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O PAPEL DO AEDO E DE SUAS OBRAS PARA O ESTUDO DA SOCIEDADE GREGA Bruna Moraes da Silva Graduanda de História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cursando o oitavo período. Integrante do Laboratório de História Antiga (LHIA) da UFRJ. Bolsista de iniciação científica pelo CNPq/PIBIC e orientanda do Professor Doutor Fábio de Souza Lessa. E-mail: brunams1990@yahoo.com.br 1. INTRODUÇÃO Buscamos através de este trabalho ressaltar a importância e utilidade das obras de Homero para o estudo da sociedade grega, acreditando que a Ilíada e a Odisseia são documentações muito profícuas para isso, pois contém reflexos do pensamento social da época. Essa análise faz parte de nosso trabalho monográfico, que visa estudar as percepções acerca da morte dentro das obras supracitadas, que são repletas de referências sobre esse tema. Também analisamos o papel do aedo nessa sociedade, para quem ele cantava, quais eram seus temas e como seu canto reflete as crenças e a cultura da época. Explicitamos que a récita dos poemas pelos homens dessa categoria não serviam apenas de divertimento, mas como uma espécie de manual de como bem portar-se em sociedade, sendo as personagens de seus poemas exemplos para os homens e mulheres do período. Além disso, destacamos o papel das obras de Homero como pertencentes do ideal educativo da sociedade grega, demonstrando a importância desse aedo para os helenos. 2. O OFÍCIO DE SER AEDO Ser aedo na Grécia Antiga era ter o papel de compor e cantar Além do canto, a recitação dos poemas era acompanhada da dança. “A dança, assim como os cantos votivos, fazia parte da experiência grega de associação com as divindades” (MORAES, 2009, p.48). Para tal efeito, sacrifícios também eram realizados em nome dos deuses, demonstrando, como apontado por Alexandre Moraes, que não era apenas a recitação dos poemas que fazia o ofício dos aedos eficaz, mas uma gama de outros fatores (MORAES, 2009, p.48). , acompanhado de seu instrumento de corda, a phórminx, poemas de caráter épico. A própria etimologia da palavra nos demonstra o ofício iminente do aedo: esse nome vem de aidós, que significa cantor (COLOMBANI, 2005, p.6) Além dos aedos, havia os rapsodos. A etimologia da palavra, como nos indica Alexandre Moraes, é provinda de rháptein, “coser” e oidé, “canto”, sendo assim o rapsodo uma espécie de “ajustador de cantos” (MORAES, 2009, p.37). Essa categoria diz respeito aos artistas que cantavam poemas já conhecidos, que não eram criados por eles. María Cecilia Colombani, inclusive, cita em seu livro que haveria um grupo de rapsodos denominado “Homéridas”, que se diziam descendentes do aedo e, assim, cantavam os poemas de seu antepassado (COLOMBANI, 2005, p.5). Já que não era exigido a eles criar os poemas, são mais reconhecidos por sua capacidade mnemônica e pela boa oratória do que pelo seu potencial criativo. “A poesia, com os rapsodos, perdeu gradualmente o antigo estatuto de criação inspirada pelas divindades e se estabeleceu como um trabalho técnico” (MORAES, 2009, p.38). . Sua récita era destinada à parcela da sociedade mais abastada, que pagava para ouvir o aedo, especialmente em banquetes, se deleitando com as narrativas. Porém, a recitação das epopeias não se restringia aos banquetes, podendo ser vistas em festas religiosas posteriores, como é o caso dos jogos olímpicos e das Panatenéias, nas quais as obras de Homero, considerado o mais importante aedo da época, possuíam um papel relevante. Pierre Carlier ainda cita que as obras poderiam ser recitadas para as pessoas da cidade, que se reuniam em praça pública (CARLIER, 2008, p. 15) Podemos ver que, caso isso acontecesse, o grau de abrangência do público seria maior, mas, mesmo assim, esse, provavelmente, não deveria ser composto das camadas mais baixas da sociedade, que não teriam tempo livre para passarem à tarde na praça, já que estariam trabalhando.. Além disso, o aedo tinha um papel itinerante, ou seja, ia de cidade em cidade buscando seu público e recitando suas obras. Segundo Pierre Carlier, a tradição nos aponta que Homero esteve em