, I, 270.23-30; Demétrio, Da Elocução, 209. 112 113 Juntamente com a αὔξησις (“ampliicação”), σαφηνής (“clareza”) e ποικιλíα (“variedade”). Utilizo os termos empregados por Nünlist e De Jong, em Latacz, Ilias Gesamtkommentar:Prolegomena, 2009, que dão o nome de “Gleichnis” (“Parábola”) para o símile estendido. 272 capítulo 1 – a poética da eunomia Nas elegias de Tirteu, há a ocorrência de três símiles, o que, em um corpus escasso como este, poderia sugerir um uso frequente. O relato de uma corrida de cavalos no fragmento 20. 6-14 W é muito fragmentário, mas provavelmente trata-se de uma comparação entre o universo dos jogos atléticos e o da guerra, uma associação que já se veriica em outros fragmentos (como por exemplo, 12 e 14 W) e que poderia ser comum na poesia de Tirteu. Tratar-se-ia, provavelmente, de um símile posposto inserido em uma narrativa bélica: [ ].[.].[.₍.₎]ε̣ι̣κε̣λ̣ο̣ν̣[..]..[ ] [ ]α̣ φέρειν [ ἀ]ε̣θλ̣ο̣φ̣[ό]ροι περὶ νίκης [ τέ]ρμ’ ἐπιδερκόμενοι [ καλ]λ̣ί̣τροχον ἅρμα φέροντες [ ]όμενοι [ ]εύοντας ὄπισ̣ θεν [ ]χα ̣ ίτα̣ ς ̣ ὑ̣πὲρ κεφαλῆς [ ]συνοίσομεν ὀξὺν ἄρηα ].[.] [. (.)] semelhante [..]..[ ] ](?) levar [p]rem[i]ados pela vitória contemplando a [me]ta conduzindo carro de [bel]as rodas ](?) ] (?) para trás ]as melenas sobre a cabeça ]suportaremos a pungente guerra 273 (10) (10) as elegias de tirteu Uma metáfora também é registrada por Galeno, na obra Das Doutrinas de Hipócrates e Platão (3.209 = fr. 13 W): αἲθωνος δὲ λέοντος ἒχων ἐν στήθεσι θυμόν Tendo no peito o ânimo de árdego leão Apesar de muito exíguo (não sabemos se o verso fez parte de uma narrativa ou de um poema exortativo), o símile do leão é um dos mais comuns na poesia épica militar e usado frequentemente para enfatizar as principais virtudes do guerreiro: a ἀλκή (alké), sua coragem combinada à força física, e o μένος (ménos), o furor que o impulsiona ao combate (Ver Clarke, 1995, p. 149). O raro epíteto θυμολέοντα (thumoléonta “coração de leão”) é empregado na épica para os combatentes que apresentam o ápice deste vigor combativo, como é o caso de Aquiles e Héracles.114 É nesses mesmos termos que o próprio Galeno – que decerto tinha acesso a outras partes do poema – explica o símile (3.309): Τυρταῖος δέ γε, καθάπερ οὖν καὶ Ὅμηρος καὶ Ἡσίοδος καὶ ἁπλῶς εἰπεῖν ἅπαντες οἱ ποιηταί, σφοδρότατον ἔχειν φησὶ τοὺς λέοντας τὸν θυμόν, ὥστε καὶ τῶν ἀνθρώπων ὅστις ἂν ᾖ θυμοειδέστατος, εἰκάζουσι λέοντι (...) Tirteu, assim como Homero e Hesíodo, e, para dizer de modo simples, todos os poetas, airmam que leões têm o ânimo mais violento 114 Em todas as passagens em que θυμολέοντα ocorre sempre é enfatizada a capacidade desses guerreiros de dizimar sozinhos grandes porções do exército: existe a fórmula de Aquiles, Ἀχιλλῆα ῥηξήνορα θυμολέοντα (“Aquiles rompe-falange coração de leão”), mas também Héracles, quando Tlepólemo menciona a desolação provocada pelo filho de Zeus sozinho, na Troia de outrora (Il. 5.638-642). 274 capítulo 1 – a poética da eunomia (sphodrótaton), de modo que comparam a um leão o homem que seja extremamente corajoso (thumoeidéstatos). Nesse sentido, a metáfora do leão no fragmento 13 W signiicaria, em termos mais vívidos, o mesmo ἄλκιμον θυμόν que o poeta conclama aos seus interlocutores em outros fragmentos (10.17 W, 10.24 W) e que é uma expressão típica da elegia exortativa marcial (Ver Calino, 1.1 W, κότ’ ἄλκιμον ἕξετε θυμόν, “quando tereis um valente ânimo?”). Bem distinta parece ser a imagem que Tirteu quer evocar no fragmento 6 W. O primeiro verso que temos, um pentâmetro, já introduz o símile: ὥσπερ ὄνοι μεγάλοις ἄχθεσι τειρόμενοι, Como asnos, oprimidos por ingentes fardos Não se sabe o que viria antes deste verso, mas Pausânias informa que o símile se referia aos messênios e às punições que os ultrajavam (<ἐς τὰς> τιμωρίας δὲ ἃς ὕβριζον ἐς τοὺς Μεσσηνίους, Τυρταίῳ πεποιημένα ἐστὶν, 4.14.5). O símile do asno é raro na poesia épica e elegíaca do período arcaico115, sendo ele apresentado apenas como um animal de carga resistente a maus tratos, uma característica que compartilha com as mulas (ἡμίονος), cujo epíteto principal na epopeia homérica é ταλαεργός, “robusta para o trabalho” 116 (Ver Corrêa, 2010, p. 285). Segundo Corrêa (2010, p. 288) os textos mais tardios de Pseudo- Luciano (Asinus), Apuleio (Metamorfoses, 7-11) e Artemidoro (1.37) enfatizam o aspecto 115 Apenas uma menção em Homero (Il.11.558-566) e uma no corpus elegíaco (Teognideia, 183-185). 116 Il 23.654, 23.662, 23.666, Od .4.636, 21,23. 275 as elegias de tirteu miserável da vida do asno no campo, que sofre todo o tipo de injustiças como escravo. Essa parece ser característica que Tirteu quer atribuir aos messênios ao fazer a comparação, e nem tanto a tenacidade e resistência dos asnos, atributos de que Homero se serve para tecer um símile entre Ájax e o animal no Canto XI da Ilíada, vv. 558–566. (Ver Corrêa, 2010, pp. 282-284). A punição dos messênios (fr. 6.2-3 e fr. 7) A vida de trabalhos incessantes dos Messênios é descrita brevemente nos versos seguintes (vv. 2-3), onde o poeta informa que os Messênios eram constrangidos a levar metade do alimento que produziam para seus senhores espartanos. No entanto, a punição aos Messênios não era apenas econômica, mas também moral. Se os fragmentos 6 e 7 W fazem parte de um mesmo poema, o que é bem provável, a exploração física sofrida pelos messênios no fragmento 6 serve para realçar o páthos do fragmento 7 W, onde os vencidos são obrigados a prantear publicamente aqueles que os castigam, perdendo assim o restante de sua honra. Os dois versos restantes conservados por Pausânias relatam esta pena destinada aos escravos, obrigados a comparecer nos funerais de reis e outras autoridades : ὅτι δὲ καὶ συμπενθεῖν ἔκειτο αὐτοῖς ἀνάγκη, δεδήλωκεν ἐν τῷδε· δεσπότας οἰμώζοντες, ὁμῶς ἄλοχοί τε καὶ αὐτοί, εὖτέ τιν’ οὐλομένη μοῖρα κίχοι θανάτου. Que a necessidade punha-os a prantear juntos está evidente neste [dístico]: 276 capítulo 1 – a poética da eunomia pelos seus senhores, os homens e as mulheres lamentavam, sempre que o destino destrutivo da morte encontrava algum. Em Esparta, de fato, havia no século V a.C. o costume de que toda uma cidade, tanto seus cidadãos quanto os hilotas, deveriam comparecer aos funerais e guardar luto de seus reis. Heródoto disserta a respeito da cerimônia (6.58. 2-3): νόμος δὲ τοῖσι Λακεδαιμονίοισι κατὰ τῶν βασιλέων τοὺς θανάτους ἐστὶ ὡυτὸς καὶ τοῖσι βαρβάροισι τοῖσι ἐν τῇ Ἀσίῃ· τῶν γὰρ ὦν βαρβάρων οἱ πλεῦνες τῷ αὐτῷ νόμῳ χρέωνται κατὰ τοὺς θανάτους τῶν βασιλέων. ἐπεὰν γὰρ ἀποθάνῃ βασιλεὺς Λακεδαιμονίων, ἐκ πάσης δεῖ Λακεδαίμονος, χωρὶς Σπαρτιητέων, ἀριθμῷ τῶν περιοίκων ἀναγκαστοὺς ἐς τὸ κῆδος ἰέναι· τούτων ὦν καὶ τῶν εἱλωτέων καὶ αὐτῶν Σπαρτιητέων ἐπεὰν συλλεχθέωσι ἐς τὠυτὸ πολλαὶ χιλιάδες, σύμμιγα τῇσι γυναιξὶ κόπτονταί τε τὰ μέτωπα προθύμως καὶ οἰμωγῇ διαχρέωνται ἀπλέτῳ, φάμενοι τὸν ὕστατον αἰεὶ ἀπογενόμενον τῶν βασιλέων, τοῦτον δὴ γενέσθαι ἄριστον. Há um costume (nomos) entre os Lacedemônios com relação à morte de seus reis que é igual ao dos bárbaros da Ásia. De fato, a maioria dos bárbaros utiliza-se deste mesmo costume para com a morte de seus reis. Quando morre o rei dos Lacedemônios, é obrigatório a um número de periecos, provenientes de toda a Lacedemônia, irem ao funeral, além dos espartanos. Quando então milhares desses [periecos], de Hilotas e dos próprios Espartanos estão reunidos no mesmo local, misturados com as mulheres golpeiam a fronte violentamente e se valem de lamentos imensuráveis, falando a cada instante que o falecido último rei havia sido o melhor. 277 as elegias de tirteu Cecilia Nobili, no artigo “Threnodic Elegies in Sparta” (2011, p. 42), acredita que o depoimento de Heródoto sinaliza para uma prática comum de cantos lamentosos na Esparta arcaica, associados pela autora a uma possível escola de elegias trenódicas. Talvez o próprio Tirteu já tivesse conhecido esta prática, e o verso 28 do fragmento 12 W, ἀργαλέωι δὲ πόθωι πᾶσα κέκηδε πόλις (“com dolorosa saudade, toda a cidade se enluta”), não seja somente uma ampliicação retórica, mas também um registro deste costume espartano. Se considerarmos que a Eunomia poderia introduzir discursos em meio a narrações e exortações, não seria estranho supor que o fragmento 7 W pudesse incluir um lamento aos reis, da mesma maneira que ocorre com o oráculo citado no fr. 4 W. A primeira palavra do verso 1 do fragmento 7, δεσπότας, chama a atenção não só por estar em início de verso, mas também por conta do acusativo plural em α breve, considerado pela maioria dos estudiosos como dórico. 117 Como ocorre em outros fragmentos de Tirteu, talvez o uso do dórico seja um efeito estilístico já pretendido pelo poeta, a im de assinalar a sua poesia como um produto propriamente espartano em um cenário de reperformances pan-helênicas. Não parece ser fortuita a escolha em enfatizar esta palavra, pois outra similar, do fragmento 6 W, recebe igualmente destaque: trata-se do dativo δεσποσύνοισι (6.2 W). A palavra, normalmente um adjetivo (“o que pertence aos senhores”, “senhorial”) exerce neste verso a rara função de substantivo e ocupa toda a parte inicial do hexâmetro até o inal do segundo troqueu. 117 Schwyzer, Grieschische Grammatik I, p. 559 apud Defradas, 1962, p. 28; Gentilli, 2007, p. 25; De Martino & Vox, p. 554. 