Ítaca, a cidade dita reinada por Odisseu, o protagonista da Odisseia, e chegou até mesmo à Espanha (CARLIER, 2008, p. 6). “Diante das expedições colonizadoras e das viagens de reconhecimento do espaço mediterrâneo os aedos assumiram a importante tarefa de informar os costumes helênicos às comunidades locais, ajudando a situá-las na rede de influências desta aristocracia tradicional” (MORAES, 2009, p.141). Através de seu canto, ele deveria provocar o encanto em seu auditório, pois “o verbo é orientando em direção ao prazer” (VERNANT, 2010, p.174). A extensão de suas obras leva a crer na existência de uma técnica mnemônica para que o aedo pudesse repassar seus versos por mais vezes para seus ouvintes. O uso excessivo de epítetos, por exemplo, marcaria uma pausa para que o raciocínio fosse retomado e a poesia fosse prosseguida, sendo assim o trabalho do aedo oriundo de uma longa especialização. Segundo Giovanni Reale, essa técnica “constituía o eixo de sustentação da própria cultura oral” (REALE, 2002, p.47). A fala em uma sociedade na qual a escrita não é muito difundida é um grande dispositivo cultural, sendo oralidade fator chave para a transmissão da cultura da época. E era através dela, como ressalta Alexandre Moraes, que os aedos “angariavam prestígio e visibilidade sociais” (MORAES, 2009, p. 12), sendo a récita de seus poemas considerada um ofício na Grécia Antiga, marcado por regras, treinamento e uma série de artifícios. “Considerar as récitas dos poetas um ofício é bastante expressivo. A atribuição de um estatuto diferenciado frente às demais atividades humanas indica que as práticas destes indivíduos eram regidas por regras específicas, critérios, tensões e preocupações particulares. O acesso ao conhecimento e à difusão da palavra poética dependência de treinamento e especialização, fazendo com que recebessem a investidura de valores específicos e passassem a ser identificados pela sua associação com este domínio” (ibidem, p.36). Homero foi e é considerado o maior aedo da Grécia Antiga, como já citado, sendo as obras remetidas a ele A autoria dessas epopeias é fruto de muitos debates, contidos na chamada questão homérica. Desde o século XVIII, discute-se acerca da possibilidade das obras atribuídas a Homero serem, na verdade, produto da compilação de poemas de vários poetas: não se sabe ao certo, até os dias atuais, quem realmente teria composto essas obras, se teria sido apenas uma pessoa, como o caso de Homero, ou se foi algo em conjunto, ou se a Ilíada foi escrita por um e a Odisseia por outro, em tempo contínuo ou separado. Devido à extensão das obras, também se faz crer que não foram recitadas em um só momento e sim durante diversos banquetes, porém elas seguem toda uma sequência lógica. Além disso, possuímos poucas informações sobre Homero, sendo apenas suas obras, documentos mais seguros para entendermos um pouco seu modo de pensar. Porém, o que realmente importa para nós não é sabermos quem deixou ou não de compor essas epopeias e sim que elas existem e chegaram até nós, mesmo que saibamos de suas possíveis adições e retiradas, já que se trata de tradição oral. Os próprios gregos da época, como ressaltado por Colombani, em sua maioria, estavam certos de que as obras foram compostas apenas por um poeta (COLOMBANI, 2005, p.6). , Ilíada e Odisseia, de grande repercussão até os dias atuais. Ele teria nascido na Jônia (em Esmirna ou Quios), hoje Turquia, por volta dos séculos IX - VIII a.C. Para alguns ele seria cego, o que, de certa forma, simbolizaria sua capacidade mnemônica, demonstrando que é capaz de ver o que os outros não podem É interessante ressaltar, como salientado por Alexandre Moraes, ao longo de sua dissertação, que os outros aedos descritos nas obras de Homero também eram cegos, além do adivinho Tirésias, demonstrando essa característica em personagens que tem o dom da palavra, da adivinhação, de saber sobre o passado, o presente e o futuro (MORAES, 2009, p.105-106). . Homero não deixa de citar a existência de aedos na Odisseia e na Ilíada, sendo Demódoco o principal exemplo desta categoria. A etimologia de seu nome significa “acolhido pela comunidade” ou “recebido pelo dêmos” (MORAES, 2009, p.53). “Mandai vir o divino Demódoco, o aedo que obteve os deuses poder deleitar-se com a música, como lhe pede o furor, que no peito a cantar o estimula” (HOMERO, Odisseia, VIII, 43-45). Os aedos faziam questão de demonstrar a importância de seu papel dentro de suas obras, sendo isso chamado por Alexandre Moraes de “esforço de autoglorificação” (MORAES, 2009, p.13). “Os aedos não faziam parte do grupo seleto de nobres que, em uma sociedade altamente estratificada, ostentava seu poder através de discursos que lhes atribuíam uma genealogia heróica e, em alguns casos, uma origem divina. Para este grupo, o prestígio social era baseado em uma noção de glória – kléos – que dependia da difusão dos feitos de seus pares para os outros estratos sociais” (ibidem, p.13). As musas De acordo com o Hino a Zeus, de Píndaro, posterior às obras de Homero, Zeus teria gerado as Musas em um momento em que o mundo estava sendo reordenado e para atingir a perfeição seria necessário “uma voz divina a fim de cantá-la e louvá-la” (OTTO, 2006, p.116). eram vistas como inspiradores dos poetas, que as invocariam em suas obras. Essas deusas são filhas da deusa Memória e Zeus, muito cultuadas na sociedade helênica. O fato de serem filhas dessa deusa possui forte ligação com o ofício de Homero, já que a memória é a principal característica do aedo para que este possa compor suas obras. “Não obstante, são elas, e em virtude de esse mesmo poder, as que podem ‘fazer’, quer dizer privar a memória ao poeta, se é digno dela” (COLOMBANI,2005, p.40). Segundo Detienne a memória permite ao poeta conhecer o passado, o presente e o futuro: “Função religiosa, a memória era o fundamento da palavra poética e o estatuto privilegiado do poeta” (DETIENNE, 1988, p.57). Otto ressalta que as musas fazem parte da mais alta hierarquia entre os deuses e isso pode ser conectado ao fato de serem filhas de Zeus, marcado pelo seu grande poder (OTTO, 2006, p.50). O canto das musas também é ressaltado por esse autor, visto que “Em nenhuma outra parte do mundo se atribuiu jamais importância tão essencial ao canto e à linguagem elevada como no mito grego” (ibidem, p.50). Elas desvelariam os acontecimentos e façanhas dos heróis ao poeta, assim como as verdades do passado, do tempo mítico. Como citado por Detienne, o aedo é um mestre da verdade, mas não no sentido de contar algo que não é falso e sim de desvelar o que não é conhecido, de mostrar as façanhas dos heróis. “E somente os deuses, finalmente, tinham o poder de arrebatar a razão a homens ou de ensinar os aedos, assim como os adivinhos, a conhecer ao mesmo tempo as coisas passadas e as coisas futuras” (FINLEY, 1982, p.128). Esse caráter divino relacionado ao canto do poeta é um fator de credibilidade para sua palavra diante de seu público, já que o aedo não estaria “inventando” fatos e sim que esses estariam sendo relatados por potências divinas (MORAES, 2009, p.99). “Duvidar de suas palavras seria, na verdade, duvidar das filhas de Zeus” (ibidem, p.114). Assim, ser aedo envolvia uma séria de técnicas voltadas para a récita de poemas, que eles mesmos compunham. Esse ofício era movido pela alta sociedade na Grécia Antiga, que pagava a esses poetas inspirados pelo divino, para ouvirem o que desejavam, como veremos no tópico seguinte. 2.1 O CONTEÚDO DE SUAS OBRAS O público do aedo, como já citado, era a aristocracia, composta por grandes donos de terra que retiravam delas sua renda e também, algumas vezes, do comércio marítimo. Além disso, eram os responsáveis por irem à guerra (VIDAL-NAQUET, 2002, p.15). Era ela que delimitava o que seria cantado pelos poetas, sendo o conteúdo das obras dos aedos referente, em sua maior parte, aos grandes feitos dos heróis, a essa genealogia guerreira. O tema narrado deveria estar próximo de seus ouvintes, encontrando prazer nessas narrativas, que apesar de serem bem conhecidas por eles, eram contadas de uma maneira nova pelo poeta (COLOMBANI, 2005, p.8). “Através de negociações, os aedos ajudavam a consolidar o poder das elites palacianas, informando através das récitas