278 capítulo 1 – a poética da eunomia Segue-se um verso pesado, que encerra abruptamente o poema com um tom escuro, graças a assonância de vogais fechadas e à combinação incomum de três palavras extremamente negativas (οὐλομένη, μοῖρα, θανάτου). Ressalte-se que a expressão “μοῖρα κίχοι θανάτου” é propriamente elegíaca, ocorrendo com frequência em outros poetas elegíacos: no fragmento 1. 15 W, Calino usa μοῖρα κίχεν θανάτου para descrever o soldado que sobrevive à guerra apenas para encontrar a morte em sua casa. Este uso aparenta ser formular, como demonstra o “diálogo a distância” entre Mimnermo (fr. 6 W, “ἑξηκονταέτη μοῖρα κίχοι θανάτου”) e Sólon (fr. 20 W, “ὀγδωκονταέτη μοῖρα κίχοι θανάτου”) sobre a duração da vida. O verbo κιχάνω (“deparar”, “atingir”) personiica o sujeito μοῖρα θανάτου, em um processo comum à elegia política e marcial (ver, por exemplo, Sólon, fr. 4. 26-28 W). Destarte, o fato de Tirteu representar nestes versos a violência do domínio espartano sobre os Messênios não seria uma demonstração de piedade para com os vencidos, como pretendeu Bergk, mas antes se insere em um registro do pensamento grego, o de “violência justa” (Ver De Martino e Vox, 1996, pp. 553-554, Lloyd-Jones, 1972, pp. 55-56). A ideia, uma espécie de oximoro moral, é rara na poesia arcaica, mas encontra paralelos: essa seria a explicação mais plausível para a expressão ἀργαλέης ὕβριος ἡγεμόνες (“condutores da dura violência”) no fr. 9 W de Mimnermo, utilizada para caracterizar os colonizadores de Cólofon; no fragmento 36 W, Sólon equaciona termos díspares como βίη (“força, violência”) e δίκη (vv. 15-17), e os versos 39 a 52 da Teognideia mencionam o tirano como uma punição para a ὓβρις da cidade. 118 118 Segundo Irwin, 2005, pp. 205-261 (especialmente pp. 221-230) a associação entre βίη e δίκη corresponde a uma peculiaridade própria do discurso da tirania. 279 as elegias de tirteu Mas talvez a referência mais signiicativa esteja em Píndaro, que em um de seus fragmentos, alude a esse conceito ao tratar dos trabalhos de Héracles (fr. 169a, vv. 1-5, Sn - M): Νόμος ὁ πάντων βασιλεύς θνατῶν τε καὶ ἀθανάτων ἄγει δικαιῶν τὸ βιαιότατον ὑπερτάτᾳ χειρί. τεκμαίρομαι ἔργοισιν Ἡρακλέος· (5) Nomos, rei de todos, de mortais e imortais, rege tornando justa a maior violência com mão suprema. Comprovo-o com as proezas de Héracles... (5) Outras passagens sobre Héracles parecem frequentemente retratá-lo como um “justiceiro violento”: é o caso de Pisandro (Heracleia fr. 10 Bernabé: δικαιοτάτου δὲ φονῆος, “assassino justíssimo”) e talvez o Hino Homérico 15, que deine os atos de Héracles como ἀτάσθαλα (“insolentes”, “temerários”), termo que nunca é empregado positivamente na poesia hexamétrica grega arcaica. Nesse contexto, a punição inligida aos Messênios adquire tons universais: aos olhos de Tirteu, esta é a consequência justa para todos aqueles que são vencidos na guerra: o exemplo, ao mesmo tempo em que rebaixa o inimigo, serve como alerta para que os próprios espartanos jamais sejam derrotados e caiam em situação igual. É nesses termos que os fragmentos 6 e 7 poderiam inserir-se na Eunomia, pois oferecem um colapso do sistema político delineado no restante do poema (sobretudo no fragmento 4 W). 280 III . As Elegias Fragmentárias dEscriçõEs dE guErrA: os frAgmEnTos 18-23A W O texto visa a uma consideração sobre os fragmentos 1823 W e 23a W de Tirteu. Em um primeiro momento, a análise ocupa-se de uma consideração acerca da fonte e de sua possível conexão com os demais fragmentos que a constituíam. Um segundo movimento busca estudar a relação entre o fragmento 19 W e os fragmentos parenéticos 10 W, 11 W e 12 W, de modo a encontrar similaridades ou diferenças temáticas que contribuam para a compreensão do poema. O papiro de Berlim e os fragmentos 18-23 W Diferente dos demais fragmentos que compõe o corpus de elegias tirtaicas, os fragmentos aqui estudados provêm de fontes de transmissão direta. O papiro editado por Martin L. West em Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati (1991) é oriundo do período ptolomaico, de meados do século III a.C. West (1974, p. 187) explica que restaram três partes do papiro, que apresentam duas colunas de texto – redigidas, como de praxe, em scriptio continua e de extensão desconhecida. Segundo De Falco (1941, p. 150) o assim chamado Papyrus Berolinensis 1175 foi primeiro publicado por Wilamowitz em 1918, que prontamente o atribuiu a Tirteu. A edição de West distingue seis fragmentos nas duas colunas, que não necessariamente pertenciam a um mesmo poema. A as elegias de tirteu primeira coluna, praticamente ilegível, compõem os fragmentos classiicados como 18 W, 20 W e 22 W. Segundo De Falco (1941, p. 151), revelam unicamente a forte adesão de Tirteu a um vocabulário comum à tradição épica, aspecto de sua obra já denotado em outros de seus fragmentos: Fragmento 18 W [ [ α]γ̣αλλομένη ]α̣ κα̣ι̣ κροκόεντα desunt versus tres [ [ ]π̣υ̣[..₍.₎].[.]ν̣ τερ]άεσσι Διός [u]fanando-se (ela) ... ](?) e cróceo... Faltam três versos ](?)[..(.).] [ ] (?) aos pre]sságios de Zeus Fragmento 20 W (= P.Berol, 11675, fr. B col.i) [ [ [ [ [ [ Διωνύσο]ι̣ο τιθήνηι̣ -κό]μου Σεμέλης[] ]ω̣ ε̣μψ̣ .[...]σει ] ].[ ] ]με̣νη̣ ̣[ ] 284 5 descrições de guerra [ ].[.].[.₍.₎]ε̣ι ̣κε̣λ̣ον̣ [̣ ..]..[ ] [ ]α̣ φέρειν [ ἀ]ε̣θλ̣οφ ̣ ̣ [ό]ροι περὶ νίκης [ τέ]ρμ’ ἐπιδερκόμενοι [ καλ]λ̣ί̣τροχον ἅρμα φέροντες [ ]όμενοι [ ]εύοντας ὄπισ̣ θεν [ ]χα ̣ ίτα̣ ς ̣ ὑ̣πὲρ κεφαλῆς [ ]συνοίσομεν ὀξὺν ἄρηα [ ].θεσ̣ ι ̣ν̣.[.].[ ] [ ο]ὐδὲ λο̣γήσει [ ]σ̣έχων̣[ À nutriz de Dioniso, Sêmele de [ca]belos [ ] (?) [...] (?) ] ].[ ] ] (?)[ ] ].[.] [. (.)] semelhante [..]..[ ] ](?) levar p]rem[i]ados pela vitória contemplando a [me]ta conduzindo carro de [bel]as rodas ](?) ] (?) para trás ]as melenas sobre a cabeça ]suportaremos a pungente guerra ]. (?)[.] [ ] E n]ão levará em conta (?) 285 10 15 5 10 15 as elegias de tirteu Fragmento 22 W (P. Berol 11675. fr. C. col.i) [].ι̣ο̣ν [] [] [] []α̣ι̣ 5 Os fragmentos 19 W, 21 W e 23 W pertencem à segunda coluna, mais conservada e com alguns versos mutilados nas extremidades: Fragmento 19 W: [ ].[.₍.₎].οσ[ . -τ]ῆράς τε λίθων κα̣[ὶ . ]ν ἔθνεσιν εἰδομ[ένους . βρ]οτολοιγὸς Ἄρης ακ[ . ]ι̣θείηι, τοὺς δ’ ὑπερα̣[ . ].[.]ν ἐοικότες η̣[ .......]α̣ι̣ κοίληις ἀσπίσι φραξά̣μ̣[ενοι, χωρὶς Πάμφυλοί τε καὶ Ὑλλεῖς ἠδ̣[ὲ Δυμᾶνες, ἀνδροφόνους μελίας χερσὶν ἀν[ασχόμενοι. ....]δ’ ἀθανάτοισι θεοῖς ἐπὶ πάντ̣[α τρέποντες ....]ατερμ..ιηι πεισόμεθ’ ἡγεμ[ό ἀλλ’ εὐθὺς σύμπαντες ἀλοιησέο [μεν ἀ]ν̣δ̣ρ̣άσι̣ν̣ αἰχμηταῖς ἐγγύθεν ἱς[τάμενοι. δεινὸς δ’ ἀμφοτέρων ἔσται κτύποσ̣[ 286 5 10 descrições de guerra ἀ̣σ̣πίδα̣ς̣ εὐκύκλους ἀσπίσι τυπτ[ ]ή̣σουσιν ἐπ’ ἀλλήλοισι π[εσόντες· θώρηκε]ς̣ δ’ ἀνδρῶν στήθεσιν ἀμ[φι λοιγὸ]ν̣ ἐρωήσ̣ουσιν ἐρεικόμενο[ι αἱ δ’ ὑπὸ] χερμαδίων βαλλόμεναι μ[εγάλων χάλκεια]ι̣ κ̣[όρυ]θ̣εσ̣ κανα̣χὴ̣ν ἕξου[σι ] [.(.).] (?)[ ](?), pedras e... ...às tribos semelh[ando-se...] [ho]micida Ares (?)[ ]em linha reta, e aos de cima[ ](?) semelhantes à[?] ](?) com os côncavos escudos defende[ndo-se] à parte Panfílios, Hileos e[Dímanes] sust[endo] em suas mãos as lanças as[sassinas], ...]e aos imortais Deuses sobretud[o voltando-nos,] ...]sem saída...obedeçamos (aos líderes?) Mas todos nós diretamente avance[mos ma[ntendo] próximos aos lanceiros, ... e de ambos serão terríveis... os escudos, circulares, contra escudos esbaten[do-se] (?) ...ca[indo] uns sobre os outros : [as couraça]s em volt[a] do peito dos varões rompidas, mas escapam com ímpeto da m[orte [e os] e[lm]os brônze[os], abatidos [por] gr[andes pedras, provocar[ão] o estrondo. 287 15 20 5 10 15 20 as elegias de tirteu Fragmento 21 W (P.Berol 11675, fr. B col.ii) χαλκ̣[ ουδεμ̣[ πιπτ[ μαρνα̣[ Ἀργές[τ ὅσσουσ[ Ἀργές[τ ἀλλαρ̣[ εστη̣..[ [ ω̣[ ημελ̣[ ουταρ[ ἀλλὰ θ̣εο̣ι̣.[ οἷσι μέλει Σ̣[πάρτης ἱμερόεσσα πόλις .[...].[ φο̣ι̣[ Bronz[(e?) nenh[ (um ?) cai[( r?) lut[ (ar?) clarean[t(e?) (t)ant[(os?) clarean[t (e?) (?)[ (?)[ 5 10 15 5 288 descrições de guerra [ 10 (?)[ (?)[ (?) [ Mas os Deuses[ a quem im[porta a amável cidade de Esparta] ...[...].[ (?) [ 15 Fragmento 23 W (P. Berol 11675, fr. C. col ii) ο̣.[..]σ̣τευ̣ο̣[ ἑξείης πα[ τ̣εῖχος α.[.]ο̣σ̣τ̣η̣[ οισ̣.μ̣παλλο̣μ̣ε̣[ κλῆ̣ρος καὶ ταφ[ Μεσσην<ίω>ν[ τεῖχος τερυ̣[ οἱ μὲν γὰρ [ ἀντίοι ἱστ[α οἱ δ’ ἐκτὸς̣ [βελέων ἐν δὲ μέσοις ἡμεῖς σ̣.[ πύργου δυ[ λείψουσ’ ἰλη̣[δὸν οἱ δ’ ὡς ἐκ πο[ κυ[.]αδ̣[ τοῖς ἴκελοι μ[ Ἥρης αἰδοίησ̣ [ εὖτ’ ἂν Τυνδ̣α̣ρ̣ί̣[δαι 5 10 15 289 as elegias de tirteu continuamente (?) [ a muralha (?) [.] (?) (neles disparam[os?) lote e (túmulo?)[ dos messênios [ a muralha (?) [ porque uns, (?) [ opostos (mantendo-se?)[ outros, longe de [dardos e nós, ao centro (?) [ da torre (?) [ deixaram em tr[opel, e assim (?) eles desde o (?) [ (?) [.](?)[ a eles semelhantes (?) [ da veneranda Hera [ quando os Tindár[idas 5 10 15 Edições anteriores à de West tendem a restituir estes fragmentos em uma só sequência: é o caso das edições de Gercke (1921), Sitzler (1925) e De Falco (1926), que dispõem o fragmento em seis colunas. Diehl (1949, apud Page, 1951, p. 12) rearranjou os fragmentos de modo a constituir duas colunas de 32 e 31 versos, mesclando resquícios de versos dos atuais fragmentos 18 W e 20 W. Page (1951, p. 12) observou que a emenda de α] γ̣αλλομένη (18.1) e α̣ κα̣ι̣ κροκόεντα (18.2) com, respectivamente, Μεσσην<ίω>ν (23.7) τεῖχος τερυ̣ [ (23.8) soa ingênua e altamente improvável. Nota também que certos versos encaixados como pentâmetros são mais encontrados em inícios de hexâmetros. 