a supremacia dos heróis e reis gregos nas áreas ocupadas; como contrapartida, os aristocratas sustentavam o estilo de vida luxuoso e o aprimoramento profissional daqueles que decidem, através da lembrança e do esquecimento, a imortalidade na memória dos homens” (MORAES, 2009, p.97). “Mesmo que suas qualidades fossem inigualáveis, dificilmente teria conquistado a tão almejada fama se não tivesse se esforçado para fazer valer os desejos e divulgar os valores de uma classe social tão ciente de seus poderes e privilégios” (ibidem, p.136). “Neste plano fundamental, o poeta é o árbitro supremo: não é mais, neste momento, um funcionário da soberania, está a serviço da comunidade dos ‘semelhantes’ e dos ‘iguais’, daqueles que têm em comum o privilégio de exercer o ofício das armas” (DETIENNE, 1988, p.19). Além disso, os mitos Sob a perspectiva de Vernant, o mito, apesar de ser alvo de muitas discussões sobre se seria apenas fantasia ou poderia ser utilizado como fator explicativos do pensamento de uma sociedade, como podemos ver em sua obra Mito e sociedade na Grécia Antiga, é um esboço do discurso racional, do lógos, podendo responder questões sobre universo, além de que “constitui durante mais de um milênio o fundo comum da cultura, um quadro de referência não apenas para a vida religiosa como também para outras formas da vida social e espiritual [...]” (VERNANT, 2010, p. 188). “O mito é, em definitivo, uma história sagrada, como advertiu Mircea Eliada, pois se trata do relato de feitos sobrenaturais levados a cabo por seres extraordinários em um tempo que, paradoxalmente é um não-tempo” (COLOMBANI, 2005, p.10, tradução nossa). Porém devemos aclarar que o mito não pode ser visto como algo unificado e coerente, já que não podemos falar de uma Grécia unida, de uma “nação grega”, devido a sua grande divisão em diferentes comunidades. que aparecem nas epopeias também constituem tradições da sociedade e não apenas criações do aedo, como é o caso do Ciclope, das sereias, de Édipo. “Os temas se referiam a um pretérito heroico narrado pelo aedo, que os gregos, como já dissemos, acreditavam real e não produto de sua imaginação” (COLOMBANI, 2005, p.7, tradução nossa) “Que tivesse existido uma idade de heróis, nenhum grego, nem antes nem depois, alguma vez duvidou. Sabia-se tudo destes semi-deuses: os seus nomes, as suas genealogias e os seus feitos” (FINLEY, 1982, p.26).. Segundo Pierre Grimal, as epopeias de Homero estavam cercadas de lendas, extraídas dos chamados ciclos heroicos ou ciclo épico, um conjunto de obras focadas em narrar as façanhas dos heróis, além de reunir diversos mitos (GRIMAL, 2008, p.107) Além da Ilíada e Odisseia, podemos citar a Teogonia de Hesíodo e os Hinos Homéricos como componentes desse ciclo, por exemplo. . Mosses Finley ressalta que Homero era “um contador de mitos e de lendas” (FINLEY, 1982, p.19). “[...] o grande poeta, enquanto tal, é tocado pelo espírito do mito, e de suas profundezas faz vir a ser a palavra vivente” (OTTO, 2006, p.24). As aventuras de Odisseu, narradas na obra em que é protagonista, por exemplo, como ressaltado por Pierre Carlier, “inspiram-se em lendas muito antigas, gregas, fenícias, egípcias, ou outras ainda, ou evocam lendas populares de diversos povos: o Ciclope pode ser comparado a muitos ogres e Circe a inúmeras feiticeiras. O poeta da Odisseia não é certamente o primeiro a evocar o Cíclope ou as Sereias” (CARLIER, 2008, p.138). Assim, a partir do fato de o aedo recitar aquilo que o seu público desejava, os temas presentes no imaginário social, podemos ver a importância das obras de Homero como documentações muito profícuas para a compreensão das crenças e do modo de vida da sociedade do período, visto que os reflexos disso se encontravam nas epopeias. Como nos ressalta o doutorando em história Alexandre Moraes as palavras dos poetas “Trazem as marcas do ambiente em que foram produzidas e as tensões a que seus interlocutores estavam sujeitos no momento de sua enunciação” (MORAES, 2009, p.36). Schein também ressalta esse ponto, nos alertando que a audiência de Homero teria reconhecido em Tróia muitos de suas