290 descrições de guerra West (1974, p. 187), por sua vez, observa que o fr. 23 W descreve uma situação de guerra distinta daquela do fr. 19 W e 20 W. Enquanto o fragmento 23 W parece fazer referência a um cerco a uma fortaleza messênica (Μεσσηνίων, v. 6, τεῖχος , vv. 3, 7; πύργου,v. 12), antecipando o im da batalha (West, 1974, p. 188), os outros dois narram o combate em pleno andamento. Ademais, se 19 e 20 izessem parte do mesmo poema, deve-se então inferir uma quantidade excessiva e inadequada de repetições (West, 1974, p. 187). De Falco e Coimbra (1941, p. 154), tomando os seis fragmentos como uma única elegia, consideraram que talvez esta pudesse ser a mais recente das exortações do corpus tirtaico, porque narra as batalhas derradeiras que culminaram na queda e posse de Ira, a fortaleza messênica, o que, como já sugere West (1974, p. 187), não se pode concluir devido à exiguidade dos fragmentos. O Papiro de Oxirrinco 3316 e o fragmento 23a W O fragmento 23a W provém de outra fonte, o Papiro de Oxirrinco 3316, descoberto em 1980. Data provavelmente do século III a.C., e seria uma elegia exortativa que trazia referências a um momento particular da Segunda Guerra da Messênia, a aliança entre Argivos e Arcádios já mencionada no fragmento 8. Sua atribuição a Tirteu – e não a outro poeta elegíaco marcial como Calino, por exemplo – se deve a uma possível referência aos espartanos no verso 21: ]...ισα.[...] φ θ ορα[ ].ὑπερ π[ο]λλὸν α [ ...[.].ενων [..]χει βέλε’ ἂγρ[ια γλαυκῶπις θυ[γ]ατηρ αἰγιόχ[οιο Διός 291 (10) as elegias de tirteu πολλοὶδὲ ξυστοῖσιν ἀκοντισσ[ α]ἰχμῆις ὀξείης ἂνδρες ἐπισ[ γ]υμνομάχοι προθε[ό]ντες ὑ.[ . .] καδες Ἀργείωνυνελ [...] χ ...].ιμεν παρὰ τεῖχ[ος . . .].θιηισιν · ὓδωρ . . [ . . .]παρ’ Ἀθηναὶης γ[λαυκώπιδος . . . ] ιψαντ. [.] ταφρο .[ .πάντ]ας μὲν κτενέουσ[ι Σπα]ρτιητέων ὁποσου[ς ἐξ]οπίσω φεύγοντας α[ ]...(?) [...] (?) [ ]. acima m[u]ito (?) [ ]...[ ] (?) [de]ter(?) os dardos fero[zes... A i[l]ha de olhos glaucos de [Zeus porta-égi]de Muitos com as lanças atir[arão, (?) varões com [l]anças pontiagudas (?)[ gu]erreiros desarmados corren[do] à frente sob (?)[ ](?) Argivos(?) [ ] (?) [ ] (?) junto à mur[alha ](?) : água [ ]ao lado de Atena de o[lhos glaucos] ](?)[ ] trinche[ira Matarã[o] a [tod]os os espar]tanos quanto[s, para a retaguarda fugindo, [ (15) (20) (10) (15) (20) O primeiro verso legível menciona “a ilha de olhos glaucos de Zeus porta-égide”(v. 11). Atena é referida em alguns 292 descrições de guerra fragmentos de batalha de Arquíloco ( como o fr. 94 W, v. 1: Ἀθηναίη e o 98 W, v. 7: παῖς Ἀθηναίη Διός) e no fragmento 14 W de Mimnermo, uma elegia que poderia ter integrado uma narrativa de batalha e que rememorava um guerreiro valoroso auxiliado pela Deusa1. O fragmento também menciona os γυμνομάχοι, “os guerreiros desarmados”, que já são mencionados no fragmento 11. 35 W. No fr. 23a W, eles são retratados “correndo à frente” (dos Argivos?) e atirando lanças pontiagudas. Sua função parece a mesma desempenhada no fragmento 11 W, mas o texto está muito mutilado para encontrar outras informações. Seguem ainda menções a “Argivos”; “muralhas’, “água”, e “trincheiras”. Todas essas leituras, porém, são muito incertas. O que é provável supor é que este fragmento, diferente de 18-23 W, não narrava um evento da Primeira Guerra; se dermos crédito à Pausânias (Descrição da Grécia, 4.15-16 = fr. 8 W), veremos que ele conheceu versos que relatavam uma aliança entre Argivos, Eleios e Pisanos e que o próprio Tirteu teria se retratado nesses versos como general: Πλεονάκις δ’ ἐπολέμησαν διὰ τὰς ἀποστάσεις τῶν Μεσσηνίων. τὴν μὲν οὖν πρώτην κατάκτησιν αὐτῶν φησι Τυρταῖος ἐν τοῖς ποιήμασι κατὰ τοὺς τῶν πατέρων πατέρας γενέσθαι· τὴν δὲ δευτέραν, καθ’ ἣν ἑλόμενοι συμμάχους Ἀργείους τε καὶ Ήλείους καὶ Πισάτας ἀπέστησαν, Ἀρκάδων μὲν Ἀριστοκράτην τὸν Ὀρχομενοῦ βασιλέα παρεχομένων στρατηγόν, Πισατῶν δὲ Πανταλέοντα τὸν Ὀμφαλίωνος· ἡνίκα φησὶν αὐτὸς στρατηγῆσαι τὸν πόλεμον τοῖς Λακεδαιμονίοις 1 Ver p. 118, para uma tradução deste fragmento. 293 as elegias de tirteu Amiúde izeram guerra por causa das insurreições dos Messênios. Tirteu diz em seus poemas que a primeira conquista deles ocorreu no tempo dos pais dos pais (fr. 5.6.) A segunda, no tempo em que se revoltaram, tendo escolhido aliados Argivos, Eleios e Pisanos. Os árcades ofereceram Aristócrates, rei dos Orcômenos, como general e os Pisanos [ofereceram] Pantaleão de Onfalion, enquanto pelos espartanos [Tirteu] diz que ele próprio foi o general. Poderíamos pensar que Tirteu de fato estivesse narrando aqui uma batalha contemporânea, da qual ele próprio participou – o poema, porém, está muito fragmentado para permitir qualquer conclusão. Vale salientar, porém, que uma menção à Atena também ocorre na Eunomia (fr. 2.16 W) logo após a menção a Zeus e aos Heraclidas (fr. 2.12-15 W), o que torna as hipóteses a respeito da guerra que Tirteu se referiu ainda mais difíceis. O fragmento 19 W: uma elegia exortativa? Como o fragmento 19 W se mostra o mais completo dentre os seis (Bowra, 1933, p. 63) pretende-se focar os comentários neste fragmento, fazendo breves alusões aos demais apenas quando necessário. O fragmento 19 W retrata um Eu vislumbrando, em entonação mais ou menos heróica (Irwin, 2005, p. 60), um combate a se travar em um futuro próximo, do mesmo modo que o fragmento 3 W de Arquíloco (West, 1974, p. 187). Para Bowra (1933, p. 63) pareceu que o poema não era tanto uma exortação ao combate, mas uma exortação à organização das tropas, o que o diferenciava das demais elegias de Tirteu. Tal consideração pode se depreender pelo verso 11, onde o poeta clama 294 descrições de guerra por obediência aos líderes. Mas a mistura de exortação ao combate e à organização das tropas em uma mesma elegia apresenta paralelos em outro fragmento de Tirteu. No fragmento 11. 35-38 W, ao concluir a descrição da batalha, o poeta dirige-se às tropas leves e indica-lhes sua posição no campo de batalha, de modo a deinir, por contraste, a eminência dos soldados que possuíam a panóplia: ὑμεῖς δ’, ὦ γυμνῆτες, ὑπ’ ἀσπίδος ἄλλοθεν ἄλλος πτώσσοντες μεγάλοις βάλλετε χερμαδίοις δούρασί τε ξεστοῖσιν ἀκοντίζοντες ἐς αὐτούς, τοῖσι πανόπλοισιν πλησίον ἱστάμενοι. (35) Vós, de armaduras leves, que se agacham aqui e ali sob os escudos, lançai grandes pedras arremessando polidas lanças contra eles e mantendo-vos perto dos de armadura completa. (35) Nesse sentido, a partir do que se pode depreender pelos versos que restaram, não parece haver grandes distinções entre o fragmento 19 W e os demais do corpus elegíaco exortativo de Tirteu. O que de fato parece ocorrer no contexto do poema é primeiro uma exortação à organização das tropas que enfatiza a marcha destemida dos guerreiros em direção ao combate, avançando em linha reta (v. 5) enquanto se defendem com o escudo (v. 7) e agitam suas lanças (v. 9). Para Hammond (1950, p. 51) a restituição ἀν[ασχόμενοι no verso 9 (sugerida primeiro por Diehl 1952, ver Hammond, 1950, p. 50) é “quase obrigatória”, levando-se em conta as palavras que a precedem (ἀνδροφόνους μελίας χερσὶν, “nas mãos os freixos assassinos de homens”). Nesse contexto, o verbo ἀνασχόμαι sugere o ato de erguer a lança no momento 295 as elegias de tirteu imediatamente anterior ao conlito, de modo a preparar uma investida ou arremessá-la. O particípio φραξά̣μ̣[ενοι (v. 7) sugere também uma ação preliminar à luta, a de defender-se sob o escudo enquanto se vai à frente (Hammond, 1950, p. 51), provavelmente para se proteger de projéteis (Ver Tirteu 11. 28-30 W). É evidente que o poeta apresenta uma cena de combate. Esta imagem é quase tópica na elegia marcial para descrever a ação do guerreiro valoroso no momento inicial do combate. É a ação de se dirigir às linhas de frente do combate, que oferece contraste à fuga. Desse modo também se coniguram os versos de Calino 1. 9-11 W: ἀλλά τις ἰθὺς ἴτω ἔγχος ἀνασχόμενος καὶ ὑπ’ ἀσπίδος ἄλκιμον ἦτορ ἔλσας, τὸ πρῶτον μειγνυμένου πολέμου. ... Mas que se vá direto brandindo a lança e resguardando sob o escudo um valente peito, assim que a luta se mesclar (10) . (10) E Tirteu 11. 4 W: ἰθὺς δ’ ἐς προμάχους ἀσπίδ’ ἀνὴρ ἐχέτω Que o varão, direto contra os dianteiros, sustenha o escudo Em seguida, o verso 12 introduz a partícula ἀλλά um marcador forte na poesia elegíaca marcial, que assinala a passagem entre um argumento e outro, geralmente expressando a transição de uma exortação para a ação para a ação propriamente requerida (Campbell, 1982, p. 171). Assim, com essa partícula, o poeta parece empreender também no fragmento 19 uma transição, e essa transição é a da exortação à marcha e organização das tropas para 296 descrições de guerra a exortação e descrição da batalha, que se estende até o verso 20, como já observara West (1974, p. 187). É cabível sugerir, ainda observando as possíveis similaridades entre este fragmento e os demais do corpus tirtaico, que o termo βροτολοιγὸς Ἂρης (“Ares homicida”) no verso 2 parece introduzir um eufemismo comum tanto ao gênero épico quanto à elegia marcial, que (geralmente) eleva o objeto de canto a um estatuto superior : o guerreiro que é morto na guerra perece pelas mãos do próprio Deus Ares (Irwin, 2005, p. 68), e torna-se eterno aos olhos de sua cidade, como mostra Tirteu fr. 12. 