formas sociais e valores (SCHEIN, 1984, p.169). Citando Havelock, Giovanni Reale ressalta que as epopeias homéricas “tornavam-se a expressão completa da mentalidade dominante e da cultura daquela civilização” (REALE, 2002, p.49). Pierre Carlier também nos recorda isto: “Por vezes, o público indicava os temas que queria ouvir: é o que faz Ulisses entre os Feaces quando pede ao aedo Demódoco que cante a tomada de Tróia (Odisseia, VIII, 492-496). As narrativas tradicionais transmitem-se assim de geração em geração, porém, são constantemente modificadas” (CARLIER, 2008, p.64). Com isso, toda uma série de tradições dos gregos antigos, tanto no âmbito religioso quanto no social, está compilada nas obras de Homero, possuindo também uma função paidêutica flagrante, como veremos a seguir. 2.2 SUA FUNÇÃO PAIDÊUTICA Os filhos da aristocracia tinham como componentes da paideía os poemas de Homero. Este termo, muito amplo e complexo, pode ser simplificado como um conjunto de atividades educacionais e culturais da sociedade grega, que, a partir do século V a.C, começaram a ser desenvolvidas, sendo construídos em póleis como Atenas e Esparta. Seu significado literal é “educação de meninos”. Objetivava-se através dela a construção de um cidadão com areté (excelência, virtude), honra e coragem, através de atividades que levavam a harmonia entre o corpo e a mente. “Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global, e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez” (JAEGER, 2010, p.1). O uso das epopeias de Homero como pano de fundo da educação grega, demonstra a importância atribuída a Homero na Grécia, sendo seguidas como modelo de cidadania por aquela sociedade: as personagens criadas por Homero, seus trejeitos, ações, exortações, modos de agir como um todo, viriam por se tornar o espelho daquele povo, um caminho pelo qual poderiam se guiar, especialmente através das figuras heroicas, como o aqueu Aquiles e o troiano Heitor. Segundo Pierre Carlier, “os dois grandes poemas homéricos estiveram, seguramente, desde o séc. VI a.C. e, provavelmente, desde o séc. VIII a.C. no centro da educação e da cultura gregas” (CARLIER, 2008. p.11). As crianças aprendiam a ler com suas obras e chegavam a sabê-la de cor, mesmo com seus 14 mil veros - Ilíada - e 12 mil versos - Odisseia, além de tocarem cítara recitando seus versos. “E foi encontrado, no Egipto, o testemunho concreto de que ainda na época helenística Homero servia para exercícios escolares da escrita, de paráfrase, de transcrições em língua moderna ou de comentários” (ROMILLY, 2001, p.111). Uma citação, retirada do livro de Walter Otto, nos remete a importância de Homero para àquela civilização e, inclusive para posteriores: Xenófanes, que havia feito críticas a Homero, especialmente no que compete ao tratamento deste aos deuses Platão também fazia crítica a Homero em seus textos, o reprovando por sua impiedade e imoralidade, atreladas aos deuses (CARLIER, 2008, p. 12). Considerava o poeta como um mentiroso, que deveria ser expulso da cidade, como pode ser visto em A República. Porém, não lhe faltaram elogios, como ressaltado por Carlier. “Os comentadores da Antiguidade conciliavam assim uma veneração sem limites pelo poeta e uma crítica, por vezes bastante cáustica, do texto transmitido (ibidem, p. 12-13). Até mesmo Platão, “reservará em seus escritos um lugar eminente ao mito como meio de exprimir ao mesmo tempo o que está além e o que está aquém da linguagem propriamente filosófica” (VERNANT, 2010, p. 187) e também , na República, exalta o caráter educador das obras de Homero (ROMILLY, 2001, p.112)., teria recebido uma resposta do rei Hierão: “Quando o filósofo se queixou de que, por sua pobreza, mal podia manter dois servos, o rei replicou-lhe: ‘No entanto Homero, que tu difamas, mesmo depois de morto alimenta multidões! ’” (PLUTARCO apud OTTO, 2006, p.92). Tendo sido as primeiras obras escritas produzidas na Grécia (ROMILLY, 2001, P.9) Devemos ressaltar que outras obras também foram atribuídas a Homero, como é o caso das Margites e Batracomiomaquia (COLOMBANI, 2005, p.8)., Giovanni Reale ressalta que os