31-34 W: οὐδέ ποτε κλέος ἐσθλὸν ἀπόλλυται οὐδ’ ὄνομ’ αὐτοῦ, ἀλλ’ ὑπὸ γῆς περ ἐὼν γίνεται ἀθάνατος, ὅντιν’ ἀριστεύοντα μένοντά τε μαρνάμενόν τε γῆς πέρι καὶ παίδων θοῦρος Ἄρης ὀλέσηι. e jamais nobre glória ou o nome dele perecem, mas, mesmo sob a terra, se torna imortal aquele que, primando por manter-se em combate pela terra e pelos ilhos, o impetuoso Ares mata. Segundo West (1974, p. 187), os versos 6 ss. constituem uma menção aos hoplitas. Nesse sentido, é possível pensar que o poeta tivesse tratado de segmentos especíicos do exército, visando algum efeito expressivo, tal como ocorre também no fragmento 11 W? Se for aceita a restituição ao verso 2 sugerida por Diehl (apud West, 1974, p. 160 – βλητηρας) e pelo próprio West (τοξότας ανδρας), pode-se pensar que o poeta fala a respeito ou se dirige a diferentes grupos do exército, pois antecedendo à descrição dos versos 6-8, que provavelmente aludem ao combate corpo-a-corpo, teríamos o seguinte pentâmetro: 297 as elegias de tirteu βλητηρας τε λίθων και τοξότας ανδρας “atiradores de pedras e arqueiros” A menção da tropa em diversos agrupamentos distintos é, de certo modo, evidente no poema e engendra um recurso que será analisado à frente e já foi observado por Tarditi (1998, p. 173). No verso 8, diz-se que os espartanos lutam “à parte Panfílios, Hileus e Dímanes”. Segundo Wade-Gery (1944 b, pp. 119-120) o poema é uma prova de que, ainda à época de Tirteu, durante a segunda guerra da Messênia, as unidades do exército espartano eram equivalentes a cada uma das três tribos que constituíam todo o povo dório, cuja descendência provinha de um dos três ilhos de Héracles: Pânilo, Hilo ou Dimas. Hammond (1950, p. 52) aventou a possibilidade de que estes versos izessem referência a um combate anterior – provavelmente à primeira guerra da Messênia e ao modo de luta da geração anterior à de Tirteu – e serviriam assim de exemplo à batalha iminente que se pode entrever nos versos 10 ss. (apud Tarditi, 1998, p. 171). Chega a essa conclusão observando que o verbo que integra a oração principal (os versos 6-8) perdeu-se e que esses versos não dependem do futuro πεισόμεθα (v. 11). Tarditi (1983, p. 171) não vê, por outro lado, qualquer impedimento em considerar que os versos se referem a um momento atual – e apresenta como argumento o uso de ἡμεῖς no fragmento 23 W. Afora essas considerações, do ponto de vista textual parece haver um recurso expressivo ao partir da descrição do individual (vv. 1-8) para o conjunto unido no esforço da guerra (v. 12 ss.), uma vez que há uma contraposição entre χωρὶς (“à parte”, v. 8) e σύμπαντες (“todos”, v. 12) – conforme observa Tarditi (1998, p. 173) – que é evidenciada por ambos serem termos em 298 descrições de guerra destaque (escandidos com sílabas longas). Levando em conta que o v. 12 poderia marcar uma transição do argumento e adotando as emendas feitas por West, pode-se pensar que o poeta deliberadamente trabalha essa oposição de modo a agregar maior eiciência retórica em sua exortação: os exércitos que lutavam separadamente agora unem forças na iminência da batalha que se avizinha. Tarditi acrescenta, ainda, que o agrupamento do exército em tribos é uma característica do modo de guerra aristocrático (Tarditi, 1998, p. 172). Outro procedimento digno de nota é que todos os verbos que restaram encontram-se no futuro do indicativo πεισόμεθ’ (v. 11), ἀλοιησέο [μεν (v. 12) e ἕξου[σι (v. ). De Falco (1941, p. 154) nota que assim o poeta fornece a imagem de uma batalha aparentemente favorável aos espartanos, aumentando a eicácia de seu discurso. Se pensarmos em termos do simpósio aristocrático, novamente se pode falar em ἐνάργεια, na medida em que o poeta desenha para seus interlocutores a imagem de uma batalha prestes a acontecer. West (1974, p. 187) observa ainda mais similaridades com os demais fragmentos exortatórios de Tirteu. A ideia expressa em ἀ]ν̣δ̣ρ̣άσι̣ν̣ αἰχμηταῖς ἐγγύθεν ἱσ[τάμενοι (“postando próximo aos varões lanceiros”) pode sugerir algo similar ao que ocorre no fragmento 11. 38 W: os guerreiros leves se agrupam sob a guarda dos escudos de seus aliados melhor equipados; ou, em outra chave, poderia sugerir algo semelhante ao fragmento 12. 12 W: o guerreiro posta-se diante do inimigo e o enfrenta em distância corporal. O fragmento 19 W poderia, ainda, trazer uma argumentação similar àquela apresentada em 11. 2 W (que sinaliza a importância dos Deuses no desenrolar de eventos do combate ), caso seja adotada a restituição de West para o verso 10: 299 as elegias de tirteu οὓπω δ` αθανάτοισι θεοις επὶ πάντα τρέποντας “ainda não coniando tudo aos Deuses imortais” Conclui-se que, exceto pela utilização do futuro do indicativo (que pode constituir um traço poético interessante), o fragmento 19 W em nada difere dos demais fragmentos exortativos da obra de Tirteu: há uma vívida descrição da batalha, como em 11. 29-35 W ; elementos temáticos da poesia exortativa, como a exortação para avançar à linha de frente (vv. 5-8), permanecer “lado a lado” – seja do amigo-de-armas, seja do inimigo (v. 13) e cenas que parecem enfatizar a morte em combate (vv. 14-20, o epíteto de Ares em 19.2 W). Pode-se considerar que o uso do futuro constitui mesmo um traço interessante da poética exortativa sob o ponto de vista da prática simposial, embora não haja elementos suicientes para pensar em um tipo de “estratiicação heróica”, afeita ao simpósio aristocrático (Ver Irwin, 2005, pp. 29-35), do mesmo modo que parece ocorrer no fragmento 11 W, apenas a partir da divisão do exército e da (aparente) divisão das classes de combatentes. 300 considErAçõEs finAis Este trabalho ocupou-se, sobretudo, da tradução e dos comentários dos fragmentos de Tirteu que apresentam exortações ao combate ( 10, 11, 12 W) e dos versos fragmentários que teriam feito parte de um único e longo poema destinado à ocasião pública, denominado Eunomia. Esteve em nosso horizonte sempre contemplar essa poesia do ponto de vista de sua ocasião de performance, um critério fundamental no período arcaico para a deinição de um gênero poético (ou tendência composicional, como anota Chris Carey em “Genre, Occasion and Performance”, 2009, p. 9). Como observamos, o caso da poesia de Tirteu ainda é problemático; pois, se por um lado, o simpósio aparece como único espaço para a performance da elegia seguramente atestado, a poesia de Tirteu é frequentemente retratada como um ato de guerra, um discurso proferido diante das tropas com o intuito de exortá-las. Ao articular a relação entre elegia, simpósio e tradição épica, Elizabeth Irwin em Solon and Early Greek Poetry, The Politics of Exhortation (2005, p 30) apresentou uma proposta interessante: notando que é “claramente impossível” não reconhecer algum tipo de relação entre a poesia épica como representada por Homero, notadamente pela Ilíada, e os versos da elegia marcial, a autora propõe como elo entre eles a instância de exortação. Irwin (2005, p. 33) sugere uma mudança de foco em relação às correntes anteriores (que julgaram haver um desenvolvimento as elegias de tirteu de conceitos na elegia exortativa em relação à épica) para compreender a dinâmica entre tradição épica, poesia elegíaca militar e o seu contexto histórico-social. Nesse sentido, é necessário enfatizar não as diferenças, mas as similaridades óbvias que norteiam ambas as poesias, e, assim, explorar o que signiicaria ter apresentado tais similaridades no contexto social demarcado pela ocasião de performance do simpósio. Observamos que a autora encontra o elo entre ocasião de performance da elegia grega arcaica e a poesia épica nas cenas de banquetes apresentadas na Ilíada e na Odisseia, nas quais são revelados os privilégios e honras heróicas. A audiência do simpósio era composta unicamente por indivíduos detentores de privilégios, a saber, os membros da aristocracia. Nesse sentido, o simpósio se identiica com os banquetes da poesia épica, uma vez que os indivíduos que participam de ambos recebem privilégios por conta de seu status. Estaríamos diante, portanto, de uma audiência exclusiva: não se trata, por exemplo, do espaço público da ágora, onde noções políticas e menções a obrigações civis eram moduladas conforme a ocasião que se apresentava (Irwin, 2005, p. 11). Assim, ao apresentar uma exortação aim à poesia épica no ambiente simposial, o poeta grego, também ele um aristocrata, revela índices de estratiicação social que demarcam os privilégios recebidos por essa elite que toma parte do simpósio, visando assim uma identiicação entre os bens aristocráticos que eles partilham e os lugares de honra recebidos pelos heróis da epopeia. (Irwin, 2005, pp. 29-35). Uma vez que os heróis épicos recebem seus privilégios por serem os melhores dentre os seus e distintos por sua proeminência no combate, Irwin teoriza que ocorre, no âmbito do simpósio, uma iccionalização de papéis heróicos: são os 302 considerações Finais interlocutores de Tirteu que assumem o lugar dos aristocráticos heróis épicos. Portanto, uma das funções da elegia marcial praticada em âmbito simposial seria, a de asseverar uma identidade heróica aos participantes do simpósio, por meio de uma linguagem em comum com a tradição épica. Em que medida se veriica tal leitura a partir dos comentários aos fragmentos bélicos de Tirteu? No fragmento 10 W, foi possivel observar uma prescrição de conduta e um juízo valorativo por parte do poeta, de modo a construir um éthos de guerreiros avessos à fuga. Os valores lá apresentados condizem com o mundo da tradição épica, no entanto o cenário onde se desenvolvem era provavelmente o simpósio, como demonstra o vocabulário ambivalente, ético e estético, dos versos 19-30, que em nada deve a poetas elegíacos simposiais: αἰσχρὸν γὰρ δὴ τοῦτο, μετὰ προμάχοισι πεσόντα κεῖσθαι πρόσθε νέων ἄνδρα παλαιότερον, ἤδη λευκὸν ἔχοντα κάρη πολιόν τε γένειον, θυμὸν ἀποπνείοντ’ ἄλκιμον ἐν κονίηι, αἱματόεντ’ αἰδοῖα φίλαις ἐν χερσὶν ἔχοντα – αἰσχρὰ τά γ’ ὀφθαλμοῖς καὶ νεμεσητὸν ἰδεῖν, καὶ χρόα γυμνωθέντα· νέοισι δὲ πάντ’ ἐπέοικεν, ὄφρ’ ἐρατῆς ἥβης ἀγλαὸν ἄνθος ἔχηι, ἀνδράσι μὲν θηητὸς ἰδεῖν, ἐρατὸς δὲ γυναιξὶ ζωὸς ἐών, καλὸς δ’ ἐν προμάχοισι πεσών. Pois, sim, isto é torpe: na vanguarda caindo, jazer ante aos jovens um varão mais velho, já de cabeça branca e barba grisalha, expirando o valente fôlego na poeira, os ensanguentados genitais nas próprias mãos – 303 (25) (30) (25) as elegias de tirteu que espetáculo feio, que visão revoltante! – e o corpo despido: mas tudo convém aos jovens enquanto tiverem a lor brilhante da amável juventude: é admirado por homens, por mulheres amado, quando vivo; e belo, se na vanguarda cai. (30) No fragmento 11 W examinamos a igura do guerreiro na poesia de Tirteu e pôde-se notar no poema que, independentemente do estilo ou tática de guerra que o poeta alude, há uma exaltação do estatuto guerreiro magniicente de seus interlocutores, chamados “os ilhos de Héracles invencível”. Esta exaltação é clara nos versos 35-38, onde uma oposição entre guerreiros de armaduras leves (γυμνῆτες), e os de armadura completa (πανόπλοι) é traçada, favorecendo os últimos. Nesse sentido, concluímos que também o fragmento 11 W poderia trazer uma representação que alude diretamente ao espaço exclusivo do simpósio: Tirteu não trata de qualquer guerreiro em seu poema, mas abre seu poema com uma argumentação calcada na noção aristocrática de γένος, dirigindo-se a um público aristocrático e exclusivo comum ao simpósio. É o fragmento 12 W, contudo, que apresenta esse ideário heroico e aristocrático em seu ápice. Observamos, depois de uma breve consideração às fontes e à fortuna crítica, que o louvor à coragem e ao varão valoroso na guerra se dá sobre bases puramente míticas: o guerreiro de Tirteu é retratado quase como um herói de estatura épica. Que esse retrato possa estar ligado ao simpósio, sugere-o o modo como Tirteu organiza o seu conteúdo: seja através de enárgeia, a criação de imagens vívidas que presentiicam e põem diante dos olhos o guerreiro ideal que o poeta imagina (como demonstram outros exemplos nos fragmentos 10 e 11 W) 304 considerações Finais seja através de uma forma poética típica, o priamel, que revela jogos verbais e agonísticos próprios do simpósio (fr. 12.1-9 W): οὔτ’ ἂν μνησαίμην οὔτ’ ἐν λόγωι ἄνδρα τιθείην οὔτε ποδῶν ἀρετῆς οὔτε παλαιμοσύνης, οὐδ’ εἰ Κυκλώπων μὲν ἔχοι μέγεθός τε βίην τε, νικώιη δὲ θέων Θρηΐκιον Βορέην, οὐδ’ εἰ Τιθωνοῖο φυὴν χαριέστερος εἴη, πλουτοίη δὲ Μίδ<εω> καὶ Κινύρ<εω> μάλιον, οὐδ’ εἰ Τανταλίδ<εω> Πέλοπος βασιλεύτερος εἴη, γλῶσσαν δ’ Ἀδρήστου μειλιχόγηρυν ἔχοι, οὐδ’ εἰ πᾶσαν ἔχοι δόξαν πλὴν θούριδος ἀλκῆς· (5) Não me lembraria e em verbo um varão não poria, pela virtude de seus pés ou de sua luta, nem se tivesse altura e força de Ciclopes e em corrida vencesse o trácio Bóreas, nem se tivesse porte mais grácil que Títono, e mais riquezas do que Midas e Ciniras, nem se fosse mais rei que Pélops Tantálida, e tivesse a língua de mel de Adrasto, ou toda a fama, senão a bravura impetuosa; (5) Quanto aos fragmentos atribuídos à Eunomia, analisados na Parte II desse trabalho, a questão é ainda mais complexa. Como foi notado, muitos estudiosos atribuem a esses poemas um caráter cívico e adequado aos festivais públicos da cidade, onde se reforçavam laços de identidade comuns entre a população. Tais elegias, segundo E. L. Bowie em “Early Greek Elegy, Symposium and Public Festival” (1986, pp. 29-35), seriam de longa extensão e totalmente narrativas. O aspecto fragmentário dos versos que nos 305 as elegias de tirteu restaram impede que saibamos sua real extensão ou se as narrações eram entremeadas por exortações. O fragmento 2 W parece narrar uma história da fundação de Esparta, tipo de narrativa propício ao festival público e praticado por Mimnermo (ver fr. 9 W). Mas notamos aqui que o poeta, do mesmo modo como faz em seus fragmentos exortativos, coloca a aristocracia – representada por Heraclidas – em primeiro plano. Similarmente, o fragmento 4 W apresenta, por meio da icção de um oráculo, os valores norteadores de uma aristocracia vigente e levam em conta por meio de expressões como νίκην καὶ κάρτος um forte componente bélico. Sugerimos a hipótese de que se esse fragmento de fato levava em conta um oráculo verdadeiro, um contexto simpótico para ele seria esperado, uma vez que o simpósio constitui-se como lugar de reelaboração, confronto ou ratiicação de ditos célebres. Na leitura do fragmento 5 W observamos que Tirteu procede em outra heroicização: dessa vez, não dos guerreiros de seu tempo, como faz no fragmento 12 W, mas de seus ancestrais que venceram a primeira guerra contra os Messênios: louvados por sua resistência, há muitos paralelos que permitem dizer que o poeta os compara a um herói já conhecido via tradição épica, Odisseu. Os fragmentos 6-7 retratam a servidão dos messênios com uma imagem sombria, que em muito relembra aquela do fr. 10. 3-10 W. Na medida em que se opõe ao ideal de Eunomia exposto no fr. 4 W – onde obediência aos reis confere vitória e poder – a imagem poderia ganhar tons admonitórios. Pelos temas expostos acima, similares ao dos fragmentos 10-12 W, não é estranho acreditar que os fragmentos da Eunomia poderiam ter sido apresentados em uma mesma ocasião de performance 306 considerações Finais que os fragmentos exortativos. Ambos os grupos de fragmentos exaltam valores aristocráticos, e o principal ambiente para veicular tais valores era o simpósio. Se a Eunomia recebeu, porém, um espaço de performance público, tratar-se-ia de um caso de duplo uso da elegia, que depois teria sofrido reperformances de trechos nos simpósios das póleis. 307 rEfErênciAs bibliográficAs ACHCAR, F. Lírica e lugar comum, alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Edusp, 1999. 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Fragmento 2 W (Papiro Oxy.2824) ]...υ̣ι̣..[ . . . ]..ε̣ θ̣εοπρο[π ]..φ̣ ..ενακ[ ].μ̣α̣ντει ̣ασ̣ αν̣[ as elegias de tirteu ]τ̣ει̣ δε̣τα ̣ θ̣ἡ̣.[ . ]π̣ άντ’ εἰδεν.[ . ἄ]ν̣δρα̣ς ἀνιστ[αμεν . ]ι ̣[.]ηγ ̣αλ̣α[ . ]..[...]θ̣ε̣οῖσι φί[λ . ]ω̣ πε̣ι̣θ̣ώμε̣θα κ[ . ]α̣ ν ̣ ἐ̣γ ̣γύτεροι γ ̣έν[εος· αὐτὸς γὰρ Κρονίων⌋ καλλιστεφάνου ⌊πόσις Ἥρης Ζεὺς Ἡρακλείδαις⌋ ἄστυ δέδωκε τό̣⌊δε, οἷσιν ἅμα προλιπ⌋όντες Ἐρινεὸν ⌊ἠνεμόεντα εὐρεῖαν Πέλοπ⌋ο⌊ς⌋ νῆσον ἀφικόμ⌊εθα [ ]γ̣λ̣αυκώπ[ι]δος[ . ] (?) [ ] (?) profeci[as ] (?) [ ] oráculos [ ] a tudo viram. [ ] varões (ac.) insurgimos (?) [ ] (?) [ ]...[...] aos Deuses amáv [ ] (?) obedeçamos (?) [ ] mais próximos da linh[agem Pois o Crônida em pessoa, esposo de Hera bem-coroada, Zeus, deu aos Heraclidas esta cidade: junto deles, deixando Eríneo batida pelos ventos, à vasta ilha de Pélope chegamos ]de olhos glaucos[ 326 (5) (10) (15) (5) (10) (15) anexo 12-15 Estrabão, Geograia, 8.4.10 καὶ γὰρ εἶναί φησιν ἐκεῖθεν ἐν τῇ ἐλεγείᾳ ἣν ἐπιγράφουσιν Εὐνομίαν· αὐτὸς γὰρ Κρονίων, καλλιστεφάνου πόσις Ἥρης Ζεὺς Ἡρακλείδαις τήνδε δέδωκε πόλιν· οἷσιν ἅμα προλιπόντες Ἐρινεὸν ἠνεμόεντα, εὐρεῖαν Πέλοπος νῆσον ἀφικόμεθα. (15) ὥστ’ ἢ ταῦτα ἠκύρωται τὰ ἐλεγεῖα, ἢ Φιλοχόρῳ ἀπιστητέον τῷ φήσαντι Ἀθηναῖόν τε καὶ Ἀφιδναῖον, καὶ Καλλισθένει καὶ ἄλλοις πλείοσι τοῖς εἰποῦσιν ἐξ Ἀθηνῶν ἀφικέσθαι δεηθέντων Λακεδαιμονίων κατὰ χρησμόν, ὃς ἐπέταττε παρ’ Ἀθηναίων λαβεῖν ἡγεμόνα. De fato, dizem que ele é dali (sc. da Lacedemônia), na elegia que intitularam como Eunomia: Pois o Crônida em pessoa, esposo de Hera bem-coroada Zeus,deu aos Heraclidas esta cidade: junto deles, deixando Eríneo batida pelos ventos, à vasta ilha de Pélope chegamos (15) De maneira que, ou esta elegia é espúria, ou deve-se desacreditar Filocoro (328 F 215), que o declara ateniense e de Aidna, e também Calístenes (124 F 24) e a maioria restante, que dizem que ele veio de Atenas porque os Lacedemônios precisavam dele, segundo o oráculo que lhes ordenou obter um comandante junto aos atenienses”. Fragmento 4 W Φοίβου ἀκούσαντες Πυθωνόθεν οἴκαδ’ ἔνεικαν μαντείας τε θεοῦ καὶ τελέεντ’ ἔπεα· 327 as elegias de tirteu ἄρχειν μὲν βουλῆς θεοτιμήτους βασιλῆας, οἷσι μέλει Σπάρτης ἱμερόεσσα πόλις, πρεσβυγεν<έα>ς τε γέροντας· ἔπειτα δὲ δημότας ἄνδρας εὐθείαις ῥήτραις ἀνταπαμειβομένους μυθεῖσθαί τε τὰ καλὰ καὶ ἔρδειν πάντα δίκαια, μηδέ τι βουλεύειν τῆιδε πόλει <σκολιόν>· δήμου τε πλήθει νίκην καὶ κάρτος ἕπεσθαι. Φοῖβος γὰρ περὶ τῶν ὧδ’ ἀνέφηνε πόλει. Febo escutaram, e de Pito ao lar levaram as profecias do Deus e as palavras certas: que dirijam o concílio os reis honrados por Deuses, a quem importa a amável cidade de Esparta, e os primevos anciãos: depois homens do povo, por sua vez, respondendo às retas sentenças pronunciem ditos belos e ajam com justiça em tudo e não deem a cidade conselho < oblíquo> para que vitória e poder sigam as massas. Sobre isso, eis o que Febo revelou à cidade. 1-6 (5) (10) Plutarco, Licurgo 6 Οὕτω δὲ περὶ ταύτην ἐσπούδασε τὴν ἀρχὴν ὁ Λυκοῦργος ὥστε μαντείαν ἐκ Δελφῶν κομίσαι περὶ αὐτῆς, ἣν ῥήτραν καλοῦσιν. ἔχει δὲ οὕτως· “Διὸς Συλλανίου καὶ Ἀθανᾶς Συλλανίας ἱερὸν ἱδρυσάμενον, φυλὰς φυλάξαντα καὶ ὠβὰς ὠβάξαντα, τριάκοντα γερουσίαν σὺν ἀρχαγέταις καταστήσαντα, ὥρας ἐξ ὥρας ἀπελλάζειν μεταξὺ Βαβύκας τε καὶ Κνακιῶνος, < τ >οὕτως εἰσφέρειν τε καὶ ἀφίστασθαι· δάμω αν<τα>γορίαν ἦμην καὶ κράτος. 