poemas homéricos são a origem da cultura europeia (REALE, 2002, p.19). “Ele foi o símbolo por excelência deste povo, a autoridade incontestada dos primeiros tempos da sua história e uma figura de importância decisiva na criação do seu panteão, assim como o seu poema, preferido, o mais largamente citado” (FINLEY, 1982, p.13). A função poética é, assim, mais que divertimento, ela possui papel de formação e de educação. “Mas para que a honra heróica permaneça viva no seio de uma civilização, para que todo o sistema de valores permaneça marcado pelo seu selo, é preciso que a função poética,mais do que objeto de divertimento, tenha conservado um papel de educação e formação, que por ela e nela se transmita, se ensine ,se atualize na alma de cada um este conjunto de saberes,crenças,atitudes, valores de que é feita uma cultura”( VERNANT, 1989, p.42). “as récitas dos aedos transcendiam sua função social de divertir e alegrar os banquetes: eram igualmente importantes pelo seu caráter informativo, permitindo que os diversos povos da Grécia tomassem conhecimento dos eventos que ocorriam no Egeu e além” (MORAES, 2009, p.74-75). 3. CONCLUSÃO Assim, os poemas de Homero podem ser considerados documentos muito importantes para o estudo do pensamento social da Grécia daquele período, visto que seus cantos perpassam uma série de crenças daquela sociedade. Juntos com as obras de Hesíodo, a Ilíada e a Odisseia são muitas vezes apontadas como fundadores da mitologia helênica O sistema religioso grego, como salienta Alexandre Moraes, “dispensou a existência de sacerdotes profissionais, livros sagrados e dogmas que orientassem as condutas. Com isso, acabou por atribuir aos poetas orais a possibilidade de amoedar os mitos, criá-los e difundi-los com uma razoável fluidez” (MORAES, 2009, p.98).. Além disso, as palavras do aedo serviam não apenas como divertimento para seu público e sim como guias para um bem portar da sociedade, através de seus heróis e de suas ações, voltadas para a honra e a glória. O público do poeta, composto por aristocratas, desejava ouvir aquilo que pertencia a sua genealogia guerreira. O papel educativo de Homero também é flagrante, tendo sido suas obras utilizadas como componentes na paideía, ajudando na formação das crianças da época. Sendo assim, sustentamos a hipótese de que, apesar de serem obras literárias a respeito de heróis e de uma guerra que até hoje não obteve comprovação histórica, a Ilíada e a Odisseia se constituem em documentos relevantes ao estudo da sociedade grega, nos possibilitando ver os reflexos de suas crenças, mitos, medos, seus modos de pensar a respeito de diversos assuntos, como a guerra, a vida e a morte. 4. DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL HOMERO. Ilíada – 2 vols. Tradução, Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002/2003. HOMERO. Ilíada. Tradução, Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. HOMERO. Odisséia – 3 vols. Tradução, Donaldo Schüller. Porto Alegre: L&PM, 2007. HOMERO. Odisséia. Tradução, Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Melhoramentos, 1962. 5. BIBLIOGRAFIA CARLIER, Pierre. Homero. Tradução, Fernanda Oliveira. Lisboa: Publicações Europa-América, 2008. COLOMBANI, María Cecilia. Homero. Ilíada: uma introducción crítica. Buenos Aires: Santiago Arcos editor, 2005. DETIENNE, Marcel. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1988. FINLEY, Mose, I. O mundo de Ulisses. Lisboa: Presença, 1982. JAEGER,Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução, Artur M.Parreira. 5ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. MORAES, Alexandre Santos de. A Palavra de quem canta: aedos e divindades nos períodos homérico e arcaico gregos. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rios de Janeiro, 2009. ROMILLY, Jacqueline de. Homero: Introdução aos poemas homéricos. Lisboa: Edições 70, 2001. SCHEIN, Seth L. The mortal hero. Los Angeles: University of California Press, 1984. VIDAL-NAQUET, Pierre. O mundo de Homero. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. VERNANT, Jean-Pierre. 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