328 anexo ... ὕστερον μέντοι τῶν πολλῶν ἀφαιρέσει καὶ προσθέσει τὰς γνώμας διαστρεφόντων καὶ παραβιαζομένων, Πολύδωρος καὶ Θεόπομπος οἱ βασιλεῖς τάδε τῇ ῥήτρᾳ παρενέγραψαν· “Αἰ δὲ σκολιὰν ὁ δᾶμος ἕροιτο, τοὺς πρεσβυγενέας καὶ ἀρχαγέτας ἀποστατῆρας εἶμεν ... ... ἔπεισαν δὲ καὶ αὐτοὶ τὴν πόλιν ὡς τοῦ θεοῦ ταῦτα προστάσσοντος, ὥς που Τυρταῖος ἐπιμέμνηται διὰ τούτων· Φοίβου ἀκούσαντες Πυθωνόθεν οἴκαδ’ ἔνεικαν μαντείας τε θεοῦ καὶ τελέεντ’ ἔπεα· ἄρχειν μὲν βουλῆς θεοτιμήτους βασιλῆας, οἷσι μέλει Σπάρτης ἱμερόεσσα πόλις, πρεσβυγεν<έα>ς τε γέροντας· ἔπειτα δὲ δημότας ἄνδρας εὐθείαις ῥήτραις ἀνταπαμειβομένους (5) Licurgo zelou tanto pelo poder que trouxe de Delfos uma profecia sobre isso, a qual denominam Retra. Diz o seguinte: “Depois de fundar um templo de Zeus Silânio e Atena Silânia, as tribos distribuir, as obes organizar e instalar um conselho de trinta anciãos com os seus príncipes, realizar a apela de tempos em tempos entre Bábica e Cinácion. Dessarte, propõe e depõe, mas o poder e a respon<sa>bilidade serão do povo.” ... Depois, no entanto, porque muitos distorciam e forçavam as máximas, com subtrações e acréscimos, os reis Polidoro e Teopompo adicionaram à Retra o seguinte: “Se o povo falar de modo oblíquo, nós - anciãos e príncipes – seremos divergentes”. 329 as elegias de tirteu ... Eles próprios também persuadiram a cidade de que era o Deus quem prescrevia estas palavras, como Tirteu aparentemente relembra por meio destes versos: Febo escutaram, e de Pito ao lar levaram as profecias do Deus e as palavras certas: que dirijam o concílio os reis honrados por Deuses, a quem importa a a amável cidade de Esparta, e os veneráveis anciãos: depois homens do povo, por sua vez, respondendo às retas sentenças (5) (1)-10 Excertos da Biblioteca Histórica de Diodoro da Sicília (7.12.6; iussu Const. Porphyrogeniti confecta, ed. Boissevain etc, iv. 273.14) de Oraculo Lycurgo datis): ( Ἡ Πυθία ἔχρησε τῷ Λυκούργῳ περὶ τῶν πολιτικῶν οὕτως marg.) <ὧ>δε ἀργυρότοξος ἄναξ ἑκάεργος Ἀπόλλων χρυσοκόμης ἔχρη πίονος ἐξ ἀδύτου, ἄρχειν μὲν βουλῆς θεοτιμήτους βασιλῆας, οἷσι μέλει Σπάρτης ἱμερόεσσα πόλις, πρεσβυγεν<έα>ς τε γέροντας· ἔπειτα δὲ δημότας ἄνδρας εὐθείαις ῥήτραις ἀνταπαμειβομένους μυθεῖσθαί τε τὰ καλὰ καὶ ἔρδειν πάντα δίκαια, μηδέ τι βουλεύειν τῆιδε πόλει <σκολιόν>· δήμου τε πλήθει νίκην καὶ κάρτος ἕπεσθαι. Φοῖβος γὰρ περὶ τῶν ὧδ’ ἀνέφηνε πόλει. (5) (10) [A Pítia deu o seguinte oráculo a Licurgo, sobre questões políticas:] 330 anexo Assim o rei do arco argênteo, Apolo que age à distância, de áurea coma, predisse do pingue santuário: que dirijam o concílio os reis honrados por Deuses, a quem importa a amável cidade de Esparta, e os primevos anciãos: depois homens do povo, por sua vez, respondendo às retas sentenças pronunciem ditos belos e ajam com justiça em tudo (?) e ainda não deem à cidade conselho (?) para que vitória e poder sigam as massas. Sobre isso, eis o que Febo revelou à cidade. (5) (10) Fragmento 5 W ἡμετέρωι βασιλῆϊ, θεοῖσι φίλωι Θεοπόμπωι, ὃν διὰ Μεσσήνην εἵλομεν εὐρύχορον, Μεσσήνην ἀγαθὸν μὲν ἀροῦν, ἀγαθὸν δὲ φυτεύειν· ἀμφ’ αὐτὴν δ’ ἐμάχοντ’ ἐννέα καὶ δέκ’ ἔτη νωλεμέως αἰεὶ ταλασίφρονα θυμὸν ἔχοντες αἰχμηταὶ πατέρων ἡμετέρων πατέρες· εἰκοστῶι δ’ οἱ μὲν κατὰ πίονα ἔργα λιπόντες φεῦγον Ἰθωμαίων ἐκ μεγάλων ὀρέων. Ao nosso rei Teopompo, dileto dos Deuses, graças ao qual conquistamos vasta Messênia, Messênia boa p’ra arar, boa p’ra plantar; por ela lutavam dezenove anos sem trégua, sempre de coração pertinaz, os lanceiros pais de nossos pais; ao vigésimo, os messênios deixaram as férteis lavouras e fugiram dos altos montes de Itome. 331 (5) (5) as elegias de tirteu 1-2 Pausânias, Descrição da Grécia 4.6.5 οὗτος δὲ ὁ Θεόπομπος ἦν καὶ ὁ πέρας ἐπιθεὶς τῷ πολέμῳ· μαρτυρεῖ δέ μοι καὶ τὰ ἐλεγεῖα τῶν Τυρταίου λέγοντα ἡμετέρῳ βασιλῆι θεοῖσι φίλῳ Θεοπόμπῳ, ὃν διὰ Μεσσήνην εἵλομεν εὐρύχορον. Este Teopompo foi, na verdade, quem pôs im à guerra; meu testemunho é a elegia de Tirteu, que diz: Ao nosso rei Teopompo, dileto dos Deuses, graças ao qual conquistamos vasta Messênia. 3 Escólio às Leis de Platão, 629 a ἀφικόμενος δὲ οὗτος (Tyrtaeus) εἰς Λακεδαίμονα καὶ ἐπίπνους γενόμενος συνεβούλευσεν αὐτοῖς ἀνελέσθαι τὸν πρὸς Μεσσηνίους πόλεμον, προτρέπων παντοίως· ἐν οἷς καὶ τὸ φερόμενον εἰπεῖν ἔπος Μεσσήνην ἀγαθὸν μὲν ἀροῦν, ἀγαθὸν δὲ φυτεύειν· E quando ele (sc. Tirteu) chegou à Esparta, icou inspirado, e aconselhou-lhes empreender a guerra contra os Messênios, encorajando-os de todas as maneiras – entre as quais, pela récita do notório verso: Messênia, boa p’ra arar, boa p’ra plantar 332 anexo 4-8 Estrabão, Geograia, 6.3.3. Μεσσήνη δὲ ἑάλω πολεμηθεῖσα ἐννεακαίδεκα ἔτη, καθάπερ καὶ Τυρταῖός φησιν ἀμφ’ αὐτὴν δ’ ἐμάχοντ’ ἐννέα καὶ δέκ’ ἔτη νωλεμέως αἰεὶ ταλασίφρονα θυμὸν ἔχοντες αἰχμηταὶ πατέρων ἡμετέρων πατέρες· εἰκοστῶι δ’ οἱ μὲν κατὰ πίονα ἔργα λιπόντες φεῦγον Ἰθωμαίων ἐκ μεγάλων ὀρέων (5) Messênia foi capturada após dezenove anos de guerra, como diz Tirteu: por ela lutavam dezenove anos sem trégua, sempre de coração pertinaz, os lanceiros pais de nossos pais; ao vigésimo, os messênios deixaram as férteis lavouras e fugiram dos altos montes de Itome (5) Fragmento 6 W (= Pausânias, Descrição da Grécia, 4. 14. 4-5) τὰ δὲ ἐς αὐτοὺς Μεσσηνίους παρὰ Λακεδαιμονίων ἔσχεν οὕτως · πρῶτον μὲν αὐτοῖς ἐπάγουσιν ὅρκον μήτε ἀποστῆναί ποτε ἀπ’ αὐτῶν μήτε ἄλλο ἐργάσασθαι νεώτερον μηδέν· δεύτερα δὲ φόρον μὲν οὐδένα ἐπέταξαν εἰρημένον, οἳ δὲ τῶν γεωργουμένων τροφῶν σφισιν ἀπέφερον ἐς Σπάρτην πάντων τὰ ἡμίσεα. προείρητο δὲ καὶ ἐπὶ τὰς ἐκφορὰς τῶν βασιλέων καὶ ἄλλων τῶν ἐν τέλει καὶ ἄνδρας ἐκ τῆς Μεσσηνίας καὶ τὰς γυναῖκας ἐν ἐσθῆτι ἥκειν μελαίνῃ· καὶ τοῖς παραβᾶσιν ἐπέκειτο ποινή. <ἐς τὰς> τιμωρίας δὲ ἃς ὕβριζον ἐς τοὺς Μεσσηνίους, Τυρταίῳ πεποιημένα ἐστὶν · 333 as elegias de tirteu ὥσπερ ὄνοι μεγάλοις ἄχθεσι τειρόμενοι, δεσποσύνοισι φέροντες ἀναγκαίης ὑπὸ λυγρῆς ἥμισυ πᾶνθ` ὅσσων καρπὸν ἄρουρα φέρει No que concerne aos próprios Messênios, [a situação] junto aos espartanos era a seguinte: primeiro, atribuem-lhes um juramento para que não se revoltassem no futuro por conta destas coisas mesmas, tampouco empreendessem qualquer outra sedição novamente. Segundo, não impuseram qualquer tributo especíico, no entanto, levavam para Esparta metade do total de alimentos que eram cultivados. Prescrevia-se também que tanto homens quanto mulheres da Messênia fossem com vestes negras aos funerais de reis e de outras autoridades, e uma pena era aplicada aos transgressores. <Para as> punições que ultrajavam os Messênios, há o que o que foi composto por Tirteu: Como asnos oprimidos por ingentes fardos levando aos senhores, sob triste necessidade, metade de todo o fruto que a terra produz Fragmento 7 W (Pergit Paus.) ὅτι δὲ καὶ συμπενθεῖν ἔκειτο αὐτοῖς ἀνάγκη, δεδήλωκεν ἐν τῷδε· δεσπότας οἰμώζοντες, ὁμῶς ἄλοχοί τε καὶ αὐτοί, εὖτέ τιν’ οὐλομένη μοῖρα κίχοι θανάτου. Que a necessidade punha-os a prantear juntos está evidente neste [dístico]: pelos seus senhores, os homens e as mulheres lamentavam, Sempre que o destino destrutivo da morte encontrava algum. 334 anexo Fragmento 8 W ( = Estrabão, Geograia, 8.4.10) Πλεονάκις δ’ ἐπολέμησαν διὰ τὰς ἀποστάσεις τῶν Μεσσηνίων. τὴν μὲν οὖν πρώτην κατάκτησιν αὐτῶν φησι Τυρταῖος ἐν τοῖς ποιήμασι κατὰ τοὺς τῶν πατέρων πατέρας γενέσθαι· τὴν δὲ δευτέραν, καθ’ ἣν ἑλόμενοι συμμάχους Ἀργείους τε καὶ Ήλείους καὶ Πισάτας ἀπέστησαν, Ἀρκάδων μὲν Ἀριστοκράτην τὸν Ὀρχομενοῦ βασιλέα παρεχομένων στρατηγόν, Πισατῶν δὲ Πανταλέοντα τὸν Ὀμφαλίωνος· ἡνίκα φησὶν αὐτὸς στρατηγῆσαι τὸν πόλεμον τοῖς Λακεδαιμονίοις Amiúde izeram guerra por causa das insurreições dos Messênios. Tirteu diz em seus poemas que a primeira conquista deles ocorreu no tempo dos pais dos pais (fr. 5.6.) A segunda, no tempo em que se revoltaram, tendo escolhido aliados Argivos, Eleios e Pisanos. Os árcades ofereceram Aristócrates, rei dos Orcômenos, como general e os Pisanos [ofereceram] Pantaleão de Onfalion, enquanto pelos espartanos [Tirteu] diz que ele próprio foi o general. Fragmento 9 W ( = Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1116a36) καὶ οἱ προστάττοντες, κἂν ἀναχωρῶσι τύπτοντες, τὸ αὐτὸ δρῶσι, καὶ οἱ πρὸ τῶν τάφρων καὶ τῶν τοιούτων παρατάττοντες· πάντες γὰρ ἀναγκάζουσιν. δεῖ δ’ οὐ δι’ ἀνάγκην ἀνδρεῖον εἶναι, ἀλλ’ ὅτι καλόν. Aqueles que vão à frente e golpeiam os outros caso retrocedam, fazem o mesmo (e também aqueles que se põem diante de trincheiras e de outras coisas do tipo) porque são obrigados. Mas deve-se ser viril não por obrigação, e sim porque é belo. 335 as elegias de tirteu Eustrácio, Comentário a Aristóteles, 20, 165.1: τοῦτο περί Λακεδαιμονίων λέγοι ἂν · τοιαύτην γάρ τινα μάχην ὃτε πρός Μεσσηνίους ἐπολέμουν ἐμαχέσαντο, ἧς καὶ Τυρταῖος μνημονεύει. Poder-se-ia falar isso dos espartanos: Pois lutaram de tal modo quando travavam uma guerra contra os Messênios, aquela que Tirteu menciona. Fragmento 10 W ( = Licurgo em Contra Leócrates, 107) καὶ περὶ τοὺς ἄλλους ποιητὰς οὐδένα λόγον ἔχοντες, περὶ τούτου οὕτω σφόδρα ἐσπουδάκασιν, ὥστε νόμον ἔθεντο, ὅταν ἐν τοῖς ὅπλοις ἐξεστρατευμένοι ὦσι, καλεῖν ἐπὶ τὴν τοῦ βασιλέως σκηνὴν ἀκουσομένους τῶν Τυρταίου ποιημάτων ἅπαντας, νομίζοντες οὕτως ἂν αὐτοὺς μάλιστα πρὸ τῆς πατρίδος ἐθέλειν ἀποθνῄσκειν. χρήσιμον δ’ ἐστὶ καὶ τούτων ἀκοῦσαι τῶν ἐλεγείων, ἵν’ ἐπίστησθε οἷα ποιοῦντες εὐδοκίμουν παρ’ ἐκείνοις· τεθνάμεναι γὰρ καλὸν ἐνὶ προμάχοισι πεσόντα ἄνδρ’ ἀγαθὸν περὶ ἧι πατρίδι μαρνάμενον· τὴν δ’ αὐτοῦ προλιπόντα πόλιν καὶ πίονας ἀγρούς πτωχεύειν πάντων ἔστ’ ἀνιηρότατον, πλαζόμενον σὺν μητρὶ φίληι καὶ πατρὶ γέροντι παισί τε σὺν μικροῖς κουριδίηι τ’ ἀλόχωι. ἐχθρὸς μὲν γὰρ τοῖσι μετέσσεται οὕς κεν ἵκηται, χρησμοσύνηι τ’ εἴκων καὶ στυγερῆι πενίηι, αἰσχύνει τε γένος, κατὰ δ’ ἀγλαὸν εἶδος ἐλέγχει, πᾶσα δ’ ἀτιμίη καὶ κακότης ἕπεται. 336 (5) (10) anexo †εἰ δ’ οὕτως ἀνδρός τοι ἀλωμένου οὐδεμί’ ὤρη 1 γίνεται οὔτ’ αἰδὼς οὔτ’ ὀπίσω γένεος. θυμῶι γῆς πέρι τῆσδε μαχώμεθα καὶ περὶ παίδων θνήσκωμεν ψυχ<έω>ν μηκέτι φειδόμενοι. ὦ νέοι, ἀλλὰ μάχεσθε παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες, μηδὲ φυγῆς αἰσχρῆς ἄρχετε μηδὲ φόβου, ἀλλὰ μέγαν ποιεῖτε καὶ ἄλκιμον ἐν φρεσὶ θυμόν, μηδὲ φιλοψυχεῖτ’ ἀνδράσι μαρνάμενοι· τοὺς δὲ παλαιοτέρους, ὧν οὐκέτι γούνατ’ ἐλαφρά, μὴ καταλείποντες φεύγετε, τοὺς γεραιούς. αἰσχρὸν γὰρ δὴ τοῦτο, μετὰ προμάχοισι πεσόντα κεῖσθαι πρόσθε νέων ἄνδρα παλαιότερον, ἤδη λευκὸν ἔχοντα κάρη πολιόν τε γένειον, θυμὸν ἀποπνείοντ’ ἄλκιμον ἐν κονίηι, αἱματόεντ’ αἰδοῖα φίλαις ἐν χερσὶν ἔχοντα – αἰσχρὰ τά γ’ ὀφθαλμοῖς καὶ νεμεσητὸν ἰδεῖν, καὶ χρόα γυμνωθέντα· νέοισι δὲ πάντ’ ἐπέοικεν, ὄφρ’ ἐρατῆς ἥβης ἀγλαὸν ἄνθος ἔχηι, ἀνδράσι μὲν θηητὸς ἰδεῖν, ἐρατὸς δὲ γυναιξὶ ζωὸς ἐών, καλὸς δ’ ἐν προμάχοισι πεσών. (15) (20) (25) (30) ἀλλά τις εὖ διαβὰς μενέτω ποσὶν ἀμφοτέροισι στηριχθεὶς ἐπὶ γῆς, χεῖλος ὀδοῦσι δακών. “Embora não tivessem em conta alguma os outros poetas, por ele [scil. Tirteu] tiveram um interesse tão veemente que outorgaram uma lei que, quando estavam em armas,{fazendo uma expedição militar,} convocava 1 Neste verso, adotamos a correção proposta por Francke (1816) 337 as elegias de tirteu todos à tenda do rei para ouvirem os poemas de Tirteu, presumindo que assim eles desejariam ao máximo morrer pela terra pátria. É-vos útil ouvir destes dísticos elegíacos, de modo a vos persuadires quanto ao tipo de poesia que era apreciada entre eles [scil. espartanos]: Belo, sim, é morrer, na vanguarda caindo um varão valoroso a lutar pela pátria. Mas mendigar, deixando sua cidade e férteis campos, de tudo é o mais penoso, vagando com a cara mãe e o velho pai, ilhos pequenos e esposa legítima. Será odioso entre aqueles a quem chegar, pois cede à carência e à pobreza horrível, envergonha a linhagem, vexa a forma esplêndida e toda a desonra e vileza o seguem. Se é assim, se ao varão errante não vêm préstimo ou respeito algum, e nem à descendência, com coragem lutemos por esta terra, e pelos ilhos morramos, não mais poupando a vida! Jovens, vamos, lutai, mantendo-vos lado a lado, não inicieis a torpe fuga ou o pavor mas fazei grande e valente o ânimo no peito; não amai a vida, em luta com varões! E não fujais, aos mais velhos abandonando, aos anciãos, que não têm mais joelhos ágeis. Pois, sim, isto é torpe: na vanguarda caindo, jazer ante os jovens um varão mais velho, já de cabeça branca e barba grisalha, expirando o valente fôlego na poeira, 338 (5) (10) (15) (20) anexo os ensanguentados genitais nas próprias mãos – que espetáculo torpe, que visão revoltante! – e o corpo despido: Mas tudo convém aos jovens enquanto tiverem a lor brilhante da amável juventude: é admirado por homens, por mulheres amado, quando vivo; e belo, se na vanguarda cai. (25) (30) Mas que cada um ique bem irme, ambos os pés ixos ao chão, mordendo os lábios com os dentes ! Fragmento 11 W ( = Estobeu, 4.9.16) ἀλλ’, Ἡρακλῆος γὰρ ἀνικήτου γένος ἐστέ, θαρσεῖτ’· οὔπω Ζεὺς αὐχένα λοξὸν ἔχει· μηδ’ ἀνδρῶν πληθὺν δειμαίνετε, μηδὲ φοβεῖσθε, ἰθὺς δ’ ἐς προμάχους ἀσπίδ’ ἀνὴρ ἐχέτω, ἐχθρὴν μὲν ψυχὴν θέμενος, θανάτου δὲ μελαίνας κῆρας <ὁμῶς> αὐγαῖς ἠελίοιο φίλας. ἴστε γὰρ ὡς Ἄρεος πολυδακρύου ἔργ’ ἀΐδηλα, εὖ δ’ ὀργὴν ἐδάητ’ ἀργαλέου πολέμου, καὶ μετὰ φευγόντων τε διωκόντων τ’ ἐγέ<νε>σθε ὦ νέοι, ἀμφοτέρων δ’ ἐς κόρον ἠλάσατε. οἳ μὲν γὰρ τολμῶσι παρ’ ἀλλήλοισι μένοντες ἔς τ’ αὐτοσχεδίην καὶ προμάχους ἰέναι, παυρότεροι θνήσκουσι, σαοῦσι δὲ λαὸν ὀπίσσω· τρεσσάντων δ’ ἀνδρῶν πᾶσ’ ἀπόλωλ’ ἀρετή. οὐδεὶς ἄν ποτε ταῦτα λέγων ἀνύσειεν ἕκαστα, ὅσσ’, ἢν αἰσχρὰ πάθηι, γίνεται ἀνδρὶ κακά· ἀργαλέον γὰρ ὄπισθε μετάφρενόν ἐστι δαΐζειν ἀνδρὸς φεύγοντος δηΐωι ἐν πολέμωι· 339 (5) (10) (15) as elegias de tirteu αἰσχρὸς δ’ ἐστὶ νέκυς κατακείμενος ἐν κονίηισι νῶτον ὄπισθ’ αἰχμῆι δουρὸς ἐληλάμενος. ἀλλά τις εὖ διαβὰς μενέτω ποσὶν ἀμφοτέροισι στηριχθεὶς ἐπὶ γῆς, χεῖλος ὀδοῦσι δακών, μηρούς τε κνήμας τε κάτω καὶ στέρνα καὶ ὤμους ἀσπίδος εὐρείης γαστρὶ καλυψάμενος· δεξιτερῆι δ’ ἐν χειρὶ τινασσέτω ὄβριμον ἔγχος, κινείτω δὲ λόφον δεινὸν ὑπὲρ κεφαλῆς· ἔρδων δ’ ὄβριμα ἔργα διδασκέσθω πολεμίζειν, μηδ’ ἐκτὸς βελέων ἑστάτω ἀσπίδ’ ἔχων, ἀλλά τις ἐγγὺς ἰὼν αὐτοσχεδὸν ἔγχεϊ μακρῶι ἢ ξίφει οὐτάζων δήϊον ἄνδρ’ ἑλέτω, καὶ πόδα πὰρ ποδὶ θεὶς καὶ ἐπ’ ἀσπίδος ἀσπίδ’ ἐρείσας, ἐν δὲ λόφον τε λόφωι καὶ κυνέην κυνέηι καὶ στέρνον στέρνωι πεπλημένος ἀνδρὶ μαχέσθω, ἢ ξίφεος κώπην ἢ δόρυ μακρὸν ἔχων. ὑμεῖς δ’, ὦ γυμνῆτες, ὑπ’ ἀσπίδος ἄλλοθεν ἄλλος πτώσσοντες μεγάλοις βάλλετε χερμαδίοις δούρασί τε ξεστοῖσιν ἀκοντίζοντες ἐς αὐτούς, τοῖσι πανόπλοισιν πλησίον ἱστάμενοι. Vamos! Porque sois da linhagem do invencível Héracles, coragem! Zeus ainda não virou as costas! Não temais a turba de guerreiros, não fujais; que avante contra a vanguarda o varão leve o escudo, tornando odiosa a vida e as garras negras da morte tão amadas quanto os raios do sol; sabeis que as proezas de Ares de muito pranto são destrutivas, 340 (20) (25) (30) (35) (5) anexo bem conhecestes a índole da dura guerra; estivestes entre os que fogem e os que perseguem, ó jovens, e de ambas as coisas vos fartastes. Pois os que se mantêm lado a lado e ousam ir à luta corpo a corpo e à vanguarda, morrem poucos e salvam a tropa atrás; mas dos varões que tremem, toda a virtude perece. Nunca se remataria em palavras cada um dos males todos que vêm ao varão, caso sofra a infâmia. Pois é duro trespassar as costas de um varão que foge na aterradora guerra, E é torpe um morto estirado na poeira, seu dorso ferido por trás com ponta de lança. Vamos! Cada um ique bem irme, ambos os pés ixos ao chão, mordendo os lábios com os dentes! As coxas e as canelas abaixo, o peito e os ombros cobrindo com o ventre do largo escudo, empunhe na mão destra a forte lança e a crina temível agite sobre a cabeça: fazendo fortes façanhas, aprenda a lutar e sustendo o escudo, não ique longe dos dardos! Que cada um avance ao corpo a corpo e mate o inimigo ferindo-o com longa haste ou gládio, pé colocado junto a pé, escudo a escudo apoiando, crina à crina, elmo a elmo e peito a peito, lute perto de um varão com cabo de espada ou grande lança em mãos. E vós, de armadura leve, que se agacham aqui e ali 341 (10) (15) (20) (25) (30) (35) as elegias de tirteu sob os escudos, lançai grandes pedras, arremessando polidas lanças contra eles e postando-vos perto dos de armadura completa. Fragmento 12 W (= Estobeu 4.10.1 [vv. 1-14] + 6 [vv. 15-44]) οὔτ’ ἂν μνησαίμην οὔτ’ ἐν λόγωι ἄνδρα τιθείην οὔτε ποδῶν ἀρετῆς οὔτε παλαιμοσύνης, οὐδ’ εἰ Κυκλώπων μὲν ἔχοι μέγεθός τε βίην τε, νικώιη δὲ θέων Θρηΐκιον Βορέην, οὐδ’ εἰ Τιθωνοῖο φυὴν χαριέστερος εἴη, πλουτοίη δὲ Μίδ<εω> καὶ Κινύρ<εω> μάλιον, οὐδ’ εἰ Τανταλίδ<εω> Πέλοπος βασιλεύτερος εἴη, γλῶσσαν δ’ Ἀδρήστου μειλιχόγηρυν ἔχοι, οὐδ’ εἰ πᾶσαν ἔχοι δόξαν πλὴν θούριδος ἀλκῆς· οὐ γὰρ ἀνὴρ ἀγαθὸς γίνεται ἐν πολέμωι εἰ μὴ τετλαίη μὲν ὁρῶν φόνον αἱματόεντα, καὶ δηίων ὀρέγοιτ’ ἐγγύθεν ἱστάμενος. ἥδ’ ἀρετή, τόδ’ ἄεθλον ἐν ἀνθρώποισιν ἄριστον κάλλιστόν τε φέρειν γίνεται ἀνδρὶ νέωι. ξυνὸν δ’ ἐσθλὸν τοῦτο πόληΐ τε παντί τε δήμωι, ὅστις ἀνὴρ διαβὰς ἐν προμάχοισι μένηι νωλεμέως, αἰσχρῆς δὲ φυγῆς ἐπὶ πάγχυ λάθηται, ψυχὴν καὶ θυμὸν τλήμονα παρθέμενος, θαρσύνηι δ’ ἔπεσιν τὸν πλησίον ἄνδρα παρεστώς· οὗτος ἀνὴρ ἀγαθὸς γίνεται ἐν πολέμωι. αἶψα δὲ δυσμενέων ἀνδρῶν ἔτρεψε φάλαγγας τρηχείας· σπουδῆι δ’ ἔσχεθε κῦμα μάχης, 342 (5) (10) (15) (20) anexo αὐτὸς δ’ ἐν προμάχοισι πεσὼν φίλον ὤλεσε θυμόν, ἄστυ τε καὶ λαοὺς καὶ πατέρ’ εὐκλεΐσας, πολλὰ διὰ στέρνοιο καὶ ἀσπίδος ὀμφαλοέσσης καὶ διὰ θώρηκος πρόσθεν ἐληλάμενος. τὸν δ’ ὀλοφύρονται μὲν ὁμῶς νέοι ἠδὲ γέροντες, ἀργαλέωι δὲ πόθωι πᾶσα κέκηδε πόλις, καὶ τύμβος καὶ παῖδες ἐν ἀνθρώποις ἀρίσημοι καὶ παίδων παῖδες καὶ γένος ἐξοπίσω· οὐδέ ποτε κλέος ἐσθλὸν ἀπόλλυται οὐδ’ ὄνομ’ αὐτοῦ, ἀλλ’ ὑπὸ γῆς περ ἐὼν γίνεται ἀθάνατος, ὅντιν’ ἀριστεύοντα μένοντά τε μαρνάμενόν τε γῆς πέρι καὶ παίδων θοῦρος Ἄρης ὀλέσηι. εἰ δὲ φύγηι μὲν κῆρα τανηλεγέος θανάτοιο, νικήσας δ’ αἰχμῆς ἀγλαὸν εὖχος ἕληι, πάντες μιν τιμῶσιν, ὁμῶς νέοι ἠδὲ παλαιοί, πολλὰ δὲ τερπνὰ παθὼν ἔρχεται εἰς Ἀΐδην, γηράσκων δ’ ἀστοῖσι μεταπρέπει, οὐδέ τις αὐτὸν βλάπτειν οὔτ’ αἰδοῦς οὔτε δίκης ἐθέλει, (25) (30) (35) (40) πάντες δ’ ἐν θώκοισιν ὁμῶς νέοι οἵ τε κατ’ αὐτὸν εἴκουσ’ ἐκ χώρης οἵ τε παλαιότεροι. ταύτης νῦν τις ἀνὴρ ἀρετῆς εἰς ἄκρον ἱκέσθαι πειράσθω θυμῶι μὴ μεθιεὶς πολέμου. Não me lembraria e em verbo um varão não poria, pela virtude de seus pés ou de sua luta, nem se tivesse altura e força de Ciclopes e em corrida vencesse o trácio Bóreas, nem se tivesse porte mais grácil que Títono, e mais riquezas do que Midas e Cíniras, 343 (5) as elegias de tirteu nem se fosse mais rei que Pélope Tantálida, e tivesse a língua de mel de Adrasto, ou toda a fama, senão a bravura impetuosa; pois um varão não se torna valoroso na guerra se não ousar olhar a matança sanguinária, e postando-se perto, atingir inimigos. Tal virtude, tal prêmio, entre homens é o melhor e mais belo que há para um jovem varão receber. É esse um bem comum à cidade e ao povo todo, que um varão irme na vanguarda se mantenha, sem trégua, de todo se esqueça da torpe fuga arriscando a vida e o coração tenaz, e próximo encoraje o varão ao seu lado com palavras: eis o varão que se torna valoroso na guerra. Súbito, dispersa de varões hostis as falanges brutais, com zelo detém a onda da luta. Caído na vanguarda, ele próprio perde a sua vida, mas gloriica a cidade, as tropas e seu pai, muitas vezes no peito, no escudo umbilicado e na couraça golpeado de frente. A ele pranteiam por igual jovens e anciãos, e com dolorosa saudade, a cidade toda se enluta. Seu túmulo e ilhos são insignes entre os homens e os ilhos dos ilhos, e a geração no porvir, e jamais nobre glória ou o nome dele perecem, mas, mesmo sob a terra, se torna imortal aquele que, primando por manter-se em combate pela terra e pelos ilhos, o impetuoso Ares mata. 344 (10) (15) (20) (25) (30) anexo Mas se escapa à sina da morte de prolongada dor, e, ao vencer, conquista o triunfo ilustre da lança, todos o honram, por igual os jovens e anciãos, e vive muitas alegrias antes de ir ao Hades. Envelhecendo, distingue-se entre os cidadãos e ninguém quer faltar-lhe com respeito e justiça; (35) (40) todos, os jovens e seus coetâneos, cedem-lhe lugar em conselho, e também os mais velhos. Tente hoje cada varão ao ápice dessa virtude chegar com ânimo sem descuidar da guerra! Fragmento 13 W (= Galeno, Das Doutrinas de Hipócrates e Platão 3.309) ἐμπλέπλησται γὰρ ὁ περὶ ἡγεμονικοῦ ὑπὸ Χρυσίππου γεγραμμένος ἐπῶν ποιητικῶν ἤτοι τὰ πάθη περὶ τὸν θωρακά τε καὶ τὴν καρδίαν συνίστασθαι μαρτυρούντων ἤ δύο εἶναι τῆς ψυχῆς δυνάμεις ὅλῳ τῳ γένει διαφερούσας ἀλλήλων, τὴν μὲν ἂλογον, τὴν δὲ λογικήν· ὧσπερ γὰρ ἐξ Ὁμήρου καὶ Ἡσιόδου βραχέα παρεθέμην ὀλίγῳ πρόσθεν ὧν ὁ Χρύσιππος ἔγραψεν, οὕτως ἐξ Ὀρφέως καὶ Εμπεδοκλέους καὶ Τυρταίου καὶ Στησιχόρου καὶ Εὐριπίδου καὶ ἑτέρων ποιητῶν ἐπῶν μνημονεύει παμπόλλων ὁμοίαν ἐχόντων ἀτοπίαν, οἷον καὶ ὃταν εἲπῃ Τυρταῖον λέγοντα αἴθωνος δὲ λέοντος ἔχων ἐν στήθεσι θυμόν O tratado escrito por Crisipo acerca da parte hegemônica da alma está repleto de versos (epôn) poéticos que testemunham males associados ao peito e ao coração, ou que há duas faculdades da alma em toda a espécie, a irracional e a racional, que são mutuamente distintas: pois, tal qual 345 as elegias de tirteu apresentei um pouco antes [passagens] breves de Homero e Hesíodo que Crisipo anotara, assim ele menciona inúmeros versos de Orfeu, Empédocles, Tirteu, Estesícoro, Eurípides e de outros muitos poetas que detém igual estranheza, como quando cita Tirteu, que diz: Tendo no peito o ânimo de árdego leão Fragmento 14 W (Plutarco, de Stoic.repugn. 14.1039e) καὶ μὴν οὐχ ἕτερα δεῖ βιβλία διειλῆσαι τοῦ Χρυσίππου τὴν πρὸς αὑτὸν ἐνδεικνυμένους μάχην, ἀλλ’ ἐν αὐτοῖς τούτοις ποτὲ μὲν τοῦ Ἀντισθένους ἐπαινῶν προφέρεται τὸ δεῖν κτᾶσθαι νοῦν ἢ βρόχον καὶ τοῦ Τυρταίου τὸ ‘πρὶν ἀρετῆς πελάσαι τέρμασιν ἢ θανάτου’ Não é preciso interpretar outros livros de Crisipo que o apontam em conlito consigo mesmo, mas nestes mesmos ele cita em algum momento as palavras de Antístenes sobre o dever de se adquirir o intelecto ou a corda, e [o verso] de Tirteu: Antes de alcançar os limites da virtude ou da morte. Fragmento 15-16 W (= PMG 856-7) Fragmento 15 W ἄγετ’ ὦ Σπάρτας εὐάνδρου κοῦροι πατέρων πολιητᾶν, λαιᾶι μὲν ἴτυν προβάλεσθε, δόρυ δ’ εὐτόλμως πάλλοντες, μὴ φειδόμενοι τᾶς ζωᾶς 346 anexo οὐ γὰρ πάτριον τᾶι Σπάρται. Vamos, valentes d’ Esparta, moços de pais livres! À esquerda, anteponde o escudo, e atirai a lança com coragem, não poupando a vida: este não é o costume de Esparta. Fragmento 16 W ἄγετ’ ὦ Σπάρτας ἔνοπλοι κοῦροι ποτὶ τὰν Ἄρεως κίνασιν. Vamos, moços de Esparta em armas, para a marcha de Ares. Fragmento 17 W (= Querobosco, Escólios a Heféstion p. 196.6. Consbruch) Εὑρισκεται δὲ ἁπλῶς ἐν μέσῳ λέξεως κοινὴ καὶ ἐν παλιμβακχείῳ, ὡς καὶ παρὰ Τυρταίῳ ἣρωες οὓτω γὰρ ἒλαβε τὸν δεύτερον πόδα τοῦ στίχου. Encontra-se uma [sílaba] simples no meio de uma palavra e no palimbáquio, como em Tirteu: 347 as elegias de tirteu Heróis Pois assim ele escandiu o segundo pé do verso. Fragmento 18 W (=P.Berol. 11675 fr.A.col.1) [ [ α]γ̣αλλομένη ]α̣ κα̣ι̣ κροκόεντα desunt versus tres [ [ ]π̣υ̣[..₍.₎].[.]ν̣ τερ]άεσσι Διός u]fanando-se (ela) ... ](?) e cróceo... Faltam 3 versos ](?)[..(.).] [ ] (?) ... pre]sságios de Zeus Fragmento 19 W (=P.Berol. 11675 fr.A. col ii) [ ].[.₍.₎].οσ[ . -τ]ῆράς τε λίθων κα̣[ὶ . ]ν ἔθνεσιν εἰδομ[ένους . βρ]οτολοιγὸς Ἄρης ακ[ . ]ι̣θείηι, τοὺς δ’ ὑπερα̣[ . ].[.]ν ἐοικότες η̣[ .......]α̣ι̣ κοίληις ἀσπίσι φραξά̣μ̣[ενοι, χωρὶς Πάμφυλοί τε καὶ Ὑλλεῖς ἠδ̣[ὲ Δυμᾶνες, 348 (5) anexo ἀνδροφόνους μελίας χερσὶν ἀν[ασχόμενοι. ....]δ’ ἀθανάτοισι θεοῖς ἐπὶ πάντ̣[α τρέποντες ....]ατερμ..ιηι πεισόμεθ’ ἡγεμ[ό ἀλλ’ εὐθὺς σύμπαντες ἀλοιης<έο>[μεν ἀ]ν̣δ̣ρ̣άσι̣ν̣ αἰχμηταῖς ἐγγύθεν ἱς[τάμενοι. δεινὸς δ’ ἀμφοτέρων ἔσται κτύποσ̣[ ἀ̣σ̣πίδα̣ς̣ εὐκύκλους ἀσπίσι τυπτ[ ]ή̣σουσιν ἐπ’ ἀλλήλοισι π[εσόντες· θώρηκε]ς̣ δ’ ἀνδρῶν στήθεσιν ἀμ[φι λοιγὸ]ν̣ ἐρωήσ̣ουσιν ἐρεικόμενο[ι αἱ δ’ ὑπὸ] χερμαδίων βαλλόμεναι μ[εγάλων χάλκεια]ι̣ κ̣[όρυ]θ̣εσ̣ κανα̣χὴ̣ν ἕξου[σι ] [.(.).] (?)[ ](?), pedras e... ...às tribos semelh[ando-se...] [ho]micida Ares (?)[ ]em linha reta, e aos de cima[ ](?) semelhantes à[?] ](?) com os côncavos escudos defende[ndo-se] à parte Panfílios, Hileos e[Dímanes] sust[endo] em suas mãos as lanças as[sassinas], ...]e aos imortais Deuses sobretud[o voltando-nos,] ...]sem saída...obedeçamos (aos líderes?) Mas todos nós diretamente avance[mos ma[ntendo] próximos aos lanceiros, ... e de ambos serão terríveis... os escudos, circulares, contra escudos esbaten[do-se] (?) ...ca[indo] uns sobre os outros : [as couraça]s em volt[a] do peito dos varões 349 (10) (15) (20) (5) (10) (15) as elegias de tirteu rompidas, mas escapam com ímpeto da m[orte [e os] e[lm]os brônze[os], abatidos [por] gr[andes pedras, provocar[ão] o estrondo. (20) Fragmento 20 W (= P.Berol, 11675, fr.B col.i) [ Διωνύσο]ι̣ο τιθήνηι̣ [ -κό]μου Σεμέλης[] [ ]ω̣ ε̣μψ̣ .[...]σει [ ] [ ].[ ] [ ]με̣νη̣ ̣[ ] [ ].[.].[.₍.₎]ε̣ι ̣κε̣λ̣ον̣ [̣ ..]..[ ] [ ]α̣ φέρειν [ ἀ]ε̣θλ̣οφ ̣ ̣ [ό]ροι περὶ νίκης [ τέ]ρμ’ ἐπιδερκόμενοι [ καλ]λ̣ί̣τροχον ἅρμα φέροντες [ ]όμενοι [ ]εύοντας ὄπισ̣θεν [ ]χα ίτα̣ ς ̣ ὑ̣πὲρ κεφαλῆς ̣ [ ]συνοίσομεν ὀξὺν ἄρηα [ ].θεσ̣ ι ̣ν̣.[.].[ ] [ ο]ὐδὲ λο̣γήσει [ ]σ̣έχων̣[ À nutriz de Dioniso, Sêmele de [ca]belos [ ] (?) [...] (?) 350 (5) (10) (15) anexo ] ].[ ] ] (?)[ ] ].[.] [. (.)] semelhante [..]..[ ] ](?) levar p]rem[i]ados pela vitória contemplando a [me]ta conduzindo carro de [bel]as rodas ](?) ] (?) para trás ]as melenas sobre a cabeça ]suportaremos a pungente guerra ]. (?)[.] [ ] E n]ão levará em conta (?) ] (?)[ (5) (10) (15) Fragmento 21 W (P.Berol 11675, fr.B col.ii) χαλκ̣[ ουδεμ̣[ πιπτ[ μαρνα̣[ Ἀργές[τ ὅσσουσ[ Ἀργές[τ ἀλλαρ̣[ εστη̣..[ [ ω̣[ ημελ̣[ (5) (10) 351 as elegias de tirteu ουταρ[ ἀλλὰ θ̣εο̣ι̣.[ οἷσι μέλει Σ̣[πάρτης ἱμερόεσσα πόλις .[...].[ φο̣ι̣[ Bronz[(e?) nenh[ (um ?) cai[( r?) lut[ (ar?) clarean[t(e?) (t)ant[(os?) clarean[t (e?) (?)[ (?)[ [ (?)[ (?)[ (?) [ Mas os Deuses[ aos quais im[porta a amável cidade de Esparta] ...[...].[ (?) [ Fragmento 22 W (P.Berol 11675. fr.C. col.i) [].ι̣ο̣ν [] [] [] 352 (15) anexo []α̣ι̣ (5) Fragmento 23 W (P.Berol 11675, fr.C. col ii) ο̣.[..]σ̣τευ̣ο̣[ ἑξείης πα[ τ̣εῖχος α.[.]ο̣σ̣τ̣η̣[ οισ̣.μ̣παλλο̣μ̣ε̣[ κλῆ̣ρος καὶ ταφ[ Μεσσην<ίω>ν[ τεῖχος τερυ̣[ οἱ μὲν γὰρ [ ἀντίοι ἱστ[α οἱ δ’ ἐκτὸς̣ [βελέων ἐν δὲ μέσοις ἡμεῖς σ̣.[ πύργου δυ[ λείψουσ’ ἰλη̣[δὸν οἱ δ’ ὡς ἐκ πο[ κυ[.]αδ̣[ τοῖς ἴκελοι μ[ Ἥρης αἰδοίησ̣ [ εὖτ’ ἂν Τυνδ̣α̣ρ̣ί̣[δαι (5) (10) (15) continuamente (?) [ a muralha (?) [.] (?) (neles disparam[os?) lote e (túmulo?)[ dos Messênios [ a muralha (?) [ porque uns, (?) [ ( 5) 353 as elegias de tirteu opostos (mantendo-se?)[ outros, longe de [dardos (10) e nós, ao centro (?) [ da torre (?) [ deixaram em tr[opel, e assim (?) eles desde o (?) [ (?) [.](?)[ (15) a eles semelhantes (?) [ da veneranda Hera [ quando os Tindár[idas Fragmento 23a W (P.Oxy, xlvii 3316) ]...ισα.[...] φ θ ορα[ ].ὑπερ π[ο]λλὸν α [ ...[.].ενων [..]χει βέλε’ ἂγρ[ια γλαυκῶπις θυ[γ]ατηρ αἰγιόχ[οιο Διός πολλοὶδὲ ξυστοῖσιν ἀκοντισσ[ α]ἰχμῆις ὀξείης ἂνδρες ἐπισ[ γ]υμνομάχοι προθε[ό]ντες ὑ.[ . .] καδες Ἀργείωνυνελ [...] χ ...].ιμεν παρὰ τεῖχ[ος . . .].θιηισιν · ὓδωρ . . [ . . .]παρ’ Ἀθηναὶης γ[λαυκώπιδος . . . ] ιψαντ. [.] ταφρο .[ .πάντ]ας μὲν κτενέουσ[ι Σπα]ρτιητέων ὁποσου[ς ἐξ]οπίσω φεύγοντας α[ 354 (10) (15) (20) anexo ]...(?) [...] (?) [ ]. acima m[u]ito (?) [ ]...[ ] (?) [de]ter(?) os dardos fero[zes... A i[l]ha de olhos glaucos de [Zeus porta-égi]de Muitos com as lanças atir[arão, (?) varões com [l]anças pontiagudas (?)[ gu]erreiros desarmados corren[do] à frente sob (?)[ ](?) Argivos(?) [ ] (?) [ ] (?) junto à mur[alha ](?) : água [ ]ao lado de Atena de o[lhos glaucos] ](?)[ ] trinche[ira Matarã[o] a [tod]os os espar]tanos quanto[s, para a retaguarda fugindo, [ Fragmento 24 W (Inscr. Acarn. Sarc. III-II a.C, vv. 7-8) Τυρταίου δὲ Λάκαιναν ἐνὶ στέρνοισι φυλάσσων ῥῆσιν, τὰν ἀρετὰν εἵλετο πρόσθε βίου. Guardando no peito o lacônio verbo de Tirteu, escolheu virtude em vez da vida. 355 (10) (15) (20) Livraria Humanitas/Discurso Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 Cidade Universitária 05508-010 – São Paulo – SP – Brasil Tel: (11) 3091-3728 / Telefax: (11) 3091-3796 e-mail: livrariahumanitas@usp.br Humanitas – Distribuição Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária 05508-080 – São Paulo – SP – Brasil Telefax: 3091-2920 e-mail: editorahumanitas@usp.br http://www.editorahumanitas.com.br Ficha técnica Formato 14 x 21 cm Mancha 10 x 18 cm Tipologia Cardo Pro 11 e 15 Papel Miolo: Pólen Sot 80 g/m2 Capa: Supremo 250 g/m2 Impressão e Acabamento Printing Solutions & Internet 7 Número de páginas 356 Tiragem